sexta-feira, 27 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 19 - Promessa de Sangue


AURORA
CAPÍTULO 19 - PROMESSA DE SANGUE

 Havia um bar no centro de Wildest, conhecido por suas bebidas fortes e característico cheiro de alho e geralmente bastante apinhado. Um homem saiu deste estabelecimento, empurrando as portas duplas com força desmedida para em seguida se debruçar sobre a bancada da calçada. Estava completamente bêbado, com o nariz vermelho e um sorriso débil, e decidiu que precisava desesperadamente do cachimbo em seu bolso. Enquanto se concentrava nessa árdua tarefa de recolher o objeto, sentiu algo se aproximar pelo canto do olho direito. Quando levantou a cabeça avistou uma garota de longos cabelos azuis segurando um anão barbudo em seus braços, correndo mais rápido do que um ser humano conseguiria atingir. Ela passou pelo bar levantando uma nuvem de poeira, que envolveu o bêbado por completo. O homem ficou parado por alguns segundos, cambaleante e com os olhos ardendo, até que se virou e voltou para o estabelecimento. O quer que tenha bebido, era bom.

 A garota por sua vez sentiu que havia ultrapassado seus limites. Naquele mesmo instante seus joelhos cederam, levando-a ao chão. Ela jogou Wieder para o lado de forma a protegê-los e caiu com força, rolando sem controle. Não parou até encontrar uma bancada da calçada, onde suas costas se chocaram com força na madeira e ela caiu de rosto na terra. Tentou se levantar imediatamente, mas a exaustão havia cobrado seu preço. Sasha segurou com as forças que lhe restavam uma pequena pilastra, lutando contra o desfalecimento. Arfava sem parar, com o corpo encharcado pelo suor e sangue dos pequenos ferimentos.

 - Ai. - Soltou o anão do outro lado, se levantando com dificuldades. Ele bateu nas roupas para afastar a poeira e se virou para encarar a companheira, que se encontrava em posição delicada. - Sasha, você está bem? - Perguntou, ajeitando o macacão.

 - Só... alguns minutos... - Disse a garota entre os intervalos de sua respiração forçada, se esforçando para não vomitar. Sentia a cabeça bem leve, e ficou agarrada na pilastra para não cair. Aquele seria seu limite, perguntou a si mesma. Só aquilo? A frustração se juntou às tantas outras daquele dia, e seus dedos se fincaram na madeira com raiva.

 Após algum tempo em silêncio ela ficou de pé, um pouco trêmula e com os lábios bem fechados. O anão se aproximou preocupado. - Está melhor agora? - Um aceno positivo de cabeça do outro lado não o tranquilizou completamente, mas era o que tinha. - Onde estão Amanda e Dalan? O que aconteceu com eles?

 - Eles... - Começou ela, respirando fundo para controlar a ânsia de vômito. Preferiu não olhar para o companheiro. - Eles estão bem. Ficaram para trás para nos dar tempo de fugir.

 - Dalan e Amanda ficaram na sede dos Libertadores? - Perguntou Wieder, indignado. - E vamos acreditar que tudo deu certo? Eles podem ter sido capturados, pelo que sabemos! Devemos voltar! - Exclamou com os braços abertos.

 - Não. - Disse a garota por entre os dentes. - Wieder, nós estamos aqui por uma missão, e devemos cumpri-la. Tenha confiança em seus companheiros. - Sasha voltou a desviar o olhar, se apoiando na bancada e agarrando a madeira com os dedos. Estava tremendamente exausta, incapaz de conseguir manusear diversos pensamentos. A preocupação com os outros a orbitava, mas havia apenas um foco. A missão. Só lhe restava confiar em Dalan e Amanda.

 O anão ficou encarando-a enquanto que Sasha permanecia em silêncio. - Tudo bem. - Disse ele finalmente, passando a mão pela barba. - Se quer tanto cumprir essa missão, que sejamos rápidos para ajudá-los. Só que para isso você precisa me deixar ter as rédeas da situação.

 - O quê? - Perguntou indignada a garota, saindo de seu estupor e se virando para ele. - Existem hierarquias, Wieder! Eu estou no comando, e faremos o que eu mandar!

 - Hierarquias... - Riu o companheiro, colocando as mãos no bolso e virando a cabeça. - Sabe, eu vim de um lugar bem merdinha. Manipulação social, líderes egoístas, pouca recompensa para o trabalho... você pode escolher. Só que existia uma coisa que eu me sinto obrigado a admirar. - Ele encarou a garota, com um olhar sério e um dedo esticado. - Em uma reunião de trabalho, todos tinham voz. Não importa a classe, contatos ou experiência, qualquer um podia falar o que quisesse e seria ouvido. E assim fizemos obras magníficas. - Ele sorriu, estreitando os olhos e mantendo o dedo em riste. - E agora, ouça a voz da experiência. Eu sei o motivo de seu plano não ter funcionado.

 - O que quer dizer com isso? - Perguntou a garota, se irritando ainda mais.

 - Vamos recapitular. - Começou ele, subindo na calçada e andando ao redor dela. - Nossa missão é descobrir se a Caverna dos Reclusos está vazia, correto?. - Um aceno positivo do outro lado. - E, visto que a localização desse lugar é uma lenda, decidimos perguntar para a facção criminosa que supostamente possui esse marco em seu território.

 - Apresse-se, Wieder. - Interrompeu Sasha de forma ríspida. - Eu disse tudo isso a vocês no caminho para cá. Você sabe que os milicianos jamais revelaram os mapas de suas áreas, e a identificação de qualquer local pelo lado de fora é quase impossível. Não temos tempo para rodeios. - Completou ela franzindo o cenho.

 - Resumindo, você acreditou que pudesse dialogar com milicianos. - Se apressou em dizer o companheiro, se aproximando. - E isso nunca iria funcionar. Não sei em que pedestal você coloca as guildas, mas os ladrões não compartilham do mesmo ponto de vista. Não é porque você é honrada e justa que todo o resto do planeta deve ser do mesmo jeito. - Começou o anão, parando ao seu lado. - Isso não funciona. Existem pessoas cujo senso de dignidade é tão baixo que só irão te enganar. Foi isso o que aconteceu na sede dos Libertadores, não? - Perguntou ele.

 A garota corou e permaneceu em silêncio. - Talvez. - Aquilo tudo era um pouco demais para ela no momento, que guardou tudo no fundo da cabeça. A missão era a prioridade, pensou.

 - Isso não vai acontecer comigo. - Proclamou o companheiro, estendendo as mãos com calma. - Veja, eu já tenho minha cota de anos nesse planeta. Já vi o pior que a raça humana pode fazer, e anotei tudo na minha cabeça. - Completou com o dedo na testa.

 - Qual é o seu plano então? - Perguntou Sasha, cruzando os braços. Estava tão cansada que permitiu que o anão dissesse sua ideia. Seria bom para verificar seu potencial, concluiu.

 - O nosso problema é que não sabemos onde fica a Caverna dos Reclusos, e precisávamos de localização de alguém da área. O seu problema é que você procurou ajuda no segmento mais baixo da sociedade. - Wieder aguardou um pouco e voltou a sorrir, demonstrando uma expressão de deleite interior. - Estou pensando em subir um degrau.

 Os dois caminharam por algum tempo, parando em cada bar de esquina para que o anão desse uma espiada lá dentro. Ele não chegava a entrar, preferindo observar o ambiente do lado de fora apoiado em alguma bancada. Sasha já estava se impacientando, com sua irritação crescendo no mesmo nível em que se recuperava fisicamente. Wieder havia acabado de entrar na guilda, e de algum modo ela havia o deixado tomar o controle da missão. No que estivera pensando? Quando esteve prestes a recuperar as rédeas da situação, o anão parou.

 - É aqui. - Disse ele, após uma espiada por baixo das portas duplas. Wieder se virou, encostando as costas na parede e encarando a companheira. - Escute. Eu sei que algumas coisas lá dentro podem parecer estranhas, mas não saia de perto de mim e aja quando eu pedir. Entendido? - Sasha franziu o rosto. Queria acabar com aquilo, mas precisavam cumprir a missão.

 - Certo. - Disse ela, admitindo a derrota e mordendo a língua. O anão sorriu e empurrou as portas duplas, adentrando o bar.

 O Promessa de Sangue, como era chamado o estabelecimento, já vira dias melhores. A área apertada, as janelas fechadas e o cheiro de álcool, fumo e suor contribuíam para um clima mais aprisionador do que acolhedor. A parede verde-musgo estava tinha sua pintura descascada em diversos pontos, e os copos rachados descansavam em mesas bambas. A maioria das pessoas ali se concentravam em suas bebidas amarelas e espumantes, tentando ao máximo ignorar o grande homem que fazia confusão no balcão.

 - APRESSA ISSO AÍ, RANSOM! - Gritou o homem, bebendo em uma grande caneca. Ele devia medir dois metros, era bem forte e vestia um chapéu de abas com um colete marrom por cima das roupas desarrumadas. Estava sentado em uma grande cadeira, e segurava uma mulher assustada pelos seios com a mão. O barman, um homem míope e miúdo com um terninho preto, correu para encher mais um copo. Quando Wieder entrou no bar, as pessoas o encararam por alguns instantes e voltaram a seus próprios afazeres. O arruaceiro não o percebeu até que o anão escalou a cadeira ao seu lado, com Sasha atrás dele.

 - Um copo de cerveja, por favor. - Disse o membro da Aurora, se debruçando sobre a superfície do móvel. O grande homem terminou de beber, batendo seu copo com estardalhaço na madeira.

 - O QUE TEMOS AQUI? - Perguntou ele, soltando a mulher. Ela se recolheu choramingando para o lado, deixando seu captor de frente com Wieder. - UM ANÃO EM WILDEST? PERDEU O CAMINHO DA MINA, INFERIOR?

 Sasha cerrou as mãos, preparada para qualquer violência. Seu companheiro, no entanto, continuou olhando para o barman com uma expressão tranquila e sorridente. - Qual seria o seu nome, bom senhor? - Perguntou descompromissadamente para o badernista ao seu lado.

 O homem não respondeu, mas se levantou e segurou Wieder pelo colarinho do macacão. Seu bafo de álcool dançava pela barba do anão, que se manteve calmo. Diversas cabeças se viraram para a cena, enquanto que Sasha se adiantava. Se o companheiro não tivesse a mandado esperar com um gesto da mão, teria atacado. - PARA VOCÊ, MERDINHA, SENHOR JEREMY. - Ele falava cuspindo, e diversos perdigotos voaram pelo ar.

 - Senhor Jeremy então. - Disse calmamente o anão. De alguma forma isso pareceu explodir o homem, que se preparou para lhe dar um soco. Já chega, pensou Sasha. Ela se adiantou, segurando o punho preparado do homem com a mão direita e girando o corpo, desferindo uma cotovelada com o braço esquerdo em seu rosto. Jeremy se desequilibrou para trás, e Wieder foi milagrosamente posto em sua cadeira. Sua companheira por sua vez pegou um copo do balcão, quebrando-o na cabeça do homem no chão.

 - Devia aprender a respeitar as autoridades, sabia? - Alertou ela, tateando cegamente em busca de outro copo. Infelizmente sua voz havia traído sua posição, dando a oportunidade que Jeremy precisava. Ele socou em sua direção, acertando em cheio o nariz. Ela caiu de costas no chão, segurando o rosto e sentindo o sangue escapar pela fresta dos dedos. Seu adversário ficou imediatamente de pé, tentando lhe desferir um chute. Sasha rolou para trás, se agachando atrás de uma mesa.

 - VOLTE AQUI! - Gritou o bêbado, jogando o móvel para longe. Antes que ele se espatifasse na parede, a garota pegou um copo na mesa ao lado e jogou-o em Jeremy. O vidro quebrou e a bebida o encharcou, mas o homem não pareceu se incomodar. Ele se adiantou, pegando a membro da Aurora pelo pescoço e a jogando contra o balcão. Sasha bateu as costas com força, e enquanto recuperava o ar uma mão envolveu seu rosto, prensando-o contra a madeira. Ela tentou se livrar, mas era impossível naquelas condições. A palma do homem a impedia de respirar, drenando suas forças. Se debateu inutilmente, encarando com o olho livre o adversário sorrir.

 De repente, um brilho amarelado tomou conta do bar escuro, trazendo consigo um cheiro mais forte do que o que estava impregnado na madeira. Jeremy se virou, irritado, mas imediatamente recuou ao ver o gigantesco golem de pedra atrás dele, quase batendo a cabeça no teto.

 - Olá, senhor Jeremy. - Disse Wieder, movimentando sua mandíbula de ronatto. O homem balbuciou algo incompreensível, soltando Sasha inconscientemente. A garota aproveitou a chance e bateu com uma pesada caneca em sua cabeça, finalmente o desmaiando. Ela arfou, recuperando o ar, enquanto que o anão voltava à sua forma natural. Com o bar em silêncio, ele voltou a escalar o banco perto do balcão enquanto que a companheira sentava ao seu lado. - Soltou o que estava preso? - Perguntou à ela.

 - Talvez. - Respondeu, limpando o sangue do nariz e ajeitando a maria-chiquinha direita. Wieder sorriu e se virou para o barman, que encolheu ao seu olhar.

 - Bom dia, bom homem. - Disse ele, se ajeitando no assento. - Gostaria de minha cerveja agora, por favor. E, se possível, também queria conversar com você sobre alguns... assuntos. - O funcionário demorou alguns instantes para acenar nervosamente a cabeça, correndo para encher o copo do anão.

 Alguns minutos depois, os dois membros da Aurora saíram do bar, encarando as ruas quentes e vazias de Wildest. Wieder estava animado, caminhando alegremente com as mãos nos bolsos. - Uma das principais regras de um bar: todo aquele que bater no valentão local será tratado como realeza. - Disse ele para a companheira, estendendo um dos dedos.

 Sasha não respondeu nada, de cara amarrada. Por mais que admitisse que fora um bom plano, ela não iria dizer nada ao anão. De qualquer jeito, o barman havia lhes dito sobre a localização da Caverna dos Reclusos, e agora só restava verificar se ela estava vazia, expulsar de lá os habitantes caso contrário e procurar Dalan e Amanda.

 Os dois caminharam por duas horas, impiedosamente iluminados pelo sol ferrenho acima. Nem mesmo tinham o suporte das sombras, visto que depois dos primeiros quarenta minutos de trilha eles haviam saído dos limites da cidade, adentrando o deserto dos Corredores de Pedra. Não parecia haver nada a muitas léguas de distância, exceto pedras ressecadas e cactos aleatórios. Quando Wieder já estava desistindo, chegaram ao objetivo.

 Se não tivessem a informação do barman, seria impossível determinar a localização exata da caverna. Isso acontecia porque a catacumba era marcada por três pedras caídas no meio do deserto, cada uma com uma altura de um metro e meio. De longe pareceria apenas mais um conjunto de rochas, mas um olhar mais atencioso revelava uma fresta entre os pedregulhos. Ali, haveria uma escada levando à Caverna dos Reclusos, escondida de todos os transeuntes normais. O problema era que os membros da Aurora não eram.

 - Fique aqui de guarda. Eu vou conferir se tem alguém lá dentro. - Ordenou Sasha para o companheiro, se enfiando na entrada. Wieder se apoiou nas pedras, cruzando os braços e fitando o deserto parado. Depois de quase meia hora, a garota voltou à superfície. - Ninguém. - Disse ela, com os olhos semi-cerrados, desacostumados ao sol forte.

 - Terminamos por aqui então? - Perguntou o anão, aliviado. - Agora só nos resta procurar Dalan e Amanda e podemos voltar para... - Ele não terminou o que ia dizer, arregalando os olhos para o horizonte. A garota se virou para onde ele mirava, e sentiu o coração parar. Havia uma carruagem à distância, parada em cima de uma elevação no terreno. Não havia nenhum homem à vista, mas era possível identificar de quem era aquele veículo. Uma bandeira com duas faixas horizontais, uma azul e outra branca flamulava no topo dela, entregando seu objetivo. Eram os Libertadores. - Sasha, vá atrás deles. - Pediu Wieder.

 - Estão muito longe. - Ofegou a garota, pensando rápido. Se estavam ali, era por causa de sua conversa com o líder deles. Provavelmente haviam vindo checar o local, procurando os membros da Aurora. E sua corrida para fugir da sede havia lhe retirado as energias para correr em supervelocidade. A carruagem começou a se mover, movida por animais que deixaram Sasha ainda mais tensa. Eram Recons, lagartos bípedes e carnívoras, cuja pele variava de verde brilhante a um negro sujo. Embora fossem ferozes e caros, eram montarias rápidas e fortes, ideais para fugas e perseguições. E haviam quatro levando a carroça. Nunca os alcançariam.

 Quando ela já estava desistindo, viu figuras negras se movendo no horizonte, também montados em Recons. De início, pensou que eram o apoio dos milicianos, mas havia algo familiar neles. Era muito longe para ter certeza, mas reconheceu a figura feminina de cabelos longos em cima de um dos animais. Uma outra olhada ao seu companheiro a fez ter certeza de suas suposições.

 Dalan e Amanda haviam surgido do nada, e estavam em perseguição aos Libertadores. 

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