segunda-feira, 16 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 16 - Segredos na floresta


AURORA
CAPÍTULO 16 - SEGREDOS NA FLORESTA

 O vilarejo de Tinyanga se encontrava bem escondido no meio das Florestas Cellintrunianas, uma mata oceânica bem diversa e viva ao nordeste de Helleon, ligada à cidade através da Estrada Verde. A composição daquela selva era bastante semelhante à Floresta de Hyannien, ao sul e sudeste da sede da Aurora, e aos bosques ao redor das Montanhas de Tina, mas foi nomeada de forma diferente por ser um território de domínio reptiliano. Não que isso significasse muita autonomia por parte daquela raça, historicamente segregada e injustiçada por todas as demais desde o início.

 Por exemplo, as Florestas Cellintrunianas possuíam um território cinco vezes menor que Arasteus, a região de jurisdição humana que englobava Helleon e seus arredores. Sua extensão se limitava à uma enseada, cruelmente separada das ricas Montanhas de Tina por apenas poucos quilômetros. Restava aos reptilianos a pesca e a extração de matéria-prima da mata, mas por serem uma raça extremamente ligada à natureza suas atividades se limitavam à subsistência. Restava a eles a prestação de serviços, pagos a uma quantia bem menor do que outras raças, mas que os ajudava a importar o que era necessário. Até mesmo o nome daquele lugar era fruto do preconceito, pois era costume chamar territórios na língua da espécie ali responsável, com exceção de zonas mistas. No entanto, ninguém se referia às florestas com sua alcunha verdadeira. De fato, ninguém se importava em aprender. Apenas os reptilianos que ali moravam. 

 Não que os incomodasse. Desde que existiam como raça, os reptilianos eram constantemente explorados. Embora a escravidão não fosse permitida, e sua atividade fosse condenável por cada governo presente na Aliança, isso não os impedia de serem tratados como uma sub-espécie. Com todas as disputas políticas por territórios e negócios, restava ao Povo de Escamas, como eram chamados, as áreas rejeitadas e os tratados desiguais, que muitas vezes eram considerados como presentes por parte das outras raças. E era assim que a maioria dos reptilianos recebia as migalhas atiradas em sua direção. Presentes. Depois de anos e anos de subjugação, era difícil encarar como outra coisa. Até mesmo o governo deles reprimia duramente os revoltosos, com medo de sofrerem represálias da Aliança. E assim eles seguiam, obedientes e ignorados, à parte do resto do mundo.

 O vilarejo de Tinyanga, por exemplo, prestava serviços de cura a preços praticamente nulos. Poucas guildas se dispunham a cruzar a longa Estrada Verde, e as que chegavam eram tratadas como parte da realeza. O próprio líder de Tinyanga, Galeh, alimentava essa atitude. Ele era um reptiliano tão comum que parecia ter saído de um livro educativo para crianças. Seu corpo parecia, assim como toda sua raça, um pequeno dinossauro. Caminhavam sob duas patas fortes, auxiliadas pelo longo rabo, e possuíam longos e finos braços de quatro dedos no tronco. As escamas variam em tons de verde, com a barriga normalmente de uma cor mais clara. Possuíam uma crina de pelos negros nas costas e na cabeça, coloridos desde a infância para representar a região em que nasciam. O restante do mundo ignorava esse fato, mas era um dos únicos orgulhos do Povo de Escamas. Galeh, por exemplo, se pintava com as cores da Florestas Cellintrunianas, vermelho, preto, amarelo-dourado, branco e verde. E ele os agitava animadamente, extremamente feliz ao receber Stella.

 - Não se preocupe! Nós iremos cuidar dos seus companheiros como se fossem nossos! - Exclamou Galeh, com uma voz grave e sibilante. Estava reunido com a mulher em sua cabana pessoal, uma oca circular de apenas dois cômodos, com paredes de madeira fina e teto de folhas. Ele estava agachado em cima de sua mesa, oferecendo um olhar arregalado e uma boca sorridente. A líder da Aurora se sentiu inconfortável com toda aquela bajulação e deu um passo para trás, estendendo as palmas das mãos. 

 - Tenho certeza que vocês irão fazer um bom trabalho. - Acalmou ela, soltando um sorriso forçado. O chefe de Tinyanga saltou da mesa e se adiantou, tão animado que saltitava.

 - Colocaremos nossos melhores curandeiros em ação! Seus amigos sairão daqui melhores do que entraram! - Ele se calou, olhando para baixo enquanto pensava no que tinha dito. - Quer dizer, esse é o nosso propósito, mas...

 - Galeh, eu vou colocá-los na sua mão. - Disse Stella, aproveitando o desconcertamento momentâneo do reptiliano para falar bem firme. Era como conversar com uma criança. - Agora eu vou descansar, tudo bem? Conversaremos sobre o pagamento mais tarde. - Ele arregalou os olhos e quase recomeçou a falar, mas a mulher já tinha lhe dados as costas para sair da cabana pela porta aberta.

 A aldeia de Tinyanga se abriu diante dela, com vinte e cinco ocas espalhadas de forma aparentemente aleatória no meio de uma grande clareira iluminada por um céu claro. A grama ali era bem rebelde, com exceção das ruelas de terra que ligavam uma cabana a outra. Por entre as folhas, insetos voavam de um lado para outro, trazendo consigo um forte cheiro silvestre. Todas as ruas levavam a uma praça no meio da região, que estava entulhada de reptilianos correndo de um lado para o outro com diversas ervas nas mãos. Haveria um ritual naquela noite, um ato tradicional que purificaria a família de um morto recente para entregá-la à um outro membro da aldeia. De fato, todos aqueles que não estavam cuidando dos feridos da Aurora estavam envolvidos naquela preparação. Stella sorriu, aproveitando a falta de atenção nela. Seu falecido marido gostava de vir ali, mas ela não era Adam. Não gostava de ser o centro das atenções.

 Enquanto caminhava, avistou Lyra à distância, caminhando em sua direção. A garota andava com um ar melancólico, mas se alegrou imediatamente ao perceber a chefe a encarando. Stella estranhou o momentâneo rosto triste dela, mas se convenceu de que não seria nada. Acenou sorridente ao passar pela companheira, que retribuiu na mesma intensidade. 

 Enquanto Stella se dirigia à sua oca para descansar, Lyra foi até às cabanas onde os feridos se encontravam em tratamento, tratando de manter a expressão alegre até chegar lá. Entrou na ala médica masculina, e se surpreendeu ao ver Julie lá dentro, sentada ao lado da cama de Dalan.

 - Entendi, obrigada. - Disse ela, se levantando. Estava com a mão enrolada em faixas verdes, e passou por Lyra sem dizer uma palavra. O garoto permaneceu em sua cama, encarando desconcertado a garota que saía.

 - O que aconteceu? - Perguntou Koga, se aproximando. Ele tinha alguns esparadrapos colados ao redor do corpo, mas nada que o impedisse de se levantar.

 - Julie quis saber o que aconteceu na última missão comigo e com Sophie... - O garoto fitou o companheiro com uma ar de dúvida. - Parecia um pouco irritada.

 - Ah, não se preocupe. - Acalmou-o o outro, se sentando na cama. - Ela é só muito protetora com a irmã. Imagino que tenha feito o mesmo com Amanda. - Os olhos de Dalan se arregalaram, e ele desviou o olhar. Lyra chegou mais perto, forçando a expressão sorridente.

 - Koga, eu precisava que você me ajudasse com algumas coisas. - Pediu ela, juntando as mãos. O garoto lançou a ela um olhar compreensivo e se levantou, deixando Dalan com seus pensamentos. Enquanto caminhavam pela oca, ele se aproximou e sibilou.

 - Aconteceu alguma coisa? - No entanto, Lyra apenas balançou negativamente a cabeça.

 - Aqui não. A senhora Stella quase me viu... daquele jeito. Vamos para um lugar afastado. - Saíram da cabana, se dirigindo até a floresta. Se embrenharam na mata por alguns minutos até chegarem a um tronco caído. A garota se sentou, convidando o companheiro a acompanhá-la. - Você está bem? - Perguntou ela. Ainda mantinha o sorriso, mas seus olhos refletiam uma tristeza crescente.

 - Tive alguns problemas, mas consegui resolvê-los sem ninguém desconfiar. - Ele colocou a mão no ombro da companheira, oferecendo-a um olhar condescendente. - Acho que não é o seu caso, não?

 Lyra não respondeu, mas retirou lentamente uma carta amarrotada de seu bolso. - S-Samuel me respondeu. A carta chegou um pouco antes de tomarmos a Estrada Verde. - Ela fungou, e seus olhos se tornaram marejados.

 - O que ele respondeu? - Perguntou Koga, sério.

 - E-e-ele... - A garota parecia à beira de um colapso, amassando a carta com as mãos. Se virou para o amigo, fungando novamente. - Ele não vai voltar. - Disse com a voz fraca. Em seguida se jogou no companheiro, chorando copiosamente. Koga fechou o rosto e a abraçou, oferecendo o conforto em troca das palavras que lhe faltavam.

 Ficaram ali alguns minutos enquanto Lyra desabava, soltando tudo que havia guardado dentro de si durante o último dia. A floresta parecia os esconder, aninhando-os em seu colo verde. Por fim a garota conseguiu se recompor um pouco, mas continuou agarrada firmemente à camisa do amigo, soluçando fracamente. - Éramos uma família, não éramos? - Perguntou com a voz enrolada, fungando. Koga apoiou o queixo em sua cabeça, meditando um pouco enquanto se aninhava nos fios roxos.

 - Ainda somos. - Disse o garoto finalmente. - Só que Samuel não percebia. Ele queria algo muito maior do que a gente, e não queria trabalhar para nos ajudar a ficar do tamanho que queria.

 - E-ele arranjou outra guilda. - A garota intensificou o aperto, sentindo as lágrimas voltarem a escorrer e o rosto franzir. - Não consigo acreditar, sabe? - Confessou com a voz dolorida. - Samuel sempre me ajudou quando eu precisava. Sempre mostrou uma vontade imensa de ajudar a Aurora. Vê-lo desistir é tão... tão...

 - Eu sei. - Interrompeu educadamente Koga, passando a mão em seus cabelos. - Só que... devemos continuar. Temos que fazer com que a guilda cresça e mostrar para eles.

 - Sim... - Soltou a garota, engolindo em seco. - E... um dia eles podem voltar. - O garoto preferiu ficar calado a responder, mordendo a língua. Lyra reservou mais alguns minutos para se recompor, para em seguida se afastar sorrindo do rapaz, limpando os olhos. - Obrigada. Sério mesmo, obrigada.

 - Não se preocupe. - Respondeu Koga, sorrindo em resposta. - Não é a primeira vez nem a última que vamos fazer isso. E talvez na próxima seja você quem vai me ajudar. - A garota ampliou o sorriso, passando a mão nos cabelos para arrumá-los.

 - Hoje a senhora Stella quase me pegou... daquele jeito. - Disse ela, desentrelaçando os fios roxos com os dedos. - Eu tenho que prestar mais atenção nessas horas. Se a gente desabasse perto deles, quem sabe o que iria acontecer.

 - Eu já te disse que somos a pedra fundamental da Aurora. Precisamos nos manter felizes perto do resto deles, para levantar um pouco o clima. - O rapaz se levantou, espreguiçando as costas. - Por mais que irrite algumas pessoas.

 - Está falando de Julie, não é? - Perguntou a garota, se levantando também. - Ainda acho que ela se irrita demais com você. Já te disse que talvez seja o jeito dela de...

 - Nem tente. - Interrompeu novamente Koga, sorrindo e estendendo a mão. - Já faz uns três anos que você tenta juntar a gente. Isso quando não fala de Sasha e Marcus.

 - Vocês são muito chatos. - Brincou Lyra, cruzando os braços. - Todos vocês. Não valorizam meu trabalho de cupido. Por sorte eu tenho outro casal pra trabalhar.

 - Quem? - Perguntou Koga, afastando um pouco a cabeça.

 - Não vou te dizer. - Respondeu a garota de forma misteriosa, embora ainda mantivesse o sorriso. - Só acho que esses dois perceberão seus sentimentos mais rápido do que vocês todos. Quer dizer, não são um casal tão fofinho quanto você e Julie, mas ainda são promissores.

 - Desde que tire você do meu pé, eu aceito. - Riu ele, e em resposta Lyra o empurrou de brincadeira. Os dois seguiram para voltar ao vilarejo, distraídos e brincando um com o outro. Não repararam algo estranho na floresta, e mesmo se estivessem prestando atenção seria difícil de detectá-lo. Uma figura encapuzada os observava, escondida pela escuridão que o teto de folhas proporcionava. Ele ficou em silêncio até os membros da Aurora se afastarem, para em seguida dar as costas, sumindo completamente nas Floresta Cellintrunianas.

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