quarta-feira, 4 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 13 - A Ilha de Thomas Galvan


AURORA 
CAPÍTULO 13: A ILHA DE THOMAS GALVAN

 As ondas em alto-mar eram cortadas com suavidade, divididas pela proa afiada de um brigue de madeira que cruzava imponente o mar de Cellintrum, embelezado por suas águas escuras e profundas. A tripulação do navio, cerca de cem homens tatuados e sem camisa na maior parte, se agitava e gritava para abaixar as velas e aproveitar o vento que vinha do sudoeste. O capitão do Guia Eterno, um homem de longa barba e roupas leves, xingava seus marinheiros para que acelerassem a viagem, e sua voz alcançava cada tábua de madeira impregnada pelo cheiro de sal marinho, chegando até o escuro convés inferior. Nele, sentado em uma rede que balançava a cada toque das águas, havia uma das três razões da pressa do Guia Eterno. Dalan Glacius, um dos mais novos membros da Aurora, que encarava a longa cama de nuvens no alto do céu por uma pequena janela circular.

 O tempo nublado compartilhava de seu estado de espírito, servindo como um espelho para suas emoções. O rapaz se ajeitou na rede, observando agora um dos diversos pedaços de carne de porco pendurados no teto enquanto colocava as mãos atrás da cabeça, se distraindo da voz grave do capitão. Seus pensamentos, revoltos como as ondas lá fora, se encontravam e se chocavam. A razão de sua meditação era uma só, a indefinição de como agir com as outras pessoas. Ele sempre fora uma pessoa difícil e sem amigos, e havia tentado mudar isso quando entrou na Aurora. No entanto, esse método não estava funcionando, e ele estava ficando sem alternativas do que fazer.

 Enquanto pensava sobre isso, foi distraído por sons de tropeço vindo do outro lado do brigue. Dalan levantou a cabeça com as mãos, observando Amanda, uma garota de longos cabelos castanhos que naquele dia vestia uma camisa branca sem mangas e uma longa calça rosa, cambalear pelo convés. Ela se chocou com as carnes tentando se equilibrar e se aproximou do garoto com uma cara zumbificada, caindo em cima dele. - Eu vou morreeeeeeer... - Soltou com a voz fraca e grave, se segurando nos nós da rede.

 - Você pode morrer em outro lugar? - Perguntou o rapaz, tentando se soltar da companheira. Amanda havia passado mal desde que o Guia Eterno saiu do cais de Helleon, e piorado desde então. No momento em que Dalan tentava tirar o corpo dela de cima do seu, Sophie entrou no aposento onde estavam vestindo sua característica boina, desta vez azul, e uma camisa da mesma cor que deixava os ombros à mostra, completa com uma saia branca que chegava aos joelhos.

 - O capitão mandou dizer que estamos... - Começou ela, até que viu os dois companheiros embolados um em cima do outro. Seu rosto foi imediatamente preenchido por um vermelho forte, embora não conseguisse tirar os olhos da cena. - ... chegando. - Completou com a voz sumida. Desviou os olhos para o outro lado, e deu pequenos passos para trás para sumir de vista.

 - Não, espera... - Tentou começar o rapaz, mas ela já havia sumido. Dalan inspirou com força, sentindo a raiva se acumular, e empurrou com força Amanda. Ela se jogou para o outro lado da rede, ficando de boca aberta enquanto encarava o teto. O rapaz se levantou, ajeitando o traje negro que vestia. Se havia uma pessoa com quem não precisava se preocupar em como agir, era ela. - Qual o seu problema?

 - As ondas. O mar. As ondas. O mar. - Respondeu a garota de forma fraca, encarando fixamente o teto. Uma onda forte acertou o navio, e a garota fechou os olhos com violência. - Alguém avisa a esse bêbado que se chama de capitão que se eu soubesse que ia ter que pagar por isso, viria nadando.

 - Vou tentar. - Respondeu Dalan se levantando. Para ele, filho de um comerciante do mar e nascido em uma ilha, um navio era uma segunda casa. Não ficava enjoado no mar desde os quatro anos. - Enquanto isso, tente pegar um pouco de ar. - Sugeriu. Não houve resposta do outro lado, e o garoto deu de ombros. Passou os minutos seguintes procurando Sophie, mas a garota parecia ter sumido do Guia Eterno. Frustrado, ele se sentou no convés pelo resto da viagem.

 Chegaram ao fim do trajeto ao entardecer, com o sol se aproximando do horizonte. A Ilha de Thomas Galvan era um oásis de quietude no meio do mar agitado, onde nenhum animal silvestre conseguia fazer casa. Ela era pequena e selvagem, com rochas pontiagudas protegendo-a de visitantes indesejados e navio desavisados. Um barco a remo se desacoplou do Guia Eterno e contornou os obstáculos até chegar a um paredão de rochas, onde deixou os três membros da Aurora.

 - Nós iremos buscá-los amanhã ao nascer do sol! - Gritou o marinheiro, se segurando com força em uma das pedras. O trio de garotos se equilibrava no topo do paredão, sentindo desconfortavelmente o vento aumentar e trazer enxurradas de sal e água, que tornariam as pedras ainda mais úmidas e traiçoeiras.

 - Tudo bem! - Respondeu Dalan, se virando para a ilha. Do ponto onde estava, Thomas Galvan se agigantava por cima dele, com várias sequências de paredões separando-os da mata fechada. Começaram a andar por uma pseudo-estrada que serpenteava pelos rochedos negros, se segurando por causa do vento. Sophie ia andando na frente, testando o terreno, seguida por Dalan e Amanda, que continuava se recuperar. O rapaz, distraídamente observando a garota da frente segurando tímida e firmemente a saia para que não voasse, se pôs a pensar. Sophie continuava parecendo irritada com ele, que ainda não sabia como agir em resposta. Deveria iniciar uma conversa ou ficar quieto? Continuaria meditando indefinidamente até que uma corrente particularmente forte de ar agitou de forma mais forte o tecido branco à frente, dando-lhe adrenalina para se adiantar. - O nome de nosso alvo é Nero Entho. Ele é um elfo acusado de diversos roubos, e que se escondeu nesta ilha para escapar das autoridades. Nossa missão é encontrá-lo e trazê-lo de volta ao continente.

 - Entendi. - Respondeu secamente Sophie, sem virar para trás. Uma risada abafada de trás fez com que Dalan corasse e fizesse uma nova investida.

 - E-estranho, não? - Perguntou, desta vez um pouco nervoso. - D-digo, mandarem a gente para prender um elfo. Geralmente questões raciais são bem restritas, não? - Dalan não conseguiu ver o rosto da garota, mas percebeu o silêncio incômodo que se seguiu à sua frase.

 - Talvez. - Ao dizer isso, apressou o passo em direção à mata fechada, deixando o rapaz para trás. Ele furiosamente tentou entender o que havia dado errado, quando um braço se jogou em seu pescoço.

 - Essa doeu um bocado. - Disse Amanda, se inclinando por trás do garoto. Ele tentou se afastar bruscamente, mas quase tropeçou no chão úmido. A companheira segurou sua mão, o ajudando a se apoiar. - Você não deveria andar assim. Sua cara está no chão em algum lugar. - Completou ela, sorrindo cansada. O enjôo ainda não havia passado de forma completa, mas isso não parecia a impedir.

 - Você não devia estar passando mal? - Perguntou o rapaz, se virando para seguir em frente.

 - Dalan, Dalan, Dalan. - Repetiu a garota, colocando as mãos cruzadas atrás de si e se inclinando novamente na direção dele. - É só eu me tirar os olhos do mar que melhoro. E além do mais, como eu poderia ficar passando mal vendo você agir assim?

 - Assim como? - Perguntou o outro, rabugento. Amanda puxou sua camisa, fazendo com que ele se virasse para ela.

 - Dalan, eu tive uma semana bem difícil, portanto preste atenção. - Começou a garota. Ela ainda tinha uma expressão animada, mas seus olhos estavam sérios e sua voz direta. - Eu tenho apenas quatro coisas que me irritam na vida, e você consegue cumprir dois desses requisitos: falsidade e burrice. - Completou ela esticando as sobrancelhas.

 - E-eu... - Começou o membro da Aurora, nervoso, mas Amanda colocou o dedo em seus lábios.

 - Presta atenção que eu só vou dizer isso uma vez. - Disse com os olhos arregalados e fixos. - Seja você mesmo. Por todos os deuses, seja você mesmo. - Com isso, ela recolheu o dedo e seguiu em frente, sem olhar de novo para o rapaz. Dalan ficou onde estava por algum tempo, até se apressar para acompanhar as duas companheiras. Se fosse tão fácil assim eu perceberia sozinho, pensou ele rabugento, mas sentiu que ela estava certa. Mesmo que nunca fosse admitir.

 Os três seguiam mata adentro quando a chuva começou. O céu escureceu rapidamente, trazendo consigo pingos finos que desciam de forma quase vertical, agulhando a pele dos garotos. Havia uma estrada sinuosa que serpenteava a extensão da ilha, tentando desviar das inúmeras árvores tropicais que se embaralhavam no chão enlameado, mas era tão acidentada e coberta com plantas caídas que eles rapidamente se perderam. Quando chegaram em uma pequena clareira, Dalan subiu em um tronco, limpando os pés da terra molhada e gosmenta, e olhou ao redor em busca da estrada perdida.

 - Saco. - Resmungou ele consigo mesmo, colocando a mão por cima dos olhos para tentar enxergar melhor. A chuva forte formava uma espécie de névoa, limitando o campo de visão de todos ali. O rapaz desceu cuidadosamente do tronco, se aproximando das companheiras. - Você não consegue cancelar esse vento? - Perguntou à Amanda. A garota olhou para os pingos descendo rapidamente, balançando a cabeça em seguida.

 - Está muito forte. Não posso fazer nada que vá alterar muita coisa. - Admitiu. Sophie segurou a boina com as duas mãos ao ser atingida por uma lufada de vento mais forte, fechando os olhos. Dalan pôs as mãos na cintura, mirando distraído as árvores à sua direita.

 - Acho que -- Começou a falar o garoto, mas foi interrompido por algo pequeno acertando a lama aos seus pés. Os três olharam para baixo, tentando identificar o que era. Amanda se apoiou em um joelho, manchando a calça rosa com o marrom gosmento, e identificou o que parecia ser uma pequena flecha.

 - Ei... - Disse ela, quando algo zuniu acima de sua cabeça. Seu cérebro ligou os fatos rapidamente, e ela se levantou aterrorizada. - CORRAM! - Gritou, jogando a mão para frente. Projetou uma surto forte de vento para cima, fazendo com que uma nova flecha fosse desviada, rodopiando furiosamente no ar. Dalan e Sophie também reconheceram o objeto, e antes dele afundar na lama os três corriam em disparada para a floresta.

 O rapaz imprimiu o máximo de suas forças nas pernas, rezando aos deuses para que protegessem suas costas. Os pingos de chuva pinicavam com ferocidade sua pele, ameaçando serem pontas de flecha mortais. O vento zunia e o chão escorregava, mas Dalan conseguiu se manter tropeçando em linha reta, correndo como nunca. Não conseguiu localizar as garotas ao seu redor, mas quando tentou olhar ao redor sentiu algo cortar seu quadril, e o ferimento ser exposto à chuva. Grunhiu, sentindo outra seta arranhar suas costas. Sua mente trabalhou com empenho desesperado, e ele esticou a mão à frente para congelar um trecho vertical de terra molhada. Se jogou com os pés para frente, deslizando no gelo marrom com o cotovelo direito acompanhando seu corpo e a mão esquerda ao lado dos pés, congelando o caminho à sua frente. Flechas se afincavam na lama gélida, e a floresta se aproximava.

 Quando ficou a meros passos da cobertura das árvores, Dalan usou o braço direito para se impulsionar para frente, ficando de pé de forma desajeitada. Saltou os últimos metros, mergulhando de cabeça nas raízes expostas. Bateu em várias, mas se levantou e desatou a correr, protegido pelas árvores tortuosas da chuva e das flechas. Seguiu em zigue-zague, com o cabelo molhado tapando sua vista e os ferimentos ardendo. Só parou quando tropeçou, caindo de cara no chão. Se virou de costas em um instante, com o sangue escorrendo do nariz, esperando ver a seta que iria findar sua vida. No entanto, não veio nada. Ele arfou com violência, esperando uma nova ameaça até que a adrenalina se esvaiu de seu corpo.

 Dalan jogou a cabeça para trás, deitando na terra molhada com os olhos fechados e ainda ofegante. Ficou alguns segundos parado, recuperando o fôlego, para se levantar com dificuldades em seguida. Limpou o sangue da boca com as costas da mão enquanto que segurava o corte no quadril. Era um pouco acima do osso, felizmente, mas havia sido profundo. O garoto apoiou o ombro em uma árvore, gerando uma fina camada de gelo em uma das mãos com a outra, esfregando-as rapidamente para limpá-las. Após isso, congelou novamente a palma e segurou o ferimento, trincando os dentes e esperando que a água derretida pudesse limpar o corte. Alguns instantes de dor depois ele seguiu em frente, consciente de que ficar no mesmo lugar não era a melhor idéia.

 Preciso encontrá-las, ordenou o garoto a si mesmo enquanto que avançava pela floresta densa. A chuva já havia parado, mas trovões ao longe indicavam um possível retorno. Dalan se sentia extremamente desconfortável, pois o que quer que tinha os atacado na clareira ainda estava por ali. Seria Nero ou outra ameaça? Qualquer barulho na mata o fazia se encolher, esperando uma flecha em seu peito. Contudo, continuava vivo, mesmo trinta minutos depois de se separar das companheiras da Aurora.

 Cansado, o rapaz se sentou no chão, suspirando com pesar. Com a vista distraída esquadrinhou a área em busca de qualquer ameaça. Era uma clareira, menor do que a última, coberta por folhas, roupas suspensas no ar e duas árvores caídas. Dalan aproveitou para esfregar os dedos nos olhos, até que algo o fez parar. Voltou a abri-los, vendo uma camisa tomara-que-caia azul e uma saia branca vindo em sua direção. No momento em que sua mente havia se convencido de que estava insana, Sophie se materializou nas roupas, saindo de um estado invisível para o visível.

 - Dalan! - Ofegou ela, se ajoelhando ao seu lado. A garota tinha o rosto sujo de terra e o cabelo desembaraçado, e um ferimento no couro cabeludo que escorria um filete de sangue na face e no curto cabelo loiro. Não havia sinal de sua boina. - Finalmente te encontrei!

 - Sim! - Respondeu o rapaz, ainda surpreso pelo surgimento da companheira. Realmente, não havia perguntado a ela quais eram seus poderes antes. Aceitou a mão da companheira para se levantar, e percebeu que ela tremia. - Você... encontrou Amanda? - Perguntou, um pouco desconcertado.

 - Não, mas precisamos encontrá-la. - Gemeu Sophie, apertando as mãos enquanto que desviava o olhar. - Eu consegui achar você, então vamos conseguir achá-la. - Disse em seguida, parecendo ser mais para si mesma do que para o companheiro. Dalan se adiantou para falar alguma coisa, mas se calou. Não daria certo. Havia algo em sua cabeça, irritantemente com a voz de Amanda, que o alertava. Ela está claramente com medo, dizia a voz, e não vai conseguir reconfortá-la pois ela não confia em você.

 O garoto estreitou minimamente os olhos enquanto que o cérebro ia finalmente juntando as peças. Confiança. Era isso que queria conquistar na Aurora, e era isso que não conseguia de nenhuma forma. Sophie, assim como os outros, precisavam de alguém que tivessem certeza de que conheciam, e Dalan, tentando ser o que não era, jamais conseguiria. O rapaz engoliu em seco, se adiantando. Precisava ser ele mesmo. Por Sophie, pela Aurora e por Gamora. Custe o que custar.

 - Vamos encontrá-la. - Disse Dalan com a voz firme, algo que a outra garota ouvia pela primeira vez. Ela se virou, vendo-o com o olhar determinado. - Eu tenho um plano. - Sophie ficou em silêncio, mas concordou minimamente com a cabeça enquanto o fitava com os olhos arregalados. Dalan, por sua vez, pensava atenciosamente. Era a primeira vez em que estava no comando de uma missão, sem Amanda, Wieder ou Sasha para tomar as rédeas. A sensação o fez sorrir, se animando mesmo com a situação em que se encontravam.

 Dessa vez, iriam seguir o seu plano.

Um comentário:

  1. Cara... sensacional. Sério. Não pensei que eu fosse gostar tanto desse conto. Você descreve muito bem os personagens, o ambiente, o ritmo também tá bacana.
    Tô bastante ansiosa pra saber se o Dalan vai encontrar Gamora, se vai rolar um romance com a Sophie. Vou continuar acompanhando, bjs.

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