quinta-feira, 15 de maio de 2014

Aurora: Capítulo 12 - Garganta Cortada


AURORA
CAPÍTULO 12: GARGANTA CORTADA

 Um vento frio percorreu as montanhas de Tina, desviando dos picos e elevações diversas, até encontrar um imenso vale e descer como uma pedra. O vale separava duas regiões montanhosas, Felinyr e Gargabear, e era marcado pelo rio Venulis, uma imensa corrente abastecida por diversas cachoeiras adjacentes, que contribuíam para o ambiente desolado com uma forte névoa proveniente das quedas d'água. Lá embaixo, à beira do rio, uma vegetação rasteira ousava crescer rebeldemente. No entanto, ela não conseguia subir as montanhas, pintadas de um cinza fraco e morto, dando à região um ar de morbidez. Os humanos a chamavam de Vale das Cachoeiras, que como grande parte das montanhas de Tina, se dizia que era amaldiçoada, uma mancha pálida no meio de uma área de florestas tropicais. E era ali que três membros da Aurora caminhavam através de uma das muitas estradas serpenteadas, com uma missão nas mãos.

 O vento desceu a encosta rochosa de uma montanha, que dividia a elevação em uma descida grave e outra aguda, encontrando a voz de uma garota de cabelos azuis-claros e presos em longas maria-chiquinhas, que balançaram agitadamente pela lufada de ar. Ela vestia um apertado colante preto e azul, do qual possuía diversas cópias em seu guarda-roupa, e ralhava com os dois companheiros que haviam ficado para trás.

 - Se não se apressarem, deixarei vocês para trás. - Era o que havia alertado Sasha, do alto de uma elevação, mantendo o rosto impassível enquanto controlava sua raiva com os outros dois. Precisava manter a pose e o respeito, pensou, para que conseguisse completar essa importante missão sem falhas. E isso significava aturar Julie e Koga, dezenas de metros atrás dela.

 - Você poderia descer do seu pedestal e vir nos ajudar, sabia? - Retrucou Julie, balançando seus curtos cabelos loiros, franzindo o cenho e indicando Koga ao seu lado. Ela usava um vestido branco e longo que descia até os joelhos, acompanhado por uma calça negra por baixo e um echarpe vermelho enrolado no pescoço. O rapaz de longa trança negra, por sua vez, vestia um traje de peça única da mesma cor que a montanha cuja encosta caminhava, e da mesma cor de seu rosto pálido. Ele usava seu cajado para se apoiar no chão pedregoso, e levantou a cabeça pela primeira vez em longos minutos. - Você sabe que ele passa mal em regiões montanhosas, Sasha! - Gritou irritada. Já estava bastante estressada por sua irmã, Sophie, ter ido a uma missão perigosa sem ela por perto, e não tinha muita paciência sobrando para Sasha.

 - Então você vai ficar para trás enquanto que eu faço todo o trabalho? - Perguntou a outra garota, se virando para seguir em frente. - Faz bem o seu estilo, Julie. Se proteger enquanto outros se arriscam. - Alfinetou.

 Uma veia na têmpora da loira pulsou, e ela se adiantou com os punhos cerrados. - Não sabia que abandonar os companheiros era o seu estilo, senhorita líder perfeita! - Gritou com escárnio. Sasha estancou, e ela continuou com a voz um pouco mais baixa. - Digo, eu sabia desde o início que esse era seu estilo, mas achei que você estava tentando ser um exemplo para todos nós, meros mortais. - Terminou com a mão no peito, sarcástica. A garota de cabelos azuis ficou imóvel por alguns segundos, enquanto que o vento balançava seus cabelos, até que ela se sentou.

 - Venham logo. - Anunciou, com a voz impassível. Julie bufou e deu um tapa no pescoço de Koga, obrigando-o a se apressar.

 - É tudo culpa sua. - Disse irritada, apressando o passo enquanto que segurava o amigo pelo braço.

 Os três seguiram pela estrada acidentada, subindo e descendo a encosta da montanha enquanto que o rio corria agitado à direita. A paisagem permanecia praticamente imutável, com as rochas cinzentas e a ausência de qualquer ser vivo contribuindo para o clima mórbido. A única diferença era que a cada passo os membros da Aurora adentravam cada vez mais a névoa gerada pelas inúmeras cachoeiras no vale. O som delas ao longe, junto com o vento agitado, contrastava com o silêncio entre as duas garotas, que evitavam até se olhar. Koga ficava no meio delas, visivelmente incomodado pela situação.

 Eis que, ao olhar distraída para a encosta da montanha, Sasha subitamente parou e colocou a mão nos rostos dos companheiros, com o olhar fixo. - Calados.

 Julie, cujo coração só não havia pulado para fora do corpo pela palma de Sasha em sua boca, acompanhou o olhar da colega. Havia uma fresta discreta no leito montanhoso, disforme e alta, e um homem estava parado à frente dela. Sasha girou os braços e empurrou os outros dois para baixo pela nuca, derrubando-os no chão.

 - Qual é a droga do seu problema? - Perguntou Julie por entre os dentes, tentando se levantar. Sasha, no entanto, a segurou com mais força.

 - Quieta. Estamos muito destacados. - Ordenou a garota, tentando levantar a cabeça para enxergar o homem. Koga, por sua vez, preferiu continuar onde estava.

 - Claro que estamos muito destacados. Já olhou pra sua roupa? - Disse Julie com a voz entediada, girando os olhos para o outro lado. A outra, por sua vez, corou fortemente.

 - Ela é funcional. - Disse ela em voz baixa. O homem à frente se virou e voltou para a caverna, fazendo com que Sasha se levantasse, puxando os companheiros pelo colarinho. - Vamos. - Ordenou com a voz séria.

 Eles seguiram apressadamente em direção à caverna, saindo da estrada e percorrendo um caminho muito mais acidentado do que o que haviam estado antes. Em dois pontos precisaram apoiar as mãos no chão para subir paredões de rocha, procurando o percurso mais protegido caso o homem voltasse ao ar livre. Koga, suando em baldes, se esforçava para acompanhá-las, enquanto que Julie ficava um pouco para trás para ajudá-lo.

 Finalmente o trio chegou à encosta da montanha, escondidos atrás de uma rocha caída. Sasha inclinou o corpo para observar a área próxima à fresta, e se virou para os outros. - Acho que é esse o local que procuramos. A Garganta Cortada. - A caverna natural havia recebido esse nome por um caso de assassinato que ficara famoso dois anos atrás. Desde então a Aliança havia redobrado a atenção naquela área, com medo de novos crimes semelhantes.

 - Não é estranho? - Perguntou subitamente a garota loira, ficando na ponta dos pés para poder enxergar melhor a fresta. - A caverna da Garganta Cortada fica numa região anã. Porque enviaram uma guilda humana para resolver isso?

 - Não é da sua conta, e de nenhum de nós. - Disparou Sasha, e a veia na têmpora de Julie pulsou novamente. - Nós só temos que... droga!

 - O que houve? - Perguntou Koga, enquanto que a outra garota se recolhia à proteção da rocha. Os outros dois se esticaram, e perceberam que um homem havia saído da caverna. Ele tinha pele bem morena e vestia uma camisa verde e rasgada, assim como uma calça marrom. Uma bandana negra estava enrolada na cabeça careca, e um símbolo de uma águia voando com uma árvore nas garras servia como decoração. Vê-lo fez com que os olhos do rapaz da Aurora se estreitassem, e ele voltou a ficar escondido. - Eu os conheço.

 - Quem são eles? - Perguntou Sasha, dando mais uma olhada para ver se o homem vinha na direção deles.

 - São mercenários. Águias Obstinadas, como são chamados. - Mercenários eram organizações similares à guildas, mas que funcionavam de forma ilegal. Isso acontecia porque ofereciam serviços que iam contra as leis, tais como assassinatos, sequestros e afins. Julie se sentou, arqueando as costas.

 - São perigosos? - Perguntou.

 - São caros, se é que eu posso dizer alguma coisa. - Respondeu Koga, se sentando também. - Eu tinha um amigo que queria ser um mercenário, e ele pesquisou a fundo as diversas organizações. Pelo que sei, as Águias não recebem muitas missões pelo seu preço alto, mas costumam cumpri-las com perfeição.

 - Bem, hoje não será um bom dia na agenda deles. - Respondeu Sasha, se virando para o amigo. - Julie irá ficar com você para protegê-lo, enquanto que eu vou lá dentro e limpo a área. - Terminou, apontando com o polegar a Garganta Cortada.

 - O quê? - Disparou a outra garota, se levantando e inclinando na direção da colega. - Você acha que vai cuidar de uma dúzia de mercenários sozinha? É tão arrogante assim?

 - E acha que você vai me ajudar em alguma coisa? - Respondeu Sasha com os olhos arregalados. A tensão local subiu em níveis exponenciais, enquanto que o rapaz ficava mudo como as rochas do ambiente.

 - Você consegue ficar guardando pra ver se ninguém entra ou sai da Garganta Cortada, Koga? - Perguntou Julie, ainda sem tirar os olhos de Sasha. O garoto fez que sim, e ela sorriu. - Então ótimo. Vou dar cobertura a essa aqui enquanto nos infiltramos na caverna. Tudo bem? - Perguntou novamente, desta vez para Sasha, mas avançou sem esperar resposta.

 - Apenas não atrapalhe. - Grunhiu a outra, se apressando para ultrapassá-la. As duas correram silenciosamente até a fresta na montanha, conscientes de que o guarda de antes estaria bem próximo. Se inclinaram para o interior da montanha, e o avistaram vinte metros à frente, iluminado por uma tocha e andando calmamente pelo corredor apertado de rochas. As garotas, evitando sempre encostar uma na outra, o seguiram.

 Sete minutos depois, a caverna se expandiu em uma área circular de quase cinquenta metros de diâmetro. Era totalmente formada pelas rochas cinzas do exterior, que pareciam negras na escuridão natural. Tochas eram penduradas para combater o breu, e eram ou presas na parede, ou carregadas pelos mercenários das Águias Obstinadas. Ao total eram cinco, e dois deles estavam sentados em volta da fogueira central, onde um homem magro, de cabelos longos e brancos e roupas maltrapilhas, tremia violentamente. Sasha cutucou Julie e apontou para uma grande elevação na parte leste da caverna, razoavelmente protegida pela escuridão. As duas seguiram para o lugar estratégico, enquanto que o homem desatava a gritar.

 - PRECISAMOS DE MAIS GENTE! M-MAIS GENTE! PRECISAMOS... precisamos... - Ele sofreu um ataque de espasmos, e caiu de joelhos para socar com as duas mãos o chão rochoso. - E-e-e-ele está vindo. ELE ESTÁ VINDO! - Gritou, babando, em direção aos mercenários, que apenas cruzavam os braços. O homem voltou suas atenções ao chão, mesmerizado. - Não há lugar para se proteger. Não há lugar para se esconder. E-estamos t-todos mortos...

 - Senhor Lester, o senhor está seguro. - Disse um dos homens, bem grande e com o cabelo tosado. - Nós estamos preparando o abrigo que o senhor pediu. Em algumas semanas, poderemos...

 - SEMANAS? - Gritou ele, cuspindo na direção do mercenário. - P-PRECISAMOS DE... DE HORAS! MINUTOS! ELE ESTÁ AQUI, E PODERÁ NOS MATAR A QUALQUER MOMENTO! Z-Z-ZEM... - Ele se calou com as mãos na boca, parecendo aterrorizado demais para concluir a palavra. Todos os outros ali na caverna por um instante inconscientemente gelaram, como se, no fundo, soubessem de quem o velho Lester estaria falando. Julie quase escorregou na rocha, e Sasha a ofereceu um olhar tenso e reprovador.

 - Senhor, se acalme. - Pediu outro homem, se ajoelhando ao lado do velho. - Nós estamos aqui para defendê-lo.

 - Me defender? - Lester aproximou rapidamente o rosto do mercenário, que instintivamente recuou. - A Aliança... a Aliança inteira... todos os heróis que já possuímos... não conseguiram detê-lo. Desde o início dos tempos, tudo que fizemos foi afastá-lo. SÓ QUE ELE JÁ ESTÁ AQUI! - O velho tentou escavar a terra, como se quisesse se proteger no centro da terra. Julie engoliu em seco. Agora estava claro o que havia o aterrorizado - S-s-s-sabe de quem estou falando... garoto? - Grunhiu em voz aguda, apoiando a testa no chão.

 - Quando ele falar, faça seu ataque. - Disse Sasha no ouvido da companheira, que novamente sentiu o coração tentar saltar pela boca. Julie se virou para a outra garota, e percebeu que ela suava e tinha os olhos nervosamente arregalados. Ambas haviam descoberto o mistério.

 - HEIN? - Gritou o velho, segurando o mercenário mais próximo pelo colarinho. - SABE. DE. QUEM. ESTOU. FALANDO? - Julie se preparou, tentando se concentrar. Todos ali sabiam a resposta, mas ninguém se atrevia em dizer seu nome em voz alta. - SABE? - A garota sentiu que liberaria seu poder de forma involuntária com a revelação do homem, e esticou o braço levemente trêmulo no alto. Sasha desviou os olhos, apoiando seu peso em um joelho enquanto que espalmava as pedras abaixo de si. - RESPONDA!

 - O-o senhor está falando de... - Tentou começar o mercenário, mas o velho calmamente colocou o dedo em seus lábios, parecendo extraordinariamente lúcido. Ele se aproximou do rosto do outro homem, sussurrando uma palavra tão baixa, mas que no entanto conseguiu ser ouvida por cada uma das nove pessoas ali.

Zemopheus.

 - AGORA! - Gritou Sasha, chamando a atenção dos outros para as duas membros da Aurora. Os mercenários, avidamente nervosos, olharam para a elevação em pânico enquanto que Lester afundava o rosto no chão. Julie soltou o ar preso e liberou todas as suas energias na palma da mão, que começou a brilhar intensamente. Era como se uma represa tivesse se rompido, sem controle, de forma que a luz branca preencheu completamente a caverna. Os mercenários caíram gritando com as mãos nos olhos, enquanto que Sasha os abria.

 - Vá! - Gritou Julie, exausta e com o antebraço colado nos olhos. A companheira disparou para baixo, célere como o vento. Ela começou saltando em um homem caído no chão, chutando seu rosto para apagá-lo. Virou o rosto e encontrou outros dois na mesma posição, e correu até eles para bater suas cabeças uma na outra. Havia algo querendo sair de seu peito, como um monstro alimentado pelo nervosismo de momentos antes. As Águias Obstinadas estavam desorganizadas, atacadas pela surpresa, e Sasha decidiu aproveitar o momento para capturar Lester.

 - S-SOCORRO! - Gritou ele, quebrando levemente o encanto de terror em seus contratados. A membro da Aurora, no entanto, estava rápida demais para que conseguisse reagir à qualquer coisa, e um dos homens, desesperado, se agitou cego e sem querer se colocou na direção da garota. Ela foi acertada no estômago por um cotovelo perdido, e estancou pelo golpe. Sua cabeça foi para frente, cuspindo saliva e sangue, e ela caiu de joelhos deslizando pelo braço do mercenário, segurando a região ferida. Imbecil, era tudo que conseguia pensar. Seu desespero havia a deixado inconsequente, e agora pagava um preço terrível. O homem, percebendo que havia acertado alguma coisa, atacou o ar em busca do alvo, desferindo acidentalmente um soco no rosto de Sasha, que caiu para trás. Seu nariz trincou audivelmente, e ela colocou a mão livre na face. Com a visão embaçada, viu Lester se levantar e correr histericamente em direção à saída, enquanto que os outros dois Águias se reorganizavam, ainda meio cegos.

 - Sasha! - Gritou Julie, deslizando para auxiliá-la. A companheira, por sua vez, recusou a ajuda.

 - Vá atrás dele! - Gritou Sasha, se forçando a ficar de pé, cambaleante. - O objetivo da missão é capturar Lester e impedir que ele volte aqui! Impeça-o de fugir! - Mesmo rangendo os dentes, Julie a obedeceu, correndo pela lateral da caverna e entrando em perseguição, deixando a outra cuidar do que restou das Águias, que mesmo com a visão prejudicada continuavam sendo ameaças. - Bem. - Começou ela, limpando o sangue do rosto. - Quem é o primeiro?

 A garota loira corria como podia, atravessando o corredor estreito em passadas largas. Conseguia enxergar seu alvo muito à frente, disparando com toda a força do desespero. Para um homem naquela idade, era uma velocidade realmente considerável. Ele conseguiu sair da Garganta Cortada antes que Julie chegasse à metade do trajeto, e agora seguia em direção à estrada. Ela começou a ficar apreensiva, e tentou apressar o passo. Se Lester chegasse ao rio Venulis, talvez nunca mais conseguiria ser encontrado.

 Eis que surgiu uma outra figura, correndo para impedir o homem de cabelos brancos. De início a garota não conseguiu identificar quem era, mas ao ver aquela trança tão familiar, não teve mais dúvidas. Koga havia visto o homem e se posto a persegui-lo, doente ou não. Ele o estava alcançando no momento em que Julie atravessou a fresta, um pouco mais calma. O amigo capturaria o alvo e tudo estaria resolvido.

 Infelizmente para os dois, o rapaz ainda estava muito abalado pela pressão atmosférica, e aquela corrida havia sido o suficiente para esvaziar seu fôlego. Ele diminuiu a velocidade ao chegar perto de Lester, que , tomado por uma histeria louca, socou com força o membro da Aurora na boca. O mundo de Julie pareceu parar por um instante, enquanto ela via o companheiro desabar e cair para fora da estrada, em direção ao Venulis.

 - KOGA! - Gritou ela, voltando a correr. Percorreu os últimos metros como uma bala, tropeçando, deslizando e se segurando. Pelo canto do olho viu Lester correr estrada abaixo, mas ele não era mais importante. A garota sentiu o desespero crescer a cada segundo, e se esforçava para continuar correndo. Alguém, por favor, alguma coisa, rogou aos deuses.

 Nesse instante uma mancha negra e azul se emparelhou com ela, ultrapassando-a em seguida. O coração da loira ficou imensamente mais leve, e ela diminuiu o passo. Sasha chegou à beira da estrada, e olhou para baixo na direção de onde o amigo havia caído. Em seguida, ela virou o rosto para observar a companheira, que continuava correndo, e girou para correr em direção à Lester, que seguia a estrada. Por um instante Julie quase parou em choque, mas se lembrou o que estava acontecendo e voltou a correr, gritando a plenos pulmões. - SASHAAAA!

 Alheia à qualquer resposta, ela chegou à estrada com forças redobradas. Olhou para baixo, para a encosta de quase setenta graus, vendo que o amigo estava alguns metros abaixo, salvo temporariamente por uma pedra irregular que o havia parado. Ele estava de olhos fechados, visivelmente em dor, e Julie saltou vale abaixo para salvá-lo. As pedras escorregadias quase a derrubaram também no primeiro passo, fazendo com que ela jogasse o corpo para trás para se apoiar. Caiu prendendo um braço entre as rochas, e um estalo de dor subiu dos dedos até o pescoço, mas ela continuou. Se impeliu para frente, cambaleando desajeitadamente até onde o amigo jazia.

 - Koga? - Perguntou esbaforida, sentindo os dedos quebrados pulsarem em agonia. O companheiro estava ofegante, mas aparentemente sem nenhum dano sério. A garota o puxou com a mão boa, e olhou ladeira acima para calcular a dificuldade de seu caminho de volta. Naquele instante a rocha em que estavam apoiados se soltou, começando a cair em direção ao rio. - Merda! - Praguejou Julie, enfiando os dedos quebrados na rocha para retomar o apoio. A dor quase a fez desmaiar, mas ela se prendeu. Contudo, isso era temporário, pois não tinha forças para se segurar junto com outra pessoa. Desesperadamente ela viu os dedos torcidos começarem a deslizar, e seu pé de apoio perder o suporte, fazendo-a cair de joelhos. Seus pensamentos foram para a irmã, que se encontrava tão longe. Não conseguiu pensar em palavras de despedida, pois a mão se soltou e ela começou a cair.

 Algo no entanto agarrou seu pulso, estancando sua queda. Julie olhou para cima, e viu Sasha segurando-a com os dois braços, suada e exaurida. - Se jogue para cima! - Ordenou ela. A garota mordeu a língua para segurar uma resposta afiada, mas obedeceu à ordem. As duas se apoiaram uma na outra, e com esforço conseguiram levar Koga até à estrada, onde Lester se encontrava desacordado. Deixaram o garoto no chão, descansando, e a garota de cabelos azuis colocou as mãos no quadril, respirando fundo. - Vamos descansar alguns segundos. Depois, iremos... - Nesse momento Julie foi até ela com os pés batendo forte, e os braços rígidos ao lado do corpo.

 - O que. Pensa. Que. ESTÁ. FAZENDO? - Esbravejou ela, gritando tão forte as duas últimas palavras que elas continuaram a ecoar no vale por longo segundos. Sasha arregalou os olhos, tentando recobrar a compostura.

 - O que foi desta vez? - Perguntou, tentando controlar outro ataque de nervos. Precisava mostrar o exemplo ali.

 - Você abandonou Koga! Você o deixou à morte. - Disparou Julie, lacrimejando fracamente e apontando o dedo no rosto da outra. - Você o viu, e deu às costas! Mesmo que não considere ele seu amigo, pouco importa! Koga é um membro da Aurora, sua duas-caras!

 - Eu não o abandonei. - Disse pausadamente Sasha, juntando todas as suas forças em seu auto-controle. - Eu vi que você estava chegando. Eu sabia que você iria salvá-lo à tempo. Por isso, decidi me focar em Lester, nosso objetivo!

 - Não, você correu atrás dele porque precisava ser a pessoa mais importante nessa missão! - Acusou Julie, dando um passo na direção de Sasha, que manteve a postura. - Você deseja tanto essa... essa maldita honraria que ignora tudo que acontece ao seu redor!

 - Eu não ignorei nada! - Cuspiu a garota, perdendo um pouco do controle e apontando para o peito da outra. - Eu analisei a situação e fiz o que era certo! Se saísse uma única vez da segurança da sede e fizesse alguma coisa de útil para a guilda, saberia disso! - A voz dela ficava mais aguda a cada palavra. Julie estreitou os olhos, absorvendo o que ouvia.

 - Talvez eu fique lá dentro porque lembro que existem pessoas na Aurora, e elas estão passando por momentos difíceis! - Respondeu ela, fechando o punho sadio. - Eu não evito problemas que não posso resolver com socos e pontapés, dando as costas quando as coisas ficam ruins!

 - Covarde! - Disparou Sasha, dando um passo à frente.

 - Arrogante! - Respondeu Julie no mesmo tom, também se aproximando.

 As duas ficaram se encarando, ofegantes ao extremo, com as testas extremamente próximas e olhares fixos sem piscar. O vento soprou diversas vezes, mas nenhuma delas arredava o pé. Foi apenas quando Koga tossiu forçosamente, de modo a chamar atenção, que o feitiço foi quebrado. Depois de mais uma longa encarada, Julie se encaminhou na direção dele, enquanto que Sasha virava as costas e cruzava os braços.

 - Temos vinte minutos para descanso, e depois iremos voltar à Helleon. - E dito isso, ela se afastou para voltar à Garganta Cortada. A outra garota se ajoelhou perto do amigo, verificando se ele estava bem. Não parecia haver nada irreversível ou grave, e ela suspirou em resposta.

 - Julie, eu... - Começou Koga, mas a garota apenas deu um tapa, um pouco mais leve do que o costume, em sua cabeça para se levantar em seguida.

 - É tudo culpa sua. - Disse de forma sombria, e se virou para conferir se Lester continuava apagado. O vento novamente soprou, passando pelos membros da Aurora e continuando seu trajeto, sem encontrar obstáculos até chegar no rio. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário