quinta-feira, 15 de maio de 2014

Aurora: Capítulo 12 - Garganta Cortada


AURORA
CAPÍTULO 12: GARGANTA CORTADA

 Um vento frio percorreu as montanhas de Tina, desviando dos picos e elevações diversas, até encontrar um imenso vale e descer como uma pedra. O vale separava duas regiões montanhosas, Felinyr e Gargabear, e era marcado pelo rio Venulis, uma imensa corrente abastecida por diversas cachoeiras adjacentes, que contribuíam para o ambiente desolado com uma forte névoa proveniente das quedas d'água. Lá embaixo, à beira do rio, uma vegetação rasteira ousava crescer rebeldemente. No entanto, ela não conseguia subir as montanhas, pintadas de um cinza fraco e morto, dando à região um ar de morbidez. Os humanos a chamavam de Vale das Cachoeiras, que como grande parte das montanhas de Tina, se dizia que era amaldiçoada, uma mancha pálida no meio de uma área de florestas tropicais. E era ali que três membros da Aurora caminhavam através de uma das muitas estradas serpenteadas, com uma missão nas mãos.

 O vento desceu a encosta rochosa de uma montanha, que dividia a elevação em uma descida grave e outra aguda, encontrando a voz de uma garota de cabelos azuis-claros e presos em longas maria-chiquinhas, que balançaram agitadamente pela lufada de ar. Ela vestia um apertado colante preto e azul, do qual possuía diversas cópias em seu guarda-roupa, e ralhava com os dois companheiros que haviam ficado para trás.

 - Se não se apressarem, deixarei vocês para trás. - Era o que havia alertado Sasha, do alto de uma elevação, mantendo o rosto impassível enquanto controlava sua raiva com os outros dois. Precisava manter a pose e o respeito, pensou, para que conseguisse completar essa importante missão sem falhas. E isso significava aturar Julie e Koga, dezenas de metros atrás dela.

 - Você poderia descer do seu pedestal e vir nos ajudar, sabia? - Retrucou Julie, balançando seus curtos cabelos loiros, franzindo o cenho e indicando Koga ao seu lado. Ela usava um vestido branco e longo que descia até os joelhos, acompanhado por uma calça negra por baixo e um echarpe vermelho enrolado no pescoço. O rapaz de longa trança negra, por sua vez, vestia um traje de peça única da mesma cor que a montanha cuja encosta caminhava, e da mesma cor de seu rosto pálido. Ele usava seu cajado para se apoiar no chão pedregoso, e levantou a cabeça pela primeira vez em longos minutos. - Você sabe que ele passa mal em regiões montanhosas, Sasha! - Gritou irritada. Já estava bastante estressada por sua irmã, Sophie, ter ido a uma missão perigosa sem ela por perto, e não tinha muita paciência sobrando para Sasha.

 - Então você vai ficar para trás enquanto que eu faço todo o trabalho? - Perguntou a outra garota, se virando para seguir em frente. - Faz bem o seu estilo, Julie. Se proteger enquanto outros se arriscam. - Alfinetou.

 Uma veia na têmpora da loira pulsou, e ela se adiantou com os punhos cerrados. - Não sabia que abandonar os companheiros era o seu estilo, senhorita líder perfeita! - Gritou com escárnio. Sasha estancou, e ela continuou com a voz um pouco mais baixa. - Digo, eu sabia desde o início que esse era seu estilo, mas achei que você estava tentando ser um exemplo para todos nós, meros mortais. - Terminou com a mão no peito, sarcástica. A garota de cabelos azuis ficou imóvel por alguns segundos, enquanto que o vento balançava seus cabelos, até que ela se sentou.

 - Venham logo. - Anunciou, com a voz impassível. Julie bufou e deu um tapa no pescoço de Koga, obrigando-o a se apressar.

 - É tudo culpa sua. - Disse irritada, apressando o passo enquanto que segurava o amigo pelo braço.

 Os três seguiram pela estrada acidentada, subindo e descendo a encosta da montanha enquanto que o rio corria agitado à direita. A paisagem permanecia praticamente imutável, com as rochas cinzentas e a ausência de qualquer ser vivo contribuindo para o clima mórbido. A única diferença era que a cada passo os membros da Aurora adentravam cada vez mais a névoa gerada pelas inúmeras cachoeiras no vale. O som delas ao longe, junto com o vento agitado, contrastava com o silêncio entre as duas garotas, que evitavam até se olhar. Koga ficava no meio delas, visivelmente incomodado pela situação.

 Eis que, ao olhar distraída para a encosta da montanha, Sasha subitamente parou e colocou a mão nos rostos dos companheiros, com o olhar fixo. - Calados.

 Julie, cujo coração só não havia pulado para fora do corpo pela palma de Sasha em sua boca, acompanhou o olhar da colega. Havia uma fresta discreta no leito montanhoso, disforme e alta, e um homem estava parado à frente dela. Sasha girou os braços e empurrou os outros dois para baixo pela nuca, derrubando-os no chão.

 - Qual é a droga do seu problema? - Perguntou Julie por entre os dentes, tentando se levantar. Sasha, no entanto, a segurou com mais força.

 - Quieta. Estamos muito destacados. - Ordenou a garota, tentando levantar a cabeça para enxergar o homem. Koga, por sua vez, preferiu continuar onde estava.

 - Claro que estamos muito destacados. Já olhou pra sua roupa? - Disse Julie com a voz entediada, girando os olhos para o outro lado. A outra, por sua vez, corou fortemente.

 - Ela é funcional. - Disse ela em voz baixa. O homem à frente se virou e voltou para a caverna, fazendo com que Sasha se levantasse, puxando os companheiros pelo colarinho. - Vamos. - Ordenou com a voz séria.

 Eles seguiram apressadamente em direção à caverna, saindo da estrada e percorrendo um caminho muito mais acidentado do que o que haviam estado antes. Em dois pontos precisaram apoiar as mãos no chão para subir paredões de rocha, procurando o percurso mais protegido caso o homem voltasse ao ar livre. Koga, suando em baldes, se esforçava para acompanhá-las, enquanto que Julie ficava um pouco para trás para ajudá-lo.

 Finalmente o trio chegou à encosta da montanha, escondidos atrás de uma rocha caída. Sasha inclinou o corpo para observar a área próxima à fresta, e se virou para os outros. - Acho que é esse o local que procuramos. A Garganta Cortada. - A caverna natural havia recebido esse nome por um caso de assassinato que ficara famoso dois anos atrás. Desde então a Aliança havia redobrado a atenção naquela área, com medo de novos crimes semelhantes.

 - Não é estranho? - Perguntou subitamente a garota loira, ficando na ponta dos pés para poder enxergar melhor a fresta. - A caverna da Garganta Cortada fica numa região anã. Porque enviaram uma guilda humana para resolver isso?

 - Não é da sua conta, e de nenhum de nós. - Disparou Sasha, e a veia na têmpora de Julie pulsou novamente. - Nós só temos que... droga!

 - O que houve? - Perguntou Koga, enquanto que a outra garota se recolhia à proteção da rocha. Os outros dois se esticaram, e perceberam que um homem havia saído da caverna. Ele tinha pele bem morena e vestia uma camisa verde e rasgada, assim como uma calça marrom. Uma bandana negra estava enrolada na cabeça careca, e um símbolo de uma águia voando com uma árvore nas garras servia como decoração. Vê-lo fez com que os olhos do rapaz da Aurora se estreitassem, e ele voltou a ficar escondido. - Eu os conheço.

 - Quem são eles? - Perguntou Sasha, dando mais uma olhada para ver se o homem vinha na direção deles.

 - São mercenários. Águias Obstinadas, como são chamados. - Mercenários eram organizações similares à guildas, mas que funcionavam de forma ilegal. Isso acontecia porque ofereciam serviços que iam contra as leis, tais como assassinatos, sequestros e afins. Julie se sentou, arqueando as costas.

 - São perigosos? - Perguntou.

 - São caros, se é que eu posso dizer alguma coisa. - Respondeu Koga, se sentando também. - Eu tinha um amigo que queria ser um mercenário, e ele pesquisou a fundo as diversas organizações. Pelo que sei, as Águias não recebem muitas missões pelo seu preço alto, mas costumam cumpri-las com perfeição.

 - Bem, hoje não será um bom dia na agenda deles. - Respondeu Sasha, se virando para o amigo. - Julie irá ficar com você para protegê-lo, enquanto que eu vou lá dentro e limpo a área. - Terminou, apontando com o polegar a Garganta Cortada.

 - O quê? - Disparou a outra garota, se levantando e inclinando na direção da colega. - Você acha que vai cuidar de uma dúzia de mercenários sozinha? É tão arrogante assim?

 - E acha que você vai me ajudar em alguma coisa? - Respondeu Sasha com os olhos arregalados. A tensão local subiu em níveis exponenciais, enquanto que o rapaz ficava mudo como as rochas do ambiente.

 - Você consegue ficar guardando pra ver se ninguém entra ou sai da Garganta Cortada, Koga? - Perguntou Julie, ainda sem tirar os olhos de Sasha. O garoto fez que sim, e ela sorriu. - Então ótimo. Vou dar cobertura a essa aqui enquanto nos infiltramos na caverna. Tudo bem? - Perguntou novamente, desta vez para Sasha, mas avançou sem esperar resposta.

 - Apenas não atrapalhe. - Grunhiu a outra, se apressando para ultrapassá-la. As duas correram silenciosamente até a fresta na montanha, conscientes de que o guarda de antes estaria bem próximo. Se inclinaram para o interior da montanha, e o avistaram vinte metros à frente, iluminado por uma tocha e andando calmamente pelo corredor apertado de rochas. As garotas, evitando sempre encostar uma na outra, o seguiram.

 Sete minutos depois, a caverna se expandiu em uma área circular de quase cinquenta metros de diâmetro. Era totalmente formada pelas rochas cinzas do exterior, que pareciam negras na escuridão natural. Tochas eram penduradas para combater o breu, e eram ou presas na parede, ou carregadas pelos mercenários das Águias Obstinadas. Ao total eram cinco, e dois deles estavam sentados em volta da fogueira central, onde um homem magro, de cabelos longos e brancos e roupas maltrapilhas, tremia violentamente. Sasha cutucou Julie e apontou para uma grande elevação na parte leste da caverna, razoavelmente protegida pela escuridão. As duas seguiram para o lugar estratégico, enquanto que o homem desatava a gritar.

 - PRECISAMOS DE MAIS GENTE! M-MAIS GENTE! PRECISAMOS... precisamos... - Ele sofreu um ataque de espasmos, e caiu de joelhos para socar com as duas mãos o chão rochoso. - E-e-e-ele está vindo. ELE ESTÁ VINDO! - Gritou, babando, em direção aos mercenários, que apenas cruzavam os braços. O homem voltou suas atenções ao chão, mesmerizado. - Não há lugar para se proteger. Não há lugar para se esconder. E-estamos t-todos mortos...

 - Senhor Lester, o senhor está seguro. - Disse um dos homens, bem grande e com o cabelo tosado. - Nós estamos preparando o abrigo que o senhor pediu. Em algumas semanas, poderemos...

 - SEMANAS? - Gritou ele, cuspindo na direção do mercenário. - P-PRECISAMOS DE... DE HORAS! MINUTOS! ELE ESTÁ AQUI, E PODERÁ NOS MATAR A QUALQUER MOMENTO! Z-Z-ZEM... - Ele se calou com as mãos na boca, parecendo aterrorizado demais para concluir a palavra. Todos os outros ali na caverna por um instante inconscientemente gelaram, como se, no fundo, soubessem de quem o velho Lester estaria falando. Julie quase escorregou na rocha, e Sasha a ofereceu um olhar tenso e reprovador.

 - Senhor, se acalme. - Pediu outro homem, se ajoelhando ao lado do velho. - Nós estamos aqui para defendê-lo.

 - Me defender? - Lester aproximou rapidamente o rosto do mercenário, que instintivamente recuou. - A Aliança... a Aliança inteira... todos os heróis que já possuímos... não conseguiram detê-lo. Desde o início dos tempos, tudo que fizemos foi afastá-lo. SÓ QUE ELE JÁ ESTÁ AQUI! - O velho tentou escavar a terra, como se quisesse se proteger no centro da terra. Julie engoliu em seco. Agora estava claro o que havia o aterrorizado - S-s-s-sabe de quem estou falando... garoto? - Grunhiu em voz aguda, apoiando a testa no chão.

 - Quando ele falar, faça seu ataque. - Disse Sasha no ouvido da companheira, que novamente sentiu o coração tentar saltar pela boca. Julie se virou para a outra garota, e percebeu que ela suava e tinha os olhos nervosamente arregalados. Ambas haviam descoberto o mistério.

 - HEIN? - Gritou o velho, segurando o mercenário mais próximo pelo colarinho. - SABE. DE. QUEM. ESTOU. FALANDO? - Julie se preparou, tentando se concentrar. Todos ali sabiam a resposta, mas ninguém se atrevia em dizer seu nome em voz alta. - SABE? - A garota sentiu que liberaria seu poder de forma involuntária com a revelação do homem, e esticou o braço levemente trêmulo no alto. Sasha desviou os olhos, apoiando seu peso em um joelho enquanto que espalmava as pedras abaixo de si. - RESPONDA!

 - O-o senhor está falando de... - Tentou começar o mercenário, mas o velho calmamente colocou o dedo em seus lábios, parecendo extraordinariamente lúcido. Ele se aproximou do rosto do outro homem, sussurrando uma palavra tão baixa, mas que no entanto conseguiu ser ouvida por cada uma das nove pessoas ali.

Zemopheus.

 - AGORA! - Gritou Sasha, chamando a atenção dos outros para as duas membros da Aurora. Os mercenários, avidamente nervosos, olharam para a elevação em pânico enquanto que Lester afundava o rosto no chão. Julie soltou o ar preso e liberou todas as suas energias na palma da mão, que começou a brilhar intensamente. Era como se uma represa tivesse se rompido, sem controle, de forma que a luz branca preencheu completamente a caverna. Os mercenários caíram gritando com as mãos nos olhos, enquanto que Sasha os abria.

 - Vá! - Gritou Julie, exausta e com o antebraço colado nos olhos. A companheira disparou para baixo, célere como o vento. Ela começou saltando em um homem caído no chão, chutando seu rosto para apagá-lo. Virou o rosto e encontrou outros dois na mesma posição, e correu até eles para bater suas cabeças uma na outra. Havia algo querendo sair de seu peito, como um monstro alimentado pelo nervosismo de momentos antes. As Águias Obstinadas estavam desorganizadas, atacadas pela surpresa, e Sasha decidiu aproveitar o momento para capturar Lester.

 - S-SOCORRO! - Gritou ele, quebrando levemente o encanto de terror em seus contratados. A membro da Aurora, no entanto, estava rápida demais para que conseguisse reagir à qualquer coisa, e um dos homens, desesperado, se agitou cego e sem querer se colocou na direção da garota. Ela foi acertada no estômago por um cotovelo perdido, e estancou pelo golpe. Sua cabeça foi para frente, cuspindo saliva e sangue, e ela caiu de joelhos deslizando pelo braço do mercenário, segurando a região ferida. Imbecil, era tudo que conseguia pensar. Seu desespero havia a deixado inconsequente, e agora pagava um preço terrível. O homem, percebendo que havia acertado alguma coisa, atacou o ar em busca do alvo, desferindo acidentalmente um soco no rosto de Sasha, que caiu para trás. Seu nariz trincou audivelmente, e ela colocou a mão livre na face. Com a visão embaçada, viu Lester se levantar e correr histericamente em direção à saída, enquanto que os outros dois Águias se reorganizavam, ainda meio cegos.

 - Sasha! - Gritou Julie, deslizando para auxiliá-la. A companheira, por sua vez, recusou a ajuda.

 - Vá atrás dele! - Gritou Sasha, se forçando a ficar de pé, cambaleante. - O objetivo da missão é capturar Lester e impedir que ele volte aqui! Impeça-o de fugir! - Mesmo rangendo os dentes, Julie a obedeceu, correndo pela lateral da caverna e entrando em perseguição, deixando a outra cuidar do que restou das Águias, que mesmo com a visão prejudicada continuavam sendo ameaças. - Bem. - Começou ela, limpando o sangue do rosto. - Quem é o primeiro?

 A garota loira corria como podia, atravessando o corredor estreito em passadas largas. Conseguia enxergar seu alvo muito à frente, disparando com toda a força do desespero. Para um homem naquela idade, era uma velocidade realmente considerável. Ele conseguiu sair da Garganta Cortada antes que Julie chegasse à metade do trajeto, e agora seguia em direção à estrada. Ela começou a ficar apreensiva, e tentou apressar o passo. Se Lester chegasse ao rio Venulis, talvez nunca mais conseguiria ser encontrado.

 Eis que surgiu uma outra figura, correndo para impedir o homem de cabelos brancos. De início a garota não conseguiu identificar quem era, mas ao ver aquela trança tão familiar, não teve mais dúvidas. Koga havia visto o homem e se posto a persegui-lo, doente ou não. Ele o estava alcançando no momento em que Julie atravessou a fresta, um pouco mais calma. O amigo capturaria o alvo e tudo estaria resolvido.

 Infelizmente para os dois, o rapaz ainda estava muito abalado pela pressão atmosférica, e aquela corrida havia sido o suficiente para esvaziar seu fôlego. Ele diminuiu a velocidade ao chegar perto de Lester, que , tomado por uma histeria louca, socou com força o membro da Aurora na boca. O mundo de Julie pareceu parar por um instante, enquanto ela via o companheiro desabar e cair para fora da estrada, em direção ao Venulis.

 - KOGA! - Gritou ela, voltando a correr. Percorreu os últimos metros como uma bala, tropeçando, deslizando e se segurando. Pelo canto do olho viu Lester correr estrada abaixo, mas ele não era mais importante. A garota sentiu o desespero crescer a cada segundo, e se esforçava para continuar correndo. Alguém, por favor, alguma coisa, rogou aos deuses.

 Nesse instante uma mancha negra e azul se emparelhou com ela, ultrapassando-a em seguida. O coração da loira ficou imensamente mais leve, e ela diminuiu o passo. Sasha chegou à beira da estrada, e olhou para baixo na direção de onde o amigo havia caído. Em seguida, ela virou o rosto para observar a companheira, que continuava correndo, e girou para correr em direção à Lester, que seguia a estrada. Por um instante Julie quase parou em choque, mas se lembrou o que estava acontecendo e voltou a correr, gritando a plenos pulmões. - SASHAAAA!

 Alheia à qualquer resposta, ela chegou à estrada com forças redobradas. Olhou para baixo, para a encosta de quase setenta graus, vendo que o amigo estava alguns metros abaixo, salvo temporariamente por uma pedra irregular que o havia parado. Ele estava de olhos fechados, visivelmente em dor, e Julie saltou vale abaixo para salvá-lo. As pedras escorregadias quase a derrubaram também no primeiro passo, fazendo com que ela jogasse o corpo para trás para se apoiar. Caiu prendendo um braço entre as rochas, e um estalo de dor subiu dos dedos até o pescoço, mas ela continuou. Se impeliu para frente, cambaleando desajeitadamente até onde o amigo jazia.

 - Koga? - Perguntou esbaforida, sentindo os dedos quebrados pulsarem em agonia. O companheiro estava ofegante, mas aparentemente sem nenhum dano sério. A garota o puxou com a mão boa, e olhou ladeira acima para calcular a dificuldade de seu caminho de volta. Naquele instante a rocha em que estavam apoiados se soltou, começando a cair em direção ao rio. - Merda! - Praguejou Julie, enfiando os dedos quebrados na rocha para retomar o apoio. A dor quase a fez desmaiar, mas ela se prendeu. Contudo, isso era temporário, pois não tinha forças para se segurar junto com outra pessoa. Desesperadamente ela viu os dedos torcidos começarem a deslizar, e seu pé de apoio perder o suporte, fazendo-a cair de joelhos. Seus pensamentos foram para a irmã, que se encontrava tão longe. Não conseguiu pensar em palavras de despedida, pois a mão se soltou e ela começou a cair.

 Algo no entanto agarrou seu pulso, estancando sua queda. Julie olhou para cima, e viu Sasha segurando-a com os dois braços, suada e exaurida. - Se jogue para cima! - Ordenou ela. A garota mordeu a língua para segurar uma resposta afiada, mas obedeceu à ordem. As duas se apoiaram uma na outra, e com esforço conseguiram levar Koga até à estrada, onde Lester se encontrava desacordado. Deixaram o garoto no chão, descansando, e a garota de cabelos azuis colocou as mãos no quadril, respirando fundo. - Vamos descansar alguns segundos. Depois, iremos... - Nesse momento Julie foi até ela com os pés batendo forte, e os braços rígidos ao lado do corpo.

 - O que. Pensa. Que. ESTÁ. FAZENDO? - Esbravejou ela, gritando tão forte as duas últimas palavras que elas continuaram a ecoar no vale por longo segundos. Sasha arregalou os olhos, tentando recobrar a compostura.

 - O que foi desta vez? - Perguntou, tentando controlar outro ataque de nervos. Precisava mostrar o exemplo ali.

 - Você abandonou Koga! Você o deixou à morte. - Disparou Julie, lacrimejando fracamente e apontando o dedo no rosto da outra. - Você o viu, e deu às costas! Mesmo que não considere ele seu amigo, pouco importa! Koga é um membro da Aurora, sua duas-caras!

 - Eu não o abandonei. - Disse pausadamente Sasha, juntando todas as suas forças em seu auto-controle. - Eu vi que você estava chegando. Eu sabia que você iria salvá-lo à tempo. Por isso, decidi me focar em Lester, nosso objetivo!

 - Não, você correu atrás dele porque precisava ser a pessoa mais importante nessa missão! - Acusou Julie, dando um passo na direção de Sasha, que manteve a postura. - Você deseja tanto essa... essa maldita honraria que ignora tudo que acontece ao seu redor!

 - Eu não ignorei nada! - Cuspiu a garota, perdendo um pouco do controle e apontando para o peito da outra. - Eu analisei a situação e fiz o que era certo! Se saísse uma única vez da segurança da sede e fizesse alguma coisa de útil para a guilda, saberia disso! - A voz dela ficava mais aguda a cada palavra. Julie estreitou os olhos, absorvendo o que ouvia.

 - Talvez eu fique lá dentro porque lembro que existem pessoas na Aurora, e elas estão passando por momentos difíceis! - Respondeu ela, fechando o punho sadio. - Eu não evito problemas que não posso resolver com socos e pontapés, dando as costas quando as coisas ficam ruins!

 - Covarde! - Disparou Sasha, dando um passo à frente.

 - Arrogante! - Respondeu Julie no mesmo tom, também se aproximando.

 As duas ficaram se encarando, ofegantes ao extremo, com as testas extremamente próximas e olhares fixos sem piscar. O vento soprou diversas vezes, mas nenhuma delas arredava o pé. Foi apenas quando Koga tossiu forçosamente, de modo a chamar atenção, que o feitiço foi quebrado. Depois de mais uma longa encarada, Julie se encaminhou na direção dele, enquanto que Sasha virava as costas e cruzava os braços.

 - Temos vinte minutos para descanso, e depois iremos voltar à Helleon. - E dito isso, ela se afastou para voltar à Garganta Cortada. A outra garota se ajoelhou perto do amigo, verificando se ele estava bem. Não parecia haver nada irreversível ou grave, e ela suspirou em resposta.

 - Julie, eu... - Começou Koga, mas a garota apenas deu um tapa, um pouco mais leve do que o costume, em sua cabeça para se levantar em seguida.

 - É tudo culpa sua. - Disse de forma sombria, e se virou para conferir se Lester continuava apagado. O vento novamente soprou, passando pelos membros da Aurora e continuando seu trajeto, sem encontrar obstáculos até chegar no rio. 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Aurora: Capítulo 11 - Bestas Ferozes


 - Foi um jantar excelente, senhora Alba. - Disse o prefeito Visandre, entrando educadamente na sala da líder da Aurora. Ele era um homem alto e bronzeado, com olhos castanhos e alertas por trás de seus óculos finos. Seu cabelo era curto, negro e penteado para trás, e seu rosto era longo e reto. Vestia um terno marrom por cima de uma camisa branca, perfeitamente alinhados no seu corpo magro. 

 - Fico agradecida por isso, senhor prefeito. - Respondeu Stella Alba, que usava um vestido preto por baixo do terninho azul-claro, da mesma cor que seus cabelos, que naquele dia estavam arrumados em um elegante rabo-de-cavalo. Ela manteve um sorriso simpático, mas por dentro estava aliviada pelo fim da refeição que haviam compartilhado com o restante da guilda. Foram duas horas de uma conversa extremamente entediante sobre economia e política, que seria prolongada pelos assessores do prefeito, para desespero dos outros membros da Aurora. - O senhor pode se sentar. - Disse ela, indicando com a mão sua mesa, no centro da sala. Stella havia passado quatro dias arrumando aquele aposento, que havia passado do puro caos para um recanto feminino e organizado. Haviam vasos de flores acima dos armários, e um cheiro suave de lavanda tornava-o ainda mais agradável. O prefeito se sentou de frente à mesa, enquanto que a líder ocupava seu lugar. - Bem, acho que podemos -- Começou ela, mas foi interrompida pelo aceno de mão do outro homem. 

 - Já sei o que irá me pedir, Stella. - Declarou o prefeito com a mão espalmada para a senhora Alba, enquanto revirava o paletó com a outra. - E já tenho minha resposta. - Ele espalhou três papéis na mesa. Stella puxou a caixa dos óculos, que finalmente havia achado no meio de sua arrumação, abrindo-a distraída. Colocou as lentes, puxando os três papéis. Notou imediatamente que as informações ali estavam arrumadas de uma forma bastante familiar. 

 - São... missões de guilda? - Perguntou ela, ajeitando os óculos enquanto franzia as sobrancelhas. Realmente, eram contratos de missões, todos preenchidos de forma condizente. No entanto, havia algo ali que se destacava do resto.

 - Sim, e são missões encaminhadas. - Se adiantou Visandre, parecendo saber onde os olhos da outra mulher estavam. Stella levantou a cabeça, encarando o prefeito com os olhos arregalados. Missões encaminhadas eram uma das maiores conquistas que a Aurora poderia conquistar. Por serem feitas especificamente para uma guilda, não haveria custo nenhum para aceitá-las, e recebê-las aumentaria o renome deles, pois indicaria extrema confiança do contratante. Stella engoliu em seco, com um pé atrás. Tinha que haver alguma pegadinha. Não eram tão grandes nem tinham um histórico recente de competência para receber uma missão encaminhada. Quanto mais três.

 - Sobre o que elas são? - Perguntou a mulher de forma controlada, enquanto seus olhos liam atentamente o contrato e sua mente trabalhava furiosamente para associar todos os dados ali.

 - Três áreas nos arredores de Helleon foram ocupadas por arruaceiros. - Disse ele, puxando um frasco de dentro do paletó. - Para nós termos, ah... bom-relacionamento com nossos vizinhos, fiz com que sua guilda assumisse essas tarefas. - Visandre sorriu, se reclinando minimamente na cadeira enquanto que bebia um curto gole de uma substância amarela e pastosa. Quando terminou, seus olhos estavam afiados. - Sejamos sinceros, Stella. Não há forma de vocês recusarem meus presentes. A Aurora necessita reconquistar seu renome. - Ele esticou a mão, segurando os três contratos. - Esse é o jeito mais fácil. Além do mais, cumprir essas missões garantirá à vocês seis meses de impostos pagos pelo meu próprio bolso. - Ele se reclinou novamente, cruzando as mãos à frente do rosto. - O que me diz?

 Stella engoliu em seco, pressionada pelo jeito incisivo do prefeito. Ela apertou as mãos nervosamente e voltou a encarar os contratos, procurando algo fora do eixo. No entanto, os benefícios daquelas missões ocultavam sua mente. A Aurora estava numa posição financeira deplorável, e seis meses sem impostos lhes dariam uma chance de se reorganizar financeiramente. Só que estavam falando de arriscar a vida de seus membros... - Por quê a Aurora? - Perguntou ela, sem retirar os olhos das folhas. O prefeito se levantou, como se a conversa já estivesse terminada.

 - Nesses tempos em que vivemos, uma cidade é forte apenas se possuir uma guilda forte. Caso a prefeitura desejasse realizar uma tarefa, seria muito melhor se o dinheiro ficasse entre nossas divisas. - Ele se apoiou na mesa, encarando a mulher nos olhos. - Estamos nos ajudando, Stella. A questão é: a Aurora deseja ser ajudada? - A líder manteve o silêncio por algum tempo enquanto continuava encarando Visandre. Tudo aquilo estava muito suspeito, mas não havia opção. Era aceitar ou a falência. Pressionou os dedos com força, entregando os pontos.

 - A Aurora irá realizar essas missões. - Declarou, se levantando. - Irei mandar minhas melhores equipes. O senhor pode ter certeza de que seremos capazes disso.

 - Eu espero que sim. - Respondeu o prefeito, se virando para sair da sala e deixando Stella sozinha, atormentada pelos seus pensamentos inquietos.

AURORA
CAPÍTULO 11: BESTAS FEROZES

 - WIEDER! - Gritou com toda força Dom, correndo desesperado em direção ao companheiro. O anão olhou para trás e gelou ao ver a enorme aranha, grande como uma mesa e revestida de símbolos roxos berrantes em torno do corpo negro, se arquear para atacá-lo. Ele ficou imóvel, esperando o golpe fatal, quando um disco borrado do tamanho de sua cabeça zuniu ao seu ouvido, acertando a besta em cheio. O aracnídeo recuou, zonzo, e partiu desajeitadamente em disparada.

 - Santos deuses piedosos... - Ofegou o anão, quase caindo no chão. - No que nos metemos? - Ele se sentou em uma rocha lisa, recuperando o fôlego que havia sumido. Estavam em uma densa floresta tropical, chamada de Floresta de Hyannien. Ficava cinquenta quilômetros ao sul de Helleon, crescendo ao redor de uma curiosa cadeia montanhosa em forma de lua crescente, com o mar se ajeitando em uma baía no centro do meio-círculo. Dominic, cuja alta estatura contrastava com o pequeno corpo de Wieder, se sentou ao lado do companheiro de Aurora.

 - Acho que não deveríamos nos manter parados. - Alertou, mas estava quase tão cansado quanto o outro. Haviam corrido pela mata fechada durante horas, batalhando com metade da floresta para continuarem vivos enquanto que superavam o terreno inclinado. A camisa cinza do homem estava encharcada, e a mancha de suor descia até a calça verde-escura. Ele apoiou as costas na enorme rocha coberta de musgo que os dava cobertura, e arrastou as botas pela grama fofa e úmida. - Qualquer uma daquelas coisas pode nos emboscar aqui. Não seria a primeira vez hoje.

 - Dois segundos. - Pediu Wieder, retirando o gorro e o usando para secar a testa. O vermelho da peça se escureceu com o suor, combinando muito mais com a camisa molhada, que se escondia por debaixo de um macacão negro. O anão esticou o pulso à sua frente, contemplando a pulseira dourada. De acordo com os testes que havia feito na guilda, só teria forças para ativá-la duas vezes antes de dormir. E já havia a ativado mais cedo. Ele rangeu os dentes, amaldiçoando sua própria incapacidade. Se ao menos tivesse conseguido compreender melhor aquele artefato, talvez não estariam na situação em que se encontravam.

 Um farfalhar de folhas varreu os pensamentos e o cansaço dos dois, que imediatamente se levantaram. A mata fechada à frente deles balançou ameaçadoramente, escondendo o que parecia ser um vulto alto. Eles se retesaram, tensos, mas suspiraram de alívio ao ver a forma de Marcus se materializar.

 - Você nos deu um susto e tanto, garoto! - Riu Dom, pondo a mão grande nas costas do rapaz. Ele não reagiu a isso, preferindo os encarar com seu único olho.

 - As bestas os encontraram? - Perguntou ele, apoiando as costas em uma árvore, cruzando os braços enquanto que Dominic e o anão voltavam a sentar nas pedras. Marcus estava extremamente cansado, reparou Wieder, mas ele tentou se recompor de forma mais sutil.

 - Umas Aranhas Temerosas, mas conseguimos nos virar. - Respondeu o anão. - E você?

 - Encontrei nosso alvo. - Respondeu o garoto sem alterar a voz. Os outros dois se alertaram. Haviam viajado à Floresta de Hyannien em uma missão para desocupar a Torre de Marfim, uma construção branca e escondida no meio da mata, que havia sido invadida por arruaceiros. Quando chegaram lá, descobriram que a torre estava sendo transformada em um depósito ilegal de bestas selvagens, organizado por um humano alto e loiro chamado de Jamie. Infelizmente ele havia percebido a aproximação dos membros da Aurora e soltado suas criaturas em cima deles, que recuaram forçadamente. Desde então, não haviam conseguido encontrar o caminho de volta. Até agora.

 - Onde? - Perguntou Dom, se levantando. Wieder ficou de pé também, esfregando o suor da testa. Maldita umidade, pensou. Marcus, por sua vez, apontou para o norte.

 - Vinte minutos de caminhada até lá. No entanto, devemos nos preocupar. - Ele começou a andar, convidando os companheiros a o seguir. - Pelo que eu vi, ele usa uma Flauta de Letham para controlar suas bestas a nos atacarem. E mesmo que a maior parte delas tenha vindo em nosso encalço, ele mantém duas criaturas ao seu lado para proteger a Torre de Marfim.

 - Perfeito. - Resmungou Wieder. Os três seguiram floresta adentro, avançando pelo terreno acidentado, e o silêncio era apenas quebrado pelo farfalhar das folhas e zumbidos dos insetos. As Aranhas Temerosas na região afastavam qualquer forma de vida um pouco maior do que um polegar, afugentando os pássaros e outros animais silvestres. Isso dará um belo trabalho de contenção ambiental, pensou o anão enquanto escalava um tronco caído. Que bom que isso não era problema dele.

 Finalmente, chegaram à construção branca, localizada no meio da cordilheira em forma de lua crescente, oferecendo uma visão bastante impressionante da baía abaixo. Um posto de depósito durante a Guerra das Fronteiras, fora completamente abandonada nesses milhares de anos pacíficos na região. No entanto, a Torre de Marfim resistia bravamente ao tempo, muito pelo fato de ser protegida pelas montanhas atrás de si. Supostamente era um trabalho de fadas, embora não possuísse os característicos ornamentos e embelezamentos faéricos recentes. Era simplesmente uma torre de base redonda e baixa, com um portão de madeira e pequenas janelas ao redor de sua circunferência.

 Os membros da Aurora se aproximaram com cautela, observando os arredores. Haviam entrado antes por uma janela lateral, mas todos os orifícios ao nível do chão haviam sido selados de forma rudimentar com tábuas de madeira. Marcus se ajoelhou, estreitando o olho.

 - Vamos ter que passar pela porta. - Disse ele, se virando para os outros dois. - As janelas devem estar vigiadas depois da última vez.  Acho que só nos resta tentar o mais óbvio. - Wieder se mexeu em contragosto, mas não conseguia pensar em plano melhor. Assim, os três se puseram a caminhar de forma cautelosa até a entrada da torre.

 O anão sentia um temor crescer dentro de seu peito, andando sem proteção no meio da clareira. Aquela não era uma missão em que poderia morrer com glórias. Caso fracassasse ali, seria apenas uma nota no rodapé da Aurora, desconhecido por todos. Precisava sobreviver, para conquistar sua importância. Ele levantou a cabeça, encarando a Torre de Marfim, solitária no meio da floresta. Wieder já abaixava a cabeça, quando notou um brilho verde em uma das janelas superiores.

 - CUIDADO! - Gritou, mas já era tarde. A enorme fera saltou na direção dos membros da Aurora, revelando sua forma à luz forte do sol. Era parecida com um tigre, com quase três metros de comprimentos por um e meio de altura. Tinha pelos de um verde forte, com listras negras se espalhando pelo corpo. Suas garras pareciam adagas, e seus dentes eram brancos como as paredes da torre. Era um Tigre de Jade, e ele mirava o anão.

 Wieder segurou a pulseira de ronatto em um ínfimo de segundo, liberando sua energia. Seu corpo cresceu e se alongou, transformando-o em um golem de pedra amarelada. Ele imediatamente levantou as mãos à frente de corpo, se protegendo da fera que saltava em sua direção. O peso do tigre o fez cair de costas, sentindo as garras, de alguma forma, atravessarem o ronatto. No entanto, seus olhos continuavam fitando a janela da Torre de Marfim, pois nela estava sentando um homem alto e loiro, vestido de um traje vermelho com uma capa negra e um chapéu decorado com uma pena. Jamie, o contrabandista de bestas selvagens, estava tranquilamente apoiado no suporte, tocando uma flauta de madeira em suas mãos e liberando um som imperceptível aos ouvidos humanos.

 Naquele mesmo instante, as portas frontais se romperam quando uma forma esférica e roxa atravessou a madeira, rolando com violência na direção do restante da Aurora. Dom e Marcus saltaram para longe, escapando por um triz de serem atropelados, enquanto que a criatura dava meia-volta e se desenrolava. Parecia uma lacraia negra, também gigante, com uma carapaça púrpura e dura servindo como um exoesqueleto. Duas antenas, mais parecidas com chifres, saíam da cabeça da besta, que os encarava com seus olhos amarelos. O Venolípede sibilou, vibrando as antenas.

 - Shitto. - Praguejou Wieder em sua própria língua, segurando o Tigre de Jade. Pensou em jogá-lo para longe, mas isso apenas acrescentaria um novo problema à eles, visto que o anão não conseguia se mover com agilidade o suficiente para proteger os outros dois dos ataques da fera. Assim, se viu preso ao animal, esperando que os outros pudessem se livrar do Venolípede sozinhos.

 A criatura voltou a se enrolar, disparando na direção de Dom. Ele retirou um botão da roupa, segurando-o com firmeza até que ele se expandisse, ficando do tamanho de uma roda de carroça. O homem o jogou na direção da fera, mas o objeto foi destroçado com facilidade. - Dom! - Gritou Marcus, mas já era tarde. A lacraia acertou seu alvo em cheio, jogando-o para longe em um espirro de sangue. O garoto rangeu os dentes, encarando o flautista. Esticou sua mão, tentando focar em seu poder, mas a volta do Venolípede o fez pular para o lado, quebrando sua concentração. Enquanto isso, Wieder continuava segurando o Tigre de Jade.

 - Vai ter que ser você, então. - Resmungou Marcus, apontando a mão para a lacraia gigante. Um pequeno ponto ao lado da besta pareceu aspirar o ar ao redor, enquanto que o rapaz se concentrava. O ponto em seguida explodiu, liberando uma corrente de ar para todos os lados. O Venolípede caiu de costas, se retorcendo para voltar a ficar de pé. O garoto, por sua vez, respirou forçadamente enquanto limpava o suor da testa.

 Enquanto isso, Wieder tentava manter o Tigre de Jade em seu aperto, mas era em vão. A criatura conseguiu se balançar para longe, recuando até a beira da clareira. O anão em forma de golem rapidamente se apoiou em um joelho, ainda muito temeroso em ficar de pé com aquelas pernas longas. Ele não tirou os olhos da fera esverdeada, preparado para saltar em cima dela caso tentasse atacar seus companheiros.

 Contudo, haviam outros perigos naquele lugar. E o golem só se lembrou disso quando ouviu o som de terra esmagada atrás de si. Tentou se virar, mas conseguiu apenas sentir o golpe fulminante do Venolípede em suas costas. O ronatto rachou com um barulho de trituração, e um grito ecoou na floresta enquanto o anão caía de frente na grama.

 - Wieder! - Alertou Marcus, mas ele também havia se esquecido de que haviam outros adversários na clareira. O Tigre de Jade saltou para atacá-lo, fincando suas presas no braço indefeso. O rapaz gritou, sentindo o sangue espirrar em seu rosto, e conjurou um novo ataque com a mão livre. Outra explosão de ar agitou o local, mas pela proximidade acabou jogando o garoto e a fera, que rolaram para longe. O líquido vermelho acompanhou o membro da Aurora, que sentiu a cabeça continuar girando, mesmo depois de estatelar as costas na grama. Isso não parecia bom, pensou ele com a mente enevoada. De fato, parecia o fim.

 Enquanto que Marcus lutava contra o desespero, um assobio cruzou o ar. Ele se virou, ao mesmo tempo em que o flautista, do alto da torre, também olhou descontraído. O que eles viram, no entanto, fez com que apenas um gelasse. Dominic estava em pé, sem camisa e com as costas banhadas de sangue, enquanto que segurava algo estranho nas mãos. Parecia uma trouxa de tecido cinza, que havia sido enrolada de forma a embrulhar um objeto aparentemente pesado em uma das pontas. Marcus logo percebeu que era a camisa de Dom, esticada pelos poderes expansionistas do companheiro.

 - Tome o meu pagamento pela sua exibição, flautista! - Gritou ele, girando o braço para jogar o projétil embrulhado. Jamie conseguiu apenas arregalar os olhos antes de ser acertado em cheio no rosto, desequilibrando-o a ponto de cair da Torre de Marfim. O corpo do homem se estatelou no chão com um baque surdo, e as outras bestas imediatamente ficaram atônitas. - Rápido, antes que elas se recuperem! - Gritou Dominic.

 Como que ressuscitando de suas covas, Wieder e Marcus juntaram seus últimos cacos de energia para atacar. O anão se apoiou com os braços, tremendo fortemente até se jogar em cima do Venolípede. A carapaça se quebrou, e a besta morreu guinchando. O rapaz por sua vez levantou o braço sadio, concentrando todas as suas forças em uma grande explosão de ar, que lançou o Tigre de Jade barranco abaixo. A corrente foi tão forte que até mesmo Dom teve de se apoiar na parede da torre para não cair, mas ao término da agitação tudo estava terminado.

 - Bom trabalho, pess... - Começou ele, mas os outros dois já haviam desmaiado. Wieder havia até mesmo retornado à forma de anão, e jazia de cabeça para baixo, mergulhado no que havia sobrado de seu adversário. Dominic suspirou, mantendo seu apoio nos tijolos para não cair. Com a adrenalina baixando, o cortes nas costas estavam cobrando sua vitalidade, que jorrava das costas com o líquido vermelho. A visão dele ficou turva, e sentiu o lado esquerdo do corpo deslizar pelos tijolos da Torre de Marfim. Bem, conseguiu pensar ele antes de desmaiar. Ao menos, a missão estava cumprida.