sexta-feira, 20 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 17 - A tempestade se aproxima


AURORA
CAPÍTULO 17 - A TEMPESTADE SE APROXIMA

 Sophie se remexeu nos lençóis, tentando voltar a dormir. Enfiou o rosto no travesseiro, sentindo seu estado de espírito depressivo voltar a se acomodar em seu corpo. Era mais um dia, pensou ela. Mais um dia sem nenhuma perspectiva de melhorar. Deitou a cabeça para o lado, observando a cama de sua irmã a poucos decímetros da dela. Julie dormia profundamente, com seus curtos cabelos tapando seu rosto e a coberta cobrindo-a até o pescoço. Sophie novamente se remexeu e ficou de costas para o colchão, encarando o teto e respirando fundo. Hora de sair da cama.

 Em silêncio, a garota retirou os lençóis de cima de si e se levantou, espreguiçando os braços. Suas costelas se sentiram incomodadas pelo movimento, mas nada que causasse dor. Já haviam se passado três dias desde que saíram de Tinyanga, e já estava quase cem por cento. O corpo, pelo menos. Não podia dizer o mesmo sobre a mente. Sophie caminhou na ponta dos pés até o banheiro escuro, onde uma banheira cheia a aguardava. Como aquecê-la levaria tempo, ela prontamente se despiu e mergulhou na água gelada.

 Enquanto se esfregava vagarosamente, os pensamentos que a atormentaram nos últimos dias voltaram à tona. Tentou afastá-los, cansada, mas eles se manifestavam no mundo exterior. O rosto de sua irmã surgiu no meio das bolhas da banheira, e encarou-a em silêncio. Seu olhar acusava o mesmo que havia sido subentendido na Estrada Verde. Você é tão fraca que tenho que te proteger todos os dias, diziam seus olhos. Sophie estancou, procurando uma resposta para balbuciar. Quando percebeu que não tinha nada, espanou com força a água, estourando o rosto de Julie. A garota arfou com dificuldades, observando as bolhas remanescentes dançarem. No entanto, quando olhou de forma mais atenciosa, percebeu que haviam outros rostos refletidos nas pequenas superfícies esféricas. Eram os outros membros da Aurora, encarando-a da mesma forma que sua irmã. Sophie sentiu o coração bater mais rápido e procurou desviar o olhar, apenas para ver uma pequena bolha com o rosto de Dalan se afastando lentamente. Estava muito longe para decifrar sua expressão, mas quando se aproximou para ver melhor, a esfera com a face de Amanda ficou em seu caminho. Tentou afastá-la, mas ela começou a inflar, ficando maior do que a garota. As outras também cresceram, com seus rostos olhando-a com superioridade velada. Sophie se sentiu cada vez menor, e a banheira diminuía também, mas as bolhas continuavam a aumentar, e aumentar, e aumentar...

 - AH! - Arfou a garota, acordando com um salto. Respirou fundo diversas vezes, pondo a mão no coração. A pele estava encharcada de suor, grudando o pijama e seus curtos cabelos. Seria um sonho? Imediatamente levou a mão ao braço, se beliscando com força. A dor lhe disse que estava no mundo real, e Sophie tornou a se deitar, passando a mão pela testa. Engoliu em seco, tentando se acalmar e conter as lágrimas. Os pesadelos já eram frequentes, comuns até. O problema era que não terminavam.

 Alguns minutos depois, com um vestido simples e sua fiel boina, ela saiu de seu quarto batendo a porta com leveza. Não possuía nenhuma vontade de encarar o mundo lá fora, mas permanecer em seus aposentos significaria ficar entre quatro paredes com Julie. E, de fato, era a penúltima coisa que queria. A pior coisa aconteceu assim que entrou no saguão da Aurora e levantou a cabeça, percebendo que Dalan e Dominic estavam sentados em uma mesa próxima.

 - Oh. Bom dia. - Falou o garoto com a boca cheia de ovos mexidos, se inclinando para trás em sua cadeira. Ele vestia uma camisa branca e uma calça escura, enquanto Dom usava um colete marrom por cima das roupas claras.

 - B-bom dia. - Respondeu Sophie, sentindo o rosto corar e a pulsação aumentar. Desviou rapidamente o olhar, procurando uma forma de fugir dali. Sua vida já estava muito complicada sem que tentasse decifrar o rapaz, e ficar ali só daria mais oportunidades de fazer uma nova besteira. Com alívio viu que Lyra estava na cozinha, preparando o café da manhã. Sem olhar para os companheiros, ela se aproximou rapidamente. - Lyra, qualatarefaquetenhoprahoje? - Perguntou nervosa, pondo as mãos no balcão e ruborescendo ainda mais.

 A outra garota reservou alguns segundos para decifrar a mensagem, movendo os lábios enquanto virava os olhos. - Eu... acho que não tem nada pra você, querida. - Disse finalmente, puxando um papel de trás do balcão. - Só daqui a dois dias. - Acrescentou quando deu uma olhada na folha.

 - E-eu posso fazer isso hoje! - Se adiantou Sophie. Lyra coçou a cabeça, pensando, enquanto que a outra garota mordia os lábios e evitava deliberadamente olhar para trás.

 - Eu... acho que pode. - Respondeu, um pouco confusa. Sua companheira sorriu aliviada e se esticou por cima do balcão para receber sua tarefa. Dalan, em sua mesa, ficou encarando a situação com a mão no queixo e o cenho franzindo enquanto pensava arduamente. Acompanhou Sophie sair da sede, e quando a porta bateu ele apontou o dedo naquela direção.

 - Acho que tem algo errado com Sophie. - Concluiu, e Dominic ergueu as mãos para os céus, suspirando aliviado e irritado. - Não deveríamos fazer alguma coisa? - Perguntou, voltando à mesa.

 - Infelizmente, não. - Respondeu o homem, se encurvando em seu prato. Ele garfou um pedaço de salsicha, levando até sua boca. - Já combinamos em deixá-la cuidar de seus problemas sozinha. - Completou enquanto mastigava.

 Dalan ficou confuso, apoiando o braço na mesa. - Como assim? Se sabemos que ela está com problemas, não deveríamos ajudá-la? Não somos companheiros de guilda?

 - Somos, mas você precisa saber de uma coisa. - Disse o homem mais velho, limpando sua boca e encarando o rapaz com uma expressão séria. - Julie prometeu à mãe, em seu leito de morte, que iria tomar conta de Sophie até que encontrassem o pai delas. Desde então ela leva essa promessa a sério, fazendo de tudo para que a irmã não se preocupe com nada e esteja sempre protegida. - Dom se ajeitou em sua cadeira, procurando uma posição mais confortável. - Desde que eu as conheço tem sido assim. Ela toma todas as decisões pelas duas, e quase nunca a deixa sair de seu campo de visão. Não houve nenhum espaço para que a irmã crescesse por si mesma em todos esses anos.

 - Não que eu não entenda o ponto dela! - Se adiantou Dom, mostrando as palmas. - Só os deuses sabem o que elas duas passaram. Ficaram anos nas ruas, lutando todos os dias para simplesmente ter o que comer. Só que eu... e o restante da Aurora... achamos que o melhor para Sophie é conseguir um pouco de liberdade da irmã. Poder ter um pouco de independência.

 - Eu não estou entendendo a relação entre isso e não ajudá-la com seus problemas. - Disse Dalan, estreitando os olhos.

 - Como eu disse, Julie tomava todas as decisões pela irmã. - Esclareceu o homem, voltando a garfar uma salsicha. - E isso acontece desde que entraram na Aurora. Só que dessa vez Sophie está com um problema que a irmã não pode resolver. Não existe mais a... muleta que usava nessas ocasiões. - Mastigou um pouco, evitando falar com a boca completamente cheia. Pela expressão dela a coitada está provavelmente passando por um inferno, eu sei, mas se tentarmos ajudá-la ela irá apenas trocar de dependência. Afinal, nunca teve de se virar. Queremos que ela encontre apoio em alguém que nunca confiou: ela mesma.

 Dalan se reclinou em sua cadeira, pensando com seus botões. Aquilo tudo era muito confuso para ele, mas tinha um sentimento bem definido sobre a situação. - Eu não gosto disso. - Confessou, puxando um garfo para voltar a comer. - Se o que você disse é verdade, e ela está mesmo passando por um inferno, não sou fã de deixá-la sozinha.

 - Também fui contra no início. - Admitiu Dominic, com uma expressão de descontentamento. - Só que ela precisa disso. É a primeira chance que tem para crescer. Entenda, ela não pode mais ficar escondida debaixo da saia da irmã. - Ele olhou para o lado, como se estivesse temeroso de Julie aparecer. - Se tem alguma coisa que falta em Sophie, é a confiança em si mesma. E ela só vai alcançar isso se conseguir resolver seus próprios problemas.

 O clima entre os dois se silenciou, e Dalan remexeu em sua própria comida, procurando a vontade de comer. Sentia vontade de ajudar a companheira, mas admitiu com relutância que provavelmente não teria nada a dizer. - Agora, para mudar de assunto, como está o treino com Sasha e Koga? - Perguntou o homem mais velho.

 O garoto estremeceu, se lembrando do dia anterior. A questão era que Koga havia decidido se tornar mais forte, e concluiu que a melhor maneira de fazer isso seria com a ajuda de Sasha. De alguma forma ele conseguiu puxar Dalan naquela maluquice, e os dois entraram em um martírio pessoal desde então. - Ela gosta de ver a gente sofrer. - Confessou alarmado para Dominic, sibilando por entre os dentes. - Ela é sádica, Dom. Sádica.

 - Sinceramente, o que vocês estavam esperando? - Perguntou o companheiro, sorrindo. - Não é como se estivessem pedindo ajuda para alguém desconhecido.

 - Eu imaginava que ela seria dura, mas não que fosse o demônio. - Disse o garoto, se esticando agora por cima da mesa. - Ela não liga que estamos nos recuperando! O coração de pedra dela vai nos matar e depois...

 - Caham. - Tossiu uma pessoa atrás dele. Dalan sentiu imediatamente uma gota de suor descer por sua têmpora, reconhecendo aquela voz. Se virou lentamente, tentando forçar uma expressão calma em seu rosto. Sasha estava ali, de braços cruzados, vestindo uma calça negra e colada e uma camisa azul com longas mangas.

 - Devo assumir que nosso treino está te cansando? - Perguntou a garota, levantando minimamente as sobrancelhas.

 - Nnnão? - Disse lentamente Dalan, com a voz aguda. Aguentou o olhar reprovador de Sasha com todas as suas forças, até que ela lhe deu as costas.

 - Pegue algumas roupas e se prepare. Estamos saindo em missão. - Disse a garota, se dirigindo até o balcão da cozinha. O rapaz ficou imediatamente confuso. Não era aquela resposta que estava esperando.

 - C-como assim? - Perguntou, se levantando e indo na direção da companheira.

 - O prefeito nos mandou mais um trabalho para fazer. - Disse Sasha, pegando um prato com pão e manteiga com Lyra. Virou a cabeça para cima, onde sua mãe estava apoiada no corrimão do segundo andar. O olhar da filha era bastante reprovador, mas ela não disse nada nesse quesito. Voltou à sua comida. - E nós quatro iremos resolver isso.

 - Nós quatro quem? - Perguntou Dalan, mas a resposta veio de outras formas. Do outro lado do saguão, Amanda e Wieder vinham caminhando pelo corredor.

 - Dalan, não vamos te esperar! - Alertou alegremente a garota. Ela vestia uma camisa rosa e uma calça branca, longa e folgada nos calcanhares, enquanto que o anão usava um macacão azul por cima da camisa vermelha.

 - Amanda faz parte desta missão? - Perguntou o rapaz, indignado. Amanda lhe mostrou a língua antes de responder.

 - Você sabe que é mais surpreendente você ser convocado para algo assim do que eu, né? - Provocou ela, fazendo com que o companheiro ruborescesse. Wieder se aproximou dele, com um sorriso no rosto.

 - Fomos chamados por causa de nosso trabalho nas Montanhas de Tina. - Disse o anão, cruzando os braços. - A senhora Stella, depois dos problemas que aconteceram nas últimas missões, decidiu reunir um grupo que tivesse atuado junto e com louvor. - Depois de falar isso ele abriu ainda mais o sorriso, esticando as sobrancelhas para o amigo. - E nós estamos nessa. - Sasha tossiu, chamando a atenção de Dalan e colocou os dois dedos no pulso.

 - Tá, eu estou indo. - Se apressou o rapaz. A garota bateu os dedos novamente, desta vez de forma mais energética. - O.K, O.K, eu vou correndo! - Ele se virou para o corredor, enquanto que Sasha se virava para os outros dois.

 - Espero que estejam preparados. - Disse ela, descansando o pão no prato. - Essa missão será consideravelmente mais difícil do que as outras. Quero total concentração e obediência às minhas ordens. Alguma pergunta? - Perguntou, apontando o dedo para eles. Uma dúvida surgiu na mente de Dalan, que se virou.

 -  Sasha, onde está seu uniforme? - Normalmente a garota usava um colante negro e azul, mas parecia ir em missão sem ele. A pergunta pareceu irritá-la por dentro, mas por fora ela manteve uma expressão fria.

 - Dalan, quero que saiba que você está em observação. E isso irá refletir no treino que teremos assim que voltarmos. - Ameaçou. O rapaz engoliu em seco e voltou ao corredor, andando rapidamente até seu quarto. Stella, observando toda a situação do andar de cima, solto o ar que mantinha preso. Não gostava daquela situação. Já havia sido difícil mandá-los realizar missões para o prefeito antes, e agora só se sentia pior. Parecia que estava perdendo o controle da guilda para o homem, que a propinava com abonos e financiamento. E, ainda pior do que isso, era a missão em si.

 Afinal, havia os mandado para a capital. E se apenas um quarto das histórias sobre aquela cidade fossem verdadeiras, eles nunca estiveram em maior perigo.

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