segunda-feira, 30 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 20 - Medidas improvisadas


AURORA
CAPÍTULO 20: MEDIDAS IMPROVISADAS

Estou morto, foi o primeiro pensamento que Dalan conseguiu formular. Parecia a conclusão mais óbvia para sua situação, não é mesmo?. Havia caído de costas do terceiro andar, e agora não conseguia se mover. Deveria estar morto. Não era possível sobreviver a uma queda daquelas. Mas... e agora? Parte dele quis abrir os olhos para avistar o tal além-vida em que se encontrava, mas ficou com medo e preferiu se refugiar em sua própria escuridão. Poderia aguardar ali algum tempo extra.

 Bem longe de sua percepção, conseguiu ouvir uma voz chamando-o. Oh, deuses, era agora? Não poderia absorver nem mais um pouco o fato de que havia falecido? Lamentar alguns instantes a mais? Alguém segurou seu ombro, balançando-o. Certo, isso parecia um chamado. Hora de ver o que o aguardaria na casa da deusa da morte. 

 Quando abriu os olhos, temeroso, identificou o rosto de Amanda acima dele. Franziu o cenho, tentando entender o que estava acontecendo. - Vou ter que passar toda a minha eternidade com você? - Perguntou finalmente, indignado e decepcionado.

 - O quê? - Perguntou a garota, em uma expressão plástica de confusão. Ela balançou a cabeça, agitada, e tentou puxá-lo pelo ombro. - Escuta, não tenho tempo para suas maluquices. Vamos logo. - Naquele momento Dalan percebeu que estava mergulhado em um mar de feno, com um céu azul acima dele. De todas as suas predições de como seria o além-vida, essa definitivamente corria por fora.

 - Estamos mortos? - Perguntou o garoto abobado, girando o pescoço para ver melhor. Sua companheira, impaciente, deu um novo puxão em seu ombro.

 - Vamos estar se não sairmos daqui agora. Eles devem estar nos procurando. - Declarou, conseguindo levantar o outro. Dalan ficou sentado, observando o ambiente ao redor. Avistou um prédio de três andares ao seu lado, e o identificou como a sede dos Libertadores. Do outro, havia um muro de madeira. Estava em um pátio de terra, dentro de uma carroça de feno, mais uma entre tantas, apoiada desajeitadamente na parede. - Anda. - Ordenou a garota, agitada, puxando a mão dele enquanto saltava para o chão. Ele a seguiu, confuso, e correram até o que parecia ser um estábulo ao lado. 

 O garoto olhou pelo ombro, mirando desde as janelas quebradas no terceiro andar até a carroça de feno, vários metros abaixo. - Como você sabia que estaríamos salvos se pulássemos? - Perguntou assombrado.

 - Dalan, Dalan, Dalan. - Repetiu Amanda, ao abrir as portas do estábulo. Ela se apoiou no batente, olhando para trás para encará-lo. - Você não confia em mim?

 Não, definitivamente não, pensou o garoto, mas seguiu-a de qualquer jeito. Adentraram a estrebaria, fechando a porta com leveza. Diversos canabéis olharam para eles de seus locais de resguardo, mugindo baixo. Pareciam touros de chifres brancos, alguns tão grandes que era difícil virar a cabeça. Amanda seguiu em frente, passando pelos corredores cobertos de feno e caixas de objetos de veterinária, procurando um local para se esconderem. Quando chegou perto do fundo, um vulto negro se adiantou em sua direção.

 - Cuidado! - Exclamou Dalan, e a garota se jogou ao chão. Um Recon abocanhou o espaço em que a cabeça dela havia acabado de estar, gritando de forma aguda em seguida. A membro da Aurora ficou o encarando do chão, com o coração explodindo em seu peito, até que o réptil voltou ao seu espaço. Seu companheiro se adiantou, cuidadosamente se aproximando dela. - Você está bem? - Perguntou. Ela ficou com um olhar arregalado por um tempo, até que o trocou por um sorriso.

 - Melhor impossível. - Ela se virou para o garoto, segurando seu ombro. - Eu tenho um plano. - Antes que Dalan pudesse questionar sua sanidade, Amanda ficou de pé, se afastando alguns passos para trás. Olhou para cima, percebendo que haviam claraboias no teto de madeira. Elas podiam ser fechadas por dentro, o que animou ainda mais a garota. - Pegue duas escovas, Dalan. Rápido.

 O rapaz pensou em perguntar o motivo, mas se lembrou de que estavam sendo perseguidos. Assim, voltou agachado até certeza de que estava cercado pelos doces canabéis, e remexeu em um baú próximo. Amanda pôs as mãos na cintura, observando o lugar. Haviam quatro espaços preenchidos por Recons à sua frente, mas só precisava de um. Estava com a mão no queixo quando o companheiro se aproximou, e usou seus poderes de vento para fechar a claraboia do réptil mais próximo.

 - O que faço com isso agora? - Perguntou o garoto, se mantendo devidamente afastado da área das criaturas ferozes.

 - Congele-os. - Ordenou ela, distraída. Um pouco irritado, Dalan obedeceu, usando seus poderes nos objetos.

 - E agora? - Perguntou incomodado pela outra estar no controle da situação. Amanda se virou, abriu o sorriso e apontou com o dedo por trás do ombro, indicando o Recon que quase a havia abocanhado.

 - Eles tem sangue frio, e você tem blocos de gelo nas mãos. Passe as escovas no pescoço do bicho pra acalmar ele, por favor. - Dalan travou por alguns segundos, estreitando os olhos enquanto tentava compreender algum significado oculto naquela frase. Ele inclinou a cabeça para o lado, como se entendesse melhor naquele ponto de vista.

 - Você quer que eu... - Começou o garoto, girando as mãos lentamente e esperando que a companheira completasse a frase. Ela suspirou e andou até ficar atrás dele, empurrando-o contra o Recon. O rapaz imediatamente travou os pés, aterrorizado. - Espera, espera, espera! - Implorou.

 - Dalan, você prefere encarar esse bicho ou os cinquenta milicianos que estão procurando a gente? - Perguntou ela, tentando empurrá-lo. Era uma pergunta capciosa, pensou o garoto. De fato, não queria nenhum dos dois.

 - Por quê só eu? Você não vai ajudar? - Se indignou ele, apoiando uma das pernas em uma pilastra para travar sua posição.

 - Eu posso te dar dois motivos para eu ficar de fora. - Grunhiu ela, apoiando seu rosto entre as omoplatas do companheiro para fazer mais força. - A primeira é que eu bolei esse plano. A segunda é que... - Ela parou de empurrar de repente, fazendo com que Dalan quase caísse para trás. - ... eu sou uma garota delicada.

 - O quê? - Perguntou ele, se distraindo por um instante com aquela afirmação tão absurda. Foi o suficiente para que Amanda lhe desse mais um empurrão, desta vez o lançando trôpego para o Recon. O animal rugiu com sua aproximação, e o garoto instintivamente pegou as escovas congeladas e as prendeu contra o pescoço da criatura, de olhos quase fechados. O réptil ofegou, e o rapaz esfregou ainda mais os objetos gélidos, procurando esfriar sua circulação.

 - Perfeito. - Disse Amanda, saltando para a cabine do animal. O Recon tentou atacá-la, mas Dalan o manteve quieto com esforço.

 - O que você está fazendo? - Grunhiu o rapaz por entre os dentes, se esticando na ponta dos pés para observá-la. A garota remexeu nos cabides colados à parede, puxando uma sela. Começou a montá-la no animal que o companheiro tentava acalmar, usando seus poderes para fechar a claraboia da cabine à frente. - Depois de eu terminar aqui, você precisa fazer a mesma coisa com aquele outro Recon, tudo bem? - Perguntou, apontando com a cabeça o outro réptil.

 - Você enlouqueceu? - Se indignou o garoto, quase esquecendo de afagar a criatura. - Não íamos nos esconder?

 - No início eu pensei em fazer isso, mas esses bichinhos aqui me deram uma nova ideia. - Amanda subiu no animal de quase um metro e setenta, dando tapinhas em seu pescoço. Olhou para o outro, que a encarava estupefato. - Não se preocupe. - Acrescentou ela, sorrindo e piscando um dos olhos. Estendeu em seguida o polegar para cima com alegria e energia. - Eu tenho um plano.

 Havia um grande grupo de Libertadores do lado de fora, averiguando as carroças de feno em busca dos membros da Aurora. Sem sinal nem mesmo dos corpos, um pequeno destacamento de três homens foi enviado para o estábulo. Enquanto dois rapazes jovens abriam as portas duplas, o superior deles ficou parado com as mãos cruzadas atrás de si, de frente à entrada. Tinha um belo discurso na cabeça, onde humilharia os arruaceiros e os prenderia. Pensou na garota fugitiva, e soltou um sorrisinho. Talvez ela poderia animá-lo, concluiu.

 Ainda estava pensando nisso quando as portas se abriram com um estrondo, e dois Recons montados romperam do estábulo. O oficial mal teve tempo para se agachar, e por um milagre foi ignorado pelos animais enquanto segurava sua cabeça. Quando passaram por ele, o homem virou para trás, e identificou uma garota de cabelos castanhos e longos em cima de uma das criaturas, segurando as selas com naturalidade. Seu rosto se inchou, colorindo-o de púrpura.

 - SÃO ELES! - Gritou, como se aquela confusão já não tivesse chamado a atenção de cada ser vivo na sede. - PEGUEM-NOS! - Alguns homens tentaram se entrepor no caminho das bestas, mas saltaram para o lado em terror.

 Amanda imprimiu mais velocidade à sua montaria, procurando uma saída dali. Atrás dela, vinham um Dalan quase tão assustado quanto os milicianos que corriam à sua volta. A garota se virou para encará-lo, que se segurava desesperadamente no lombo de seu réptil. - Não acredito que você nunca aprendeu a montar na sua vida! - Gritou ela, fazendo uma curva fechada.

 - EU PASSEI MINHA VIDA INTEIRA EM BARCOS! - Gritou ele, quase caindo. Segurou o pescoço do animal, fazendo toda a força possível para voltar à sela. - E NUNCA MONTEI EM UMA COISA DESSAS! - O Recon gritou em voz aguda, batendo com o rabo em uma das carroças de feno. O impacto foi tão forte que Dalan se puxou para frente, procurando ficar mais longe da extremidade inferior da criatura.

 Sua companheira suspirou, fazendo o cabelo na testa voar. Teria feito uma provocação se uma flecha não tivesse passado a centímetros de seu nariz. Ela olhou para cima, e avistou seis homens armados com os arcos em riste. - Eu recomendo que a gente ache logo a saída daqui.

 - Ahn? - Perguntou o garoto, mas uma flecha acertou o chão ao seu lado, trazendo consigo compreensão da situação em que se encontravam. Ele arregalou os olhos, segurando as cordas com sela como as cordas de sua vida. - MAIS RÁPIDO! - Gritou para seu animal. Amanda por sua vez olhou para os lados, identificando três homens correndo para trás do estábulo. Desconfiada, ela os seguiu, encontrando-os em direção ao portão da saída.

 - ACHEI! - Gritou ela animada, usando seus poderes para desviar uma flecha que parecia vir em sua direção. Dalan por sua vez tinha os deuses o ajudando, mesmo que não parecesse. Ele se desequilibrou em seu Recon, caindo para o lado oposto de onde estavam os arqueiros. Conseguiu se manter agarrado à sela com a perna direita e com as mãos entrelaçadas nos arreios que pendiam da boca do animal, mas o resto de seu corpo estava paralelo ao réptil. Justamente onde estava protegido das flechas, deixando os arqueiros sem opção. Eles não tinham autorização de alvejar as montarias, pelo preço e valor que correspondiam ao líder Jones. Assim, procuraram atacar Amanda, que conseguia se virar.

 A garota se manteve no caminho dos portões, onde os homens gritavam e pulavam para sair de seu caminho. A saída agora estava livre, duas portas de madeira grossa e afiada nas pontas. Ela se aproximou e desceu do Recon, correndo os passos finais até a fechadura do portão. Observou a sequência de cadeados pesados, tentando infrutiferamente arrancar um de seu eixo. - Dalan, venha aqui! - Chamou ela, se virando para trás. O companheiro vinha desengonçado em sua montaria, derrubando outros dois guardas incautos. Caiu no chão nos metros finais, enquanto que flechas voavam pelo alto.

 - O que foi? - Perguntou, cuspindo a terra em sua boca. Amanda correu até ele, puxando-o até o portão. Suas duas montarias rosnavam uma com as outras, afastando qualquer miliciano que se aproximasse.

 - Resolve isso aqui enquanto eu protejo a gente. - Pediu a garota, se virando de costas. Os dois estavam quase na mesma linha da parede em que os arqueiros se encontravam, oferecendo pouco ângulo para que pudessem atirar. Alguns continuavam tentando, pendurados em suas janelas, mas os outros já desciam as escadas para procurar posições melhores. A membro da Aurora afastava as poucas flechas que vinham contra eles, mas sabia que esse número aumentaria em pouco tempo.

 Dalan, por sua vez, se encarregou das fechaduras de metal. Era um trabalho mais cerebral, pensou enquanto que observava as trancas. Apropriado para ele. Tocou o mecanismo, procurando o ponto mais fraco. Se conseguisse congelar e quebrar uma dobradiça, sairiam dali em pouco tempo.

 Naquele mesmo instante uma flecha acertou o espaço um palmo à sua direita, se prendendo na madeira do portão. - Foi mal! - Se desculpou Amanda, bloqueando mais uma com seu vento. O rapaz ficou de olhos arregalados para a seta que quase findou sua vida, engolindo em seco. Sem mais nenhuma palavra ele usou as duas mãos para congelar a tranca por inteira, correndo para pegar um banco ao lado. Usou o assento para golpear as fechaduras congeladas, que se quebrou com o impacto. Sua companheira ouviu o barulho, olhando para trás a tempo de ver o portão se entreabrindo. - Como você conseguiu isso? - Perguntou animada, correndo para buscar as montarias. O rapaz olhou para o banco em sua mão.

 - Inteligência, eu acho. - Disse, jogando-o no chão. Os milicianos arqueiros se acomodaram na parede em frente à saída, onde teriam uma visão desimpedida dos fugitivos. Dalan e Amanda correram até seus Recons, se protegendo embaixo deles enquanto corriam para as ruas de Wildest. Gritos e comoções se agitaram atrás deles, mas assim que obtiveram a proteção das paredes que cercavam a sede dos Libertadores, montaram em seus animais e dispararam pelas ruas vazias da cidade.

 Correram por alguns minutos, parando apenas quando tiveram certeza de que estavam seguros. Amanda freou seu réptil com habilidade, enquanto que o de Dalan ficou andando em círculos sem o controle de seu cavaleiro. - E agora? - Perguntou a garota, observando o companheiro girar em torno de seu eixo. - Precisamos achar os outros.

 - Isso não vai adiantar nada se os Libertadores continuarem atrás da gente. - Disse o rapaz, tentando se ajeitar em sua montaria. - O líder deles sabe pra onde a gente vai. A Caverna dos Reclusos deve estar cheia de reforços quando chegarmos.

 - O que faremos então? - Perguntou Amanda, e o companheiro se enfurnou em seus pensamentos. As coisas estavam um pouco calmas agora, mas não tinham muito para onde fugir. Ainda estavam separados de Sasha e Wieder, e o objetivo da missão se tornava cada vez mais difícil. De nada adiantaria procurar mais uma briga com os milicianos. Haviam escapado por sorte, e não poderiam contar com ela novamente. O que sobrava?

 Uma ideia brotou no fundo da mente do garoto, um pouco semelhante à que Sasha havia sugerido quando chegaram a Wildest. Instintivamente o rapaz se colocou contra esse esboço de plano, mas se lembrou de seus companheiros. Corriam sério perigo de vida. Não sairiam dali até que a Caverna dos Reclusos estivesse vazia, e agora tinham toda uma milícia no caminho. No entanto, que barreiras morais ele teria que superar para que saíssem dali com vida? A que ponto se rebaixaria para cumprir a missão?

 - Eu tenho um plano. - Disse o garoto, finalmente, com a expressão sombria. Só que eu não vou gostar, acrescentou silenciosamente a si mesmo.

 Algum tempo depois e a quilômetros de distância, Sasha observava Dalan e Amanda no horizonte, montados em seus Recons. Eles seguiam em direção ao comboio dos Libertadores, duas figuras solitárias contra o sol. A garota sentiu um aperto no coração, se adiantando um passo. Eles iriam atacar os milicianos sozinhos? Não iriam sobreviver, não havia como. No momento em que concluiu isso um mar de cavaleiros surgiu detrás da colina, acompanhando a dupla da Aurora em direção à carruagem fugitiva. Seriam dez, doze, quinze homens? Era impossível dizer com a quantidade de poeira que os acompanhava. Cavalgavam Recons pintados de amarelo, entregando sua identidade. Eram membros do Sol Dançante, a maior milícia de Wildest.

 Pelo canto do olho, Sasha percebeu que os companheiros haviam se destacado da perseguição e se dirigiam até ela e Wieder. - Ei! A cavalaria chegou! - Gritava Amanda, acenando animadamente. Ela e Dalan saltaram de suas montarias, uma mais graciosamente do que o outro, e se aproximaram dos companheiros. - Trouxemos companhia para a festa.

 - Percebo. - Disse o anão, impressionado com a confusão que eles causavam à distância. - Como conseguiram a ajuda deles?

 - Só dissemos que os Libertadores estavam frágeis. - Disse a garota. - Eles atacaram a sede, onde descobrimos que Jones estava vindo em direção à Caverna Reclusa. Então viemos pra cá. - Ela sorriu, como se tivessem acabado de fazer um passeio no parque.

 Sasha deixou os dois conversarem e se aproximou de Dalan. O rapaz mantinha uma expressão um pouco cabisbaixa, e se concentrava em cuidar de seu Recon para que não avançasse em seus companheiros. Achava impressionante o fato deles terem conseguido domar os Recons, mas preferiu não dizer isso agora. Manteve distância dos animais e perguntou ao rapaz. - Foi você que deu a ideia de procurar ajuda com a Adaga Dourada, não?

 - Foi. - Respondeu o garoto, evitando encará-la. - Ajudei um grupo de bandidos a ficar mais forte, do jeito que fui ensinado. - Sasha sentiu uma onda de irritação subir pelo seu peito, mas suspirou para se controlar.

 - Escute, Dalan... se fizéssemos o que você tinha pedido, derrubar os Libertadores pelas nossas forças, sabe o que aconteceria? - Sasha não esperou resposta. - O Sol Dançante iria tentar ocupar o território deles. E os Cavaleiros da Lua Verde. E tantos outros. - Ela se aproximou mais um pouco, mantendo os Recons em seu campo de visão. - Uma guerra entre as milícias iria provavelmente acontecer, e sabe-se lá quantos mortos iriam restar em Wildest depois disso. Do jeito que você fez, não houve uma gota de sangue derramada. - Ela encarou a confusão à distância, que começava a diminuir. - Digo, exceto os bandidos.

 - Eu sei, mas... - Começou o garoto, com a mão pendurada nos arreios do réptil. - Eu sempre achei que conseguiria me manter fiel aos meus ideias enquanto estivesse na Aurora.

 - Sim, eu sei. - A garota olhou para baixo, chutando um torrão de terra. Já havia passado pela situação do companheiro, um pouco depois de seu pai morrer. - Você tem um sonho, Dalan?

 - Sim. - Respondeu o garoto, se lembrando de sua ilha desaparecida.

 - Então esteja preparado para sacrificar algumas coisas para fazê-lo se realizar. - Respondeu a garota, se afastando. Dalan mordeu a língua, puxando sua montaria para longe dela. Voltou à uma pergunta que havia feito antes de entrar na Aurora. O que faria para encontrar sua ilha? Tudo, percebeu agora. Tudo.

 Assim que viu Sasha se aproximando, Amanda saiu de perto de Wieder e correu ao encontro dela, apontando para os Recons. - Podemos ficar com eles? - Perguntou, animada.

 Ao longe, um homem velho era arrastado por guardas vestidos com o familiar uniforme do Sol Dançante. Alguns deles tentavam provocá-lo, mas ele os ignorou. Não iria se rebaixar a dirigir sua palavra contra inferiores. Tinha outras coisas para se preocupar, como os malditos garotos que haviam invadido sua casa e destroçado seu império. Se os deuses lhe dessem mais uma chance, iria se vingar deles.

 Atacaria quando menos esperassem, e veria o fim de suas vidas enquanto puxava a faca de suas tripas. O velho riu, com um brilho maníaco em seus olhos. Faria isso com toda a certeza, ou não se chamava Augustos Jones.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 19 - Promessa de Sangue


AURORA
CAPÍTULO 19 - PROMESSA DE SANGUE

 Havia um bar no centro de Wildest, conhecido por suas bebidas fortes e característico cheiro de alho e geralmente bastante apinhado. Um homem saiu deste estabelecimento, empurrando as portas duplas com força desmedida para em seguida se debruçar sobre a bancada da calçada. Estava completamente bêbado, com o nariz vermelho e um sorriso débil, e decidiu que precisava desesperadamente do cachimbo em seu bolso. Enquanto se concentrava nessa árdua tarefa de recolher o objeto, sentiu algo se aproximar pelo canto do olho direito. Quando levantou a cabeça avistou uma garota de longos cabelos azuis segurando um anão barbudo em seus braços, correndo mais rápido do que um ser humano conseguiria atingir. Ela passou pelo bar levantando uma nuvem de poeira, que envolveu o bêbado por completo. O homem ficou parado por alguns segundos, cambaleante e com os olhos ardendo, até que se virou e voltou para o estabelecimento. O quer que tenha bebido, era bom.

 A garota por sua vez sentiu que havia ultrapassado seus limites. Naquele mesmo instante seus joelhos cederam, levando-a ao chão. Ela jogou Wieder para o lado de forma a protegê-los e caiu com força, rolando sem controle. Não parou até encontrar uma bancada da calçada, onde suas costas se chocaram com força na madeira e ela caiu de rosto na terra. Tentou se levantar imediatamente, mas a exaustão havia cobrado seu preço. Sasha segurou com as forças que lhe restavam uma pequena pilastra, lutando contra o desfalecimento. Arfava sem parar, com o corpo encharcado pelo suor e sangue dos pequenos ferimentos.

 - Ai. - Soltou o anão do outro lado, se levantando com dificuldades. Ele bateu nas roupas para afastar a poeira e se virou para encarar a companheira, que se encontrava em posição delicada. - Sasha, você está bem? - Perguntou, ajeitando o macacão.

 - Só... alguns minutos... - Disse a garota entre os intervalos de sua respiração forçada, se esforçando para não vomitar. Sentia a cabeça bem leve, e ficou agarrada na pilastra para não cair. Aquele seria seu limite, perguntou a si mesma. Só aquilo? A frustração se juntou às tantas outras daquele dia, e seus dedos se fincaram na madeira com raiva.

 Após algum tempo em silêncio ela ficou de pé, um pouco trêmula e com os lábios bem fechados. O anão se aproximou preocupado. - Está melhor agora? - Um aceno positivo de cabeça do outro lado não o tranquilizou completamente, mas era o que tinha. - Onde estão Amanda e Dalan? O que aconteceu com eles?

 - Eles... - Começou ela, respirando fundo para controlar a ânsia de vômito. Preferiu não olhar para o companheiro. - Eles estão bem. Ficaram para trás para nos dar tempo de fugir.

 - Dalan e Amanda ficaram na sede dos Libertadores? - Perguntou Wieder, indignado. - E vamos acreditar que tudo deu certo? Eles podem ter sido capturados, pelo que sabemos! Devemos voltar! - Exclamou com os braços abertos.

 - Não. - Disse a garota por entre os dentes. - Wieder, nós estamos aqui por uma missão, e devemos cumpri-la. Tenha confiança em seus companheiros. - Sasha voltou a desviar o olhar, se apoiando na bancada e agarrando a madeira com os dedos. Estava tremendamente exausta, incapaz de conseguir manusear diversos pensamentos. A preocupação com os outros a orbitava, mas havia apenas um foco. A missão. Só lhe restava confiar em Dalan e Amanda.

 O anão ficou encarando-a enquanto que Sasha permanecia em silêncio. - Tudo bem. - Disse ele finalmente, passando a mão pela barba. - Se quer tanto cumprir essa missão, que sejamos rápidos para ajudá-los. Só que para isso você precisa me deixar ter as rédeas da situação.

 - O quê? - Perguntou indignada a garota, saindo de seu estupor e se virando para ele. - Existem hierarquias, Wieder! Eu estou no comando, e faremos o que eu mandar!

 - Hierarquias... - Riu o companheiro, colocando as mãos no bolso e virando a cabeça. - Sabe, eu vim de um lugar bem merdinha. Manipulação social, líderes egoístas, pouca recompensa para o trabalho... você pode escolher. Só que existia uma coisa que eu me sinto obrigado a admirar. - Ele encarou a garota, com um olhar sério e um dedo esticado. - Em uma reunião de trabalho, todos tinham voz. Não importa a classe, contatos ou experiência, qualquer um podia falar o que quisesse e seria ouvido. E assim fizemos obras magníficas. - Ele sorriu, estreitando os olhos e mantendo o dedo em riste. - E agora, ouça a voz da experiência. Eu sei o motivo de seu plano não ter funcionado.

 - O que quer dizer com isso? - Perguntou a garota, se irritando ainda mais.

 - Vamos recapitular. - Começou ele, subindo na calçada e andando ao redor dela. - Nossa missão é descobrir se a Caverna dos Reclusos está vazia, correto?. - Um aceno positivo do outro lado. - E, visto que a localização desse lugar é uma lenda, decidimos perguntar para a facção criminosa que supostamente possui esse marco em seu território.

 - Apresse-se, Wieder. - Interrompeu Sasha de forma ríspida. - Eu disse tudo isso a vocês no caminho para cá. Você sabe que os milicianos jamais revelaram os mapas de suas áreas, e a identificação de qualquer local pelo lado de fora é quase impossível. Não temos tempo para rodeios. - Completou ela franzindo o cenho.

 - Resumindo, você acreditou que pudesse dialogar com milicianos. - Se apressou em dizer o companheiro, se aproximando. - E isso nunca iria funcionar. Não sei em que pedestal você coloca as guildas, mas os ladrões não compartilham do mesmo ponto de vista. Não é porque você é honrada e justa que todo o resto do planeta deve ser do mesmo jeito. - Começou o anão, parando ao seu lado. - Isso não funciona. Existem pessoas cujo senso de dignidade é tão baixo que só irão te enganar. Foi isso o que aconteceu na sede dos Libertadores, não? - Perguntou ele.

 A garota corou e permaneceu em silêncio. - Talvez. - Aquilo tudo era um pouco demais para ela no momento, que guardou tudo no fundo da cabeça. A missão era a prioridade, pensou.

 - Isso não vai acontecer comigo. - Proclamou o companheiro, estendendo as mãos com calma. - Veja, eu já tenho minha cota de anos nesse planeta. Já vi o pior que a raça humana pode fazer, e anotei tudo na minha cabeça. - Completou com o dedo na testa.

 - Qual é o seu plano então? - Perguntou Sasha, cruzando os braços. Estava tão cansada que permitiu que o anão dissesse sua ideia. Seria bom para verificar seu potencial, concluiu.

 - O nosso problema é que não sabemos onde fica a Caverna dos Reclusos, e precisávamos de localização de alguém da área. O seu problema é que você procurou ajuda no segmento mais baixo da sociedade. - Wieder aguardou um pouco e voltou a sorrir, demonstrando uma expressão de deleite interior. - Estou pensando em subir um degrau.

 Os dois caminharam por algum tempo, parando em cada bar de esquina para que o anão desse uma espiada lá dentro. Ele não chegava a entrar, preferindo observar o ambiente do lado de fora apoiado em alguma bancada. Sasha já estava se impacientando, com sua irritação crescendo no mesmo nível em que se recuperava fisicamente. Wieder havia acabado de entrar na guilda, e de algum modo ela havia o deixado tomar o controle da missão. No que estivera pensando? Quando esteve prestes a recuperar as rédeas da situação, o anão parou.

 - É aqui. - Disse ele, após uma espiada por baixo das portas duplas. Wieder se virou, encostando as costas na parede e encarando a companheira. - Escute. Eu sei que algumas coisas lá dentro podem parecer estranhas, mas não saia de perto de mim e aja quando eu pedir. Entendido? - Sasha franziu o rosto. Queria acabar com aquilo, mas precisavam cumprir a missão.

 - Certo. - Disse ela, admitindo a derrota e mordendo a língua. O anão sorriu e empurrou as portas duplas, adentrando o bar.

 O Promessa de Sangue, como era chamado o estabelecimento, já vira dias melhores. A área apertada, as janelas fechadas e o cheiro de álcool, fumo e suor contribuíam para um clima mais aprisionador do que acolhedor. A parede verde-musgo estava tinha sua pintura descascada em diversos pontos, e os copos rachados descansavam em mesas bambas. A maioria das pessoas ali se concentravam em suas bebidas amarelas e espumantes, tentando ao máximo ignorar o grande homem que fazia confusão no balcão.

 - APRESSA ISSO AÍ, RANSOM! - Gritou o homem, bebendo em uma grande caneca. Ele devia medir dois metros, era bem forte e vestia um chapéu de abas com um colete marrom por cima das roupas desarrumadas. Estava sentado em uma grande cadeira, e segurava uma mulher assustada pelos seios com a mão. O barman, um homem míope e miúdo com um terninho preto, correu para encher mais um copo. Quando Wieder entrou no bar, as pessoas o encararam por alguns instantes e voltaram a seus próprios afazeres. O arruaceiro não o percebeu até que o anão escalou a cadeira ao seu lado, com Sasha atrás dele.

 - Um copo de cerveja, por favor. - Disse o membro da Aurora, se debruçando sobre a superfície do móvel. O grande homem terminou de beber, batendo seu copo com estardalhaço na madeira.

 - O QUE TEMOS AQUI? - Perguntou ele, soltando a mulher. Ela se recolheu choramingando para o lado, deixando seu captor de frente com Wieder. - UM ANÃO EM WILDEST? PERDEU O CAMINHO DA MINA, INFERIOR?

 Sasha cerrou as mãos, preparada para qualquer violência. Seu companheiro, no entanto, continuou olhando para o barman com uma expressão tranquila e sorridente. - Qual seria o seu nome, bom senhor? - Perguntou descompromissadamente para o badernista ao seu lado.

 O homem não respondeu, mas se levantou e segurou Wieder pelo colarinho do macacão. Seu bafo de álcool dançava pela barba do anão, que se manteve calmo. Diversas cabeças se viraram para a cena, enquanto que Sasha se adiantava. Se o companheiro não tivesse a mandado esperar com um gesto da mão, teria atacado. - PARA VOCÊ, MERDINHA, SENHOR JEREMY. - Ele falava cuspindo, e diversos perdigotos voaram pelo ar.

 - Senhor Jeremy então. - Disse calmamente o anão. De alguma forma isso pareceu explodir o homem, que se preparou para lhe dar um soco. Já chega, pensou Sasha. Ela se adiantou, segurando o punho preparado do homem com a mão direita e girando o corpo, desferindo uma cotovelada com o braço esquerdo em seu rosto. Jeremy se desequilibrou para trás, e Wieder foi milagrosamente posto em sua cadeira. Sua companheira por sua vez pegou um copo do balcão, quebrando-o na cabeça do homem no chão.

 - Devia aprender a respeitar as autoridades, sabia? - Alertou ela, tateando cegamente em busca de outro copo. Infelizmente sua voz havia traído sua posição, dando a oportunidade que Jeremy precisava. Ele socou em sua direção, acertando em cheio o nariz. Ela caiu de costas no chão, segurando o rosto e sentindo o sangue escapar pela fresta dos dedos. Seu adversário ficou imediatamente de pé, tentando lhe desferir um chute. Sasha rolou para trás, se agachando atrás de uma mesa.

 - VOLTE AQUI! - Gritou o bêbado, jogando o móvel para longe. Antes que ele se espatifasse na parede, a garota pegou um copo na mesa ao lado e jogou-o em Jeremy. O vidro quebrou e a bebida o encharcou, mas o homem não pareceu se incomodar. Ele se adiantou, pegando a membro da Aurora pelo pescoço e a jogando contra o balcão. Sasha bateu as costas com força, e enquanto recuperava o ar uma mão envolveu seu rosto, prensando-o contra a madeira. Ela tentou se livrar, mas era impossível naquelas condições. A palma do homem a impedia de respirar, drenando suas forças. Se debateu inutilmente, encarando com o olho livre o adversário sorrir.

 De repente, um brilho amarelado tomou conta do bar escuro, trazendo consigo um cheiro mais forte do que o que estava impregnado na madeira. Jeremy se virou, irritado, mas imediatamente recuou ao ver o gigantesco golem de pedra atrás dele, quase batendo a cabeça no teto.

 - Olá, senhor Jeremy. - Disse Wieder, movimentando sua mandíbula de ronatto. O homem balbuciou algo incompreensível, soltando Sasha inconscientemente. A garota aproveitou a chance e bateu com uma pesada caneca em sua cabeça, finalmente o desmaiando. Ela arfou, recuperando o ar, enquanto que o anão voltava à sua forma natural. Com o bar em silêncio, ele voltou a escalar o banco perto do balcão enquanto que a companheira sentava ao seu lado. - Soltou o que estava preso? - Perguntou à ela.

 - Talvez. - Respondeu, limpando o sangue do nariz e ajeitando a maria-chiquinha direita. Wieder sorriu e se virou para o barman, que encolheu ao seu olhar.

 - Bom dia, bom homem. - Disse ele, se ajeitando no assento. - Gostaria de minha cerveja agora, por favor. E, se possível, também queria conversar com você sobre alguns... assuntos. - O funcionário demorou alguns instantes para acenar nervosamente a cabeça, correndo para encher o copo do anão.

 Alguns minutos depois, os dois membros da Aurora saíram do bar, encarando as ruas quentes e vazias de Wildest. Wieder estava animado, caminhando alegremente com as mãos nos bolsos. - Uma das principais regras de um bar: todo aquele que bater no valentão local será tratado como realeza. - Disse ele para a companheira, estendendo um dos dedos.

 Sasha não respondeu nada, de cara amarrada. Por mais que admitisse que fora um bom plano, ela não iria dizer nada ao anão. De qualquer jeito, o barman havia lhes dito sobre a localização da Caverna dos Reclusos, e agora só restava verificar se ela estava vazia, expulsar de lá os habitantes caso contrário e procurar Dalan e Amanda.

 Os dois caminharam por duas horas, impiedosamente iluminados pelo sol ferrenho acima. Nem mesmo tinham o suporte das sombras, visto que depois dos primeiros quarenta minutos de trilha eles haviam saído dos limites da cidade, adentrando o deserto dos Corredores de Pedra. Não parecia haver nada a muitas léguas de distância, exceto pedras ressecadas e cactos aleatórios. Quando Wieder já estava desistindo, chegaram ao objetivo.

 Se não tivessem a informação do barman, seria impossível determinar a localização exata da caverna. Isso acontecia porque a catacumba era marcada por três pedras caídas no meio do deserto, cada uma com uma altura de um metro e meio. De longe pareceria apenas mais um conjunto de rochas, mas um olhar mais atencioso revelava uma fresta entre os pedregulhos. Ali, haveria uma escada levando à Caverna dos Reclusos, escondida de todos os transeuntes normais. O problema era que os membros da Aurora não eram.

 - Fique aqui de guarda. Eu vou conferir se tem alguém lá dentro. - Ordenou Sasha para o companheiro, se enfiando na entrada. Wieder se apoiou nas pedras, cruzando os braços e fitando o deserto parado. Depois de quase meia hora, a garota voltou à superfície. - Ninguém. - Disse ela, com os olhos semi-cerrados, desacostumados ao sol forte.

 - Terminamos por aqui então? - Perguntou o anão, aliviado. - Agora só nos resta procurar Dalan e Amanda e podemos voltar para... - Ele não terminou o que ia dizer, arregalando os olhos para o horizonte. A garota se virou para onde ele mirava, e sentiu o coração parar. Havia uma carruagem à distância, parada em cima de uma elevação no terreno. Não havia nenhum homem à vista, mas era possível identificar de quem era aquele veículo. Uma bandeira com duas faixas horizontais, uma azul e outra branca flamulava no topo dela, entregando seu objetivo. Eram os Libertadores. - Sasha, vá atrás deles. - Pediu Wieder.

 - Estão muito longe. - Ofegou a garota, pensando rápido. Se estavam ali, era por causa de sua conversa com o líder deles. Provavelmente haviam vindo checar o local, procurando os membros da Aurora. E sua corrida para fugir da sede havia lhe retirado as energias para correr em supervelocidade. A carruagem começou a se mover, movida por animais que deixaram Sasha ainda mais tensa. Eram Recons, lagartos bípedes e carnívoras, cuja pele variava de verde brilhante a um negro sujo. Embora fossem ferozes e caros, eram montarias rápidas e fortes, ideais para fugas e perseguições. E haviam quatro levando a carroça. Nunca os alcançariam.

 Quando ela já estava desistindo, viu figuras negras se movendo no horizonte, também montados em Recons. De início, pensou que eram o apoio dos milicianos, mas havia algo familiar neles. Era muito longe para ter certeza, mas reconheceu a figura feminina de cabelos longos em cima de um dos animais. Uma outra olhada ao seu companheiro a fez ter certeza de suas suposições.

 Dalan e Amanda haviam surgido do nada, e estavam em perseguição aos Libertadores. 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 18 - Selvagem e Impiedosa


AURORA
CAPÍTULO 18 - SELVAGEM E IMPIEDOSA

 Dos vinte e dois territórios atualmente pertencentes à jurisdição da raça humana, Arasteus era um dos menores e mais pobres. Fincado entre um ninho de divisas naturais por todos os lados, era difícil construir as cidades necessárias para uma expansão econômica, visto que extrair matéria-prima de suas reservas era dificultado pela série de burocracias impostas pelas raças mais ligadas à natureza, como os elfos e os entes. E não havia muito espaço sem uma área ambiental. Ao leste e sudeste, ficava o Mar de Cellintrum, banhando a cidade de Helleon. Ao sul e sudoeste, a Floresta de Hyannien se alongava. Pelo nordeste ficava a Estrada Verde e a divisa com os territórios reptilianos, enquanto que ao norte e noroeste a floresta marcava a divisa desta vez com os anões, que compartilhavam nas Montanhas de Tina uma das únicas fontes de renda de Arasteus, a extração de ronatto. Já no resto, cobrindo o interior e o oeste da região, existiam os Corredores de Pedra.

 A existência de uma região desértica, com o chão ressecado e vegetação arbustiva, no meio de duas florestas tropicais era algo completamente inimaginável em circunstâncias normais. A questão era que os Corredores de Pedra eram frutos de um acidente causando pela Yullian, a substância dotada de habilidades especiais que circundava o planeta. Durante a Guerra da Fronteira, um humano chamado Arasteus entrou em combate com uma legião de demônios naquela área, e o resultado dessa luta havia causado uma faixa arenosa no meio de uma abundância verde. Algum tempo depois, quando a guerra mudou de fase, a Aliança decidiu povoar a região com espécies próprias ao sertão ali criado, trazendo um pouco de vida à região. A fundação desse ecossistema planejado foi o suficiente para que os Corredores de Pedra assegurassem sua existência não-natural.

 Não que essa história importasse muito aos membros da Aurora, naquele momento enfurnados em uma carroça que ia lentamente em direção à capital de Arasteus, Wildest. O veículo atravessava quilômetros e quilômetros da mesma paisagem abóbora e monótona, balançando ao menor deslize da estrada. Dalan estava na janela do carro, com a cabeça apoiada na janela e o braço balançando distraidamente no lado de fora, fixando um olhar morto.

 - Cuidado com os cactos. - Alertou Amanda, sorrindo. Ela estava sentada ao seu lado, com o pescoço apoiado no encosto de braços do banco e as pernas esparramadas em outros bancos adjacentes. Suava em baldes, mas isso não parecia afetar seu humor característico.

  - Ou com os assaltantes. - Completou Wieder, virando a página de seu livro. Seu assento era de frente à eles e ao lado de Sasha, que naquele momento dormia profundamente. Com exceção dos quatro, a carroça estava vazia. - Vários ladrões montados costumam roubar as carroças nos Corredores de Pedra. E não há polícia que os segure.

 - Desde que eles me tirem daqui, vou sem luta. - Disse apaticamente Dalan, se decidindo entre o vento quente do lado de fora e o ar morno e parado dentro. - Esse calor não pode ser dos deuses.

 - Culpa sua ter vindo com roupas escuras. - O garoto havia vindo com seu uniforme, os trajes negros e longos com que chegou na Aurora. Não parecia ter sido a melhor das idéias agora. - Além do mais, já devemos estar chegando. Deixa eu ver! - Ela se esticou por cima do rapaz, espremendo-o contra a madeira quente.

 - Amanda, Amanda, Amanda, Amanda, Amanda! - Suplicou ele, tentando se afastar do material com todas as suas forças. A companheira, por sua vez, continuou onde estava.

 - Olhe lá! Eu disse que estávamos chegando em Wildest! - Exclamou. Dalan conseguiu se desvencilhar, irritado, mas olhou na direção em que a garota apontava. De início parecia mais um dos inúmeros vilarejos de beira de estrada que haviam passado no caminho, mas um segundo olhar transmitiu a real magnitude da cidade à frente. O mar de prédios e casas cobria até onde a vista alcançava, se agigantando nos Corredores de Pedra. Aquela era a capital, e tinha o tamanho necessário para tal posto.

 Conforme a carroça se aproximava, os detalhes arquitetônicos ficavam mais visíveis. As ruas eram bastante amplas, compostas de terra batida e calçadas de madeira, se estendendo até onde a vista alcançava. As casas também eram compostas de madeira, material abundante nas florestas ao redor da região, e possuíam sempre um segundo andar, no mínimo. Os habitantes daquela cidade preferiam passar seu tempo dentro dos aposentos, protegidos do sol impiedoso, tornando as calçadas vazias e silenciosas. Por outro lado, os bares e bordéis, estabelecimentos bastante comuns na capital, eram apinhados e animados. De vez em quando uma pessoa era atirada pela janela, e quando a carroça se aproximou de uma espécie de cassino, dois homens foram esfaqueados bem em frente às portas duplas, em plena luz do dia. Amanda se recolheu no interior do carro enquanto que Dalan não conseguia tirar os olhos daquela situação. Wildest fazia valer por sua fama de selvagem e impiedosa.

 Desembarcaram quase no centro da cidade, em uma área mais movimentada. Ali dezenas de pessoas se espremiam por um saguão estreito, metade querendo sair da estação e a outra metade tentando entrar. Os membros da Aurora, observando aquela confusão do terminal onde a carroça havia parado, tentaram contornar aquele mar de gente e seguiram com algumas pessoas por um corredor lateral.

 - Por aqui não. - Ordenou Sasha, estancando e esticando o braço para o lado. Os outros a encararam confusos, enquanto que o restante das pessoas seguia adiante. A garota deu as costas, obrigando os companheiros a seguirem-na, apenas para ouvirem um grito alguns segundos depois. - Ladrões. Essa cidade está infestada deles até o talo. Recobrem a atenção e me sigam. - Dalan olhou para trás, engolindo em seco.

 Com árduo esforço, os quatro conseguiram atravessar a multidão e sair para as ruas. Lá fora, o movimento diminuiu bruscamente. Algumas pessoas caminhavam apressadamente, olhando de forma nervosa para os lados e segurando seus bens contra o corpo. Sasha liderava seus companheiros, de olhos bem abertos nos arredores. Dalan a acompanhava, nervoso, enquanto que ao seu lado Amanda murmurava animadamente. Wieder, por sua vez, observava os prédios descontente.

 - Vocês humanos tem um péssimo gosto arquitetônico, sabia? - Comentou em voz baixa o anão para Dalan, depois de verificar se Sasha estava distante demais para escutar. - Nada em vocês é homogêneo. Não há um padrão que a sua raça segue, nada que destaque suas obras no geral. Tudo é feito de forma adaptativa em relação ao ambiente. Já viu construções faéricas? - Perguntou ele, estendendo a mão para o imaginário. - Élficas? Até mesmo anãs? Em cada lugar do planeta elas dividem características em comum, mas os humanos são os únicos que não fazem isso.

 - Tem gente que aprecia. - Disse o rapaz, olhando para os prédios. Realmente, não vira nada parecido em Helleon ou outras cidades humanas. - Esse lance de sempre ter algo diferente nos territórios.

 - Quem gosta disso é caótico, ouça o que eu estou dizendo. - Alertou Wieder, apontando o dedo para o companheiro. - Não são pessoas confiáveis. É gente que não teve limites na infância. - Dalan riu, esfregando o suor da testa.

 O calor findou qualquer conversa futura, torturando o quarteto da Aurora. Até mesmo o vento era quente, lançando baforadas que pareciam vir do próprio inferno. A única que não parecia se abalar com isso era Sasha, que simplesmente dobrou as compridas mangas de sua camisa e caminhou como se estivesse em temperaturas aceitáveis. O suor nem sequer manchava suas roupas. Eis que, passados alguns minutos, ela parou. Estavam em uma rua longa, cujo fim era um grande prédio de três andares e longa extensão, guardado por um sexteto de homens nas portas duplas.

 - O.K, precisamos nos preparar. - Ela levou os companheiros até uma varanda próxima, onde estariam piedosamente protegidos do sol. A garota se apoiou na bancada enquanto que os outros limpavam o suor em excesso, tentando se acomodar. - Como vocês sabem, nossa missão é garantir que uma caverna na beira da cidade está vazia. O problema é chegar até lá. - Olhou para eles, como se esperasse alguma resposta. Como não recebeu nenhuma, cruzou os braços e afastou a maria-chiquinha do ombro. - Wildest sempre foi uma cidade violenta. Tanto que a própria polícia da Aliança nunca conseguiu ter algum controle. Alguns anos atrás, encontraram uma resposta teoricamente provisória para isso. Milicianos.

 - Milicianos são uma espécie de guilda que é responsável por uma área específica. - Explicou Sasha, tendo consciência de que nem todos ali tinham ouvido falar sobre isso. - A diferença é que, além de não serem ligados a um Conselho Local, eles têm autorização para combater crimes. A Aurora, por exemplo, só tem permissão de fazer isso caso aceite uma missão para tal. Caso contrário, seremos taxados de vigilantismo. - Ela ofereceu mais um longo olhar para eles, como se os advertisse a nunca sair das regras citadas.

 - Que eu saiba, Wildest tem nove organizações milicianas funcionais em seu território. - Comentou Wieder, apoiado na parede. Amanda olhou para o prédio, como se esperasse que alguém viesse abordá-los.

 - Sim, e todas são corruptas até o osso. - Completou Sasha. - Não se iludam. Tudo o que os milicianos querem é que a polícia não tenha forças na cidade. Depois disso, podem fazer o que quiserem sob a máscara de salvadores da população.

 - Então o que viemos fazer aqui? - Perguntou Dalan um pouco nervoso, apontando com o dedão para o prédio. - Aqueles são milicianos? Vamos ter que derrubá-los?

 - Dalan, o que eu acabei de dizer sobre combater crimes? - Disse Sasha, com o cenho franzido. - Só faremos isso caso recebamos uma missão. Viemos em paz hoje. A caverna que queremos ir está no meio do território dos Libertadores, e vamos pedir permissão para acessá-la.

 - Vamos pedir ajuda a eles? - Se indignou o rapaz. - Eles não são os bandidos? Não deveríamos estar do mesmo lado, deveríamos no mínimo tomar distância!

 - Eu já falei uma vez a você que quando estamos em missão, devemos cumprir a missão. - Advertiu a garota por entre os dentes. - E faremos isso a qualquer custo. Entendeu?

 - S-sim... - Recuou Dalan, intimidado. A ideia de se aliar com bandidos era desprezível, mas a companheira tinha razão. Estavam em uma missão, e deveriam terminá-la.

 - Ótimo. - Disse a garota, se virando para o anão em seguida. - Wieder, eu não confio neles o suficiente para entrar no prédio com toda a nossa força. Fique aqui na cobertura, entendido? - Ele concordou com a cabeça, e Sasha chamou o trio para que seguissem adiante. Voltaram ao sol forte, e os guardas à frente se alertaram pela aproximação dos membros da Aurora. - Prestem atenção. Pelo que eu sei, o líder dos Libertadores é um homem bastante preconceituoso e instável. Ele pode agir assim conosco, então peço que tenham calma e não façam nada que eu não autorizar antes. E isso conta em dobro para você, Amanda. - A garota levantou as mãos e fez um beicinho.

 Quando chegaram na porta do prédio, foram cercados por quatro guardas vestidos de branco com chapéus de aba longa. Eles portavam adagas, com as quais apontavam para os garotos. - Perdida, garotinha? - Perguntou um deles em voz zombeira para Sasha.

 - Na verdade, não. - Disse a garota com a voz calma, se adiantando um passo. Os guardas levantaram as armas, e Amanda prendeu a respiração. - Vim falar com seu chefe. Ele já nos espera.

 Um dos homens cochichou algo para o outro, que entrou no edifício. O restante ficou onde estava, cercando o trio da Aurora. Sasha continuava impassível, com a ponta de uma adaga a centímetros de seu pescoço. Dalan observava a situação com o nervosismo exalando pela pele junto com o suor. Na situação em que estavam, era aparentemente três contra três. Uma olhada descompromissada na janela negou essa presunção, pois outros quatro guardas estavam atentos no andar superior. Pra quê vieram ali, se perguntou o garoto com o sol aquecendo seus cabelos. Como se já não estivesse desconfortável o suficiente.

 Finalmente o miliciano voltou, e cochichou no ouvido do homem com quem havia falado anteriormente. Este acenou a cabeça, convidando os garotos a entrarem. Lá dentro eram acompanhados por quatro guardas, que os direcionavam através de corredores estreitos e sujos. Dalan conseguiu ver uma mulher bêbada através de uma das portas, e o cheiro de álcool os seguiu por diversos metros. Pequenos barulhos de vidro quebrando e pessoas rindo pontuavam a procissão silenciosa. O nervosismo do garoto ia aumentando a cada passo.

 Chegaram a uma porta no último andar, e foram intimados a entrar. Lá dentro, o cheiro e a fumaça do cachimbo causaram uma imediata reação de Amanda, que tossiu com força. Através da névoa espessa, percebia-se que o aposento era amplo e em sua maioria vazio. Havia apenas uma mesa perto da parede, e uma figura sentada em uma cadeira atrás dela. O ambiente minimalista contrastava com o clima caótico do prédio e até mesmo da cidade, dando àquele lugar um tom quase místico. Sasha seguiu na vanguarda, parando bem em frente à mesa. - Senhor Jones, eu suponho. - Disse, com a voz um pouco embargada pela fumaça.

 - Não está errada. - Disse a voz aguda do homem na cadeira. Quando Dalan se aproximou, conseguiu enxergar sua fisionomia. Deveria ter uns cinquenta anos, embora a aparência fosse de alguém próximo à morte. A pele pendia dos ossos do rosto, como se o velho estivesse derretendo. Seus olhos eram vermelhos e a boca um traço, onde havia um cachimbo pendurado. Ele vestia um terno cinza, alheio ao calor dos Corredores de Pedra, e encarava sem sentimentos os garotos. - A que posso ajudá-los? - Perguntou, dando mais uma tragada em seu cachimbo.

  - O senhor deve ter... - Começou Sasha, mas o velho balançou o dedo negativamente, sorrindo.

 - Senhor não. Mudei de ideia. Majestade. - Interrompeu Jones, se reclinando na cadeira. - Afinal, estou no centro de meu império. - Anunciou ele, estendendo os braços e olhando ao redor. Dalan sentiu algo gélido descer pela garganta. Havia algo na voz daquele homem que denotava profunda insanidade. Ele riu, fazendo com que os pelos nas costas do garoto se arrepiassem, e voltou a apoiar os cotovelos na mesa. - Estou esperando.

 Sasha corou, e engoliu em seco para aguentar aquela situação. Colocou as mãos às costas, onde começou a torcê-las sem que o velho pudesse ver. - M-majestade Jones... - Disse ela por entre os dentes, cada sílaba um sofrimento. - Creio que recebeu uma mensagem minha mais cedo.

 - De correio aéreo, não? - Perguntou Jones, largando um pouco o cachimbo para tomar uma bebida de um copo de vidro à sua mesa. - Sim, eu recebi. Mandei alguns homens meus para o terminal, de forma a recebê-los, mostrar a minha compaixão... - Ele bebeu um longo gole, e bateu o copo com força na mesa. - E vocês me aparecem com um maldito anão. - Amanda respirou fundo, e Dalan a olhou alarmado. Sasha não pareceu reagir, mas suas mãos estava viradas para os companheiros, espalmadas. Não façam nada, diziam elas. - O fato de dividirmos fronteiras com essa raça imunda me enoja. Profundamente. Deveriam saber disso.

 - Senhor, eu... - Começou a garota, tentando voltar ao assunto da conversa, mas o velho explodiu.

 - EU DISSE MAJESTADE! - Gritou ele, jogando o copo na direção de Sasha. Por sorte Jones errou, e o objeto explodiu na parede. O líquido âmbar escorreu pela madeira, e seu odor se misturou à fumaça do cachimbo. - QUEM ACHAM QUE SÃO, HEIN? SURGEM NA MINHA CIDADE COM UM SER INFERIOR? É ISSO?

 - Majestade Jones, peço que mantenha a calma. - Disse calmamente Sasha, embora seus batimentos cardíacos estivessem dançando. Ficou de ouvidos atentos a qualquer movimento na porta, indicando a vinda de guardas, e rezou para que seus companheiros não se agitassem. - Nós...

 - Está me mandando ter calma? - Perguntou o velho em voz baixa, se levantando. Para alguém tão visivelmente acabado, ele se movia de forma ágil e suave. Deslizou até ficar de frente à garota de cabelos azuis. Era mais baixo que ela, o forçando a inclinar a cabeça para cima. - Em meu escritório? É isso mesmo? - Perguntou mais baixo, passando a mão pelas maria-chiquinhas dela. As mãos de Sasha continuavam espalmadas, mandando Dalan e Amanda ficarem no lugar. - Quem acha que é, sua putinha?

 Aquilo estava saindo do controle, pensou o garoto da Aurora, olhando para Amanda. Ela retribuiu com os olhos arregalados, mas se manteve imóvel. Sasha vai resolver isso, tentava dizer telepaticamente. A garota em questão tentou não oferecer nenhum sinal de nervosismo, até porque não tinha medo de Jones. O problema eram os guardas do lado de fora. - Se... Majestade. - Se apressou em se corrigir. - Nós só viemos pedir acesso à Caverna dos Reclusos. Só. Isso.

 - Caverna dos Reclusos, é? E se eu não deixar? - Ele puxou os cabelos da garota com força para baixo. A cabeça dela pendeu um pouco para o lado, e suas mãos se cerraram. Calma, disse ela para si mesma forçando o rosto a ser manter imutável. Sem reações bruscas. - Hein? O que acontece se eu não deixar? - Sussurrou Jones em seu ouvido.

 - Creio que possamos resolver isso sem nenhum problema, majestade. - Sugeriu ela com o rosto vermelho. A humilhação daquela situação a queimava por dentro, tentando ao máximo não socar o velho até seus dentes caírem. A missão, pensava ela. A prioridade é a missão.

 - Não, eu não acho. - Ele sacou uma faca de seu colete, e mirou no estômago de Sasha. A garota, atenta, saltou para trás e os companheiros se adiantaram para ajudá-la. - Acham que podem vir aqui com um anão e ainda me cobrar ajuda? Em meu império? - Disse Jones, com os olhos ensandecidos. - GUARDAS! PRENDAM-NOS!

 - Acho que isso não foi uma boa ideia. - Disse Dalan, observando alarmado dois homens entrarem na sala, com armas em riste.

 - Cale a boca. - Mandou Sasha, puxando a faca do velho e atirando-a contra os atacantes. O cabo da arma acertou a têmpora de um deles, que caiu desacordado. Amanda se adiantou e conjurou seu poderes. A fumaça indicou a mudança do ar, que se impeliu contra o homem remanescente. Ele foi jogado para o lado, contra a porta aberta, e Dalan saltou para congelar seu rosto.

 - GUARDAS! GUARDAAAS! - Gritou a todos os pulmões Jones, e Amanda se adiantou para silenciá-lo. Sasha no entanto segurou sua mão, correndo em direção à saída. Ela puxou Dalan pelo colarinho e saiu no corredor, olhando para os dois lados.

 - Precisamos fugir. Agora! - Disparou para a direita, se encontrando em outra bifurcação. Haviam quatro guardas vindo de um lado, fazendo com que ela corresse pelo outro. Dalan derrubou os móveis para criar obstáculos, enquanto que Sasha virava uma esquina para se aproximar das escadas. Quase lá, pensou ela, até que viu vários homens correrem no andar inferior, subindo os degraus.

 - Por aqui! - Alertou Amanda, abrindo uma pequena porta na parede. Os três entraram apressados, se vendo em um armário de faxina. Através dos rodos e baldes, conseguiram se ajeitar em desespero. Do lado de fora, os guardas se organizavam.

 - Cerquem o prédio e vasculhem todos os andares! Andem! - Gritou uma voz masculina. O trio ficou em silêncio, rezando arduamente, até que os passos se afastaram. Dalan respirou um pouco mais aliviado, embora não se iludisse. O fogo havia diminuído, mas ainda estavam na panela.

 - O que faremos agora? - Perguntou Amanda, espremida na parede. O cérebro do companheiro funcionava a todo vapor, considerando suas poucas opções.

 - Sasha, você precisa sair. - Disse o rapaz, lembrando-se de algo. - Wieder está lá fora, à solta com esses racistas, e você é a única que consegue sair daqui sem maiores problemas. - Disse ele, encarando a garota.

 - O quê? - Se indignou ela, franzindo as sobrancelhas. - Não irei abandonar vocês na situação que eu criei. Eu já te disse naquela caverna em Vertreit, Dalan, nós não deixamos ninguém para trás!

 - Mas eu... - Tentou dizer o garoto, mas Amanda colocou a mão em seu ombro, o interrompendo.

 - Sasha, preste atenção. - Disse ela com uma voz calma, também encarando a companheira. - Temos que nos lembrar do motivo de virmos a Wildest. Precisamos descobrir se aquela caverna está vazia, e só poderemos fazer isso caso você saia daqui. Pela Aurora, lembra? - Perguntou, contorcendo o rosto em uma expressão de misericórdia. A outra garota desviou o olhar, respirando rápido.

 - E vocês? - Perguntou ela depois de algum tempo de reflexão, de olhos arregalados. - Como vão sair dessa? - Amanda apoiou o cotovelo no ombro de Dalan, sorrindo e estreitando os olhos.

 - Vamos achar nosso jeito. Agora vá. - A garota abriu a porta, convidando Sasha a sair. Ela olhou mais uma vez para os dois e disparou pelo corredor. Amanda suspirou aliviada, se afastando de Dalan. - Dica. Se quiser um dia convencer Sasha a fazer qualquer coisa pra você, diga que é o único jeito de cumprirem alguma missão. Ela tenta fazer parecer que nós somos a prioridade, mas quem a conhece sabe a verdade. - Ao dizer isso ela sorriu, aproveitando o rosto admirado de Dalan.

 - Bem, eu tenho que dar o braço a torcer. - Admitiu ele, impressionado pela maneira com que Sasha havia sido manipulada. - Só que... e a gente? - Perguntou, encolhendo os ombros. - Eu não havia pensado até essa parte.

 - Agora... nós improvisamos. - Disse ela, com o sorriso ainda mais aberto. Amanda olhou para os lados, pegou um rodo e saiu pela porta aberta. Dalan engoliu em seco, não gostando nem um pouco daquela ideia, mas correu para seguir a garota.

 No andar inferior, ao lado das escadas, Sasha saltava em cima de um guarda derrubando-o no chão. Seu companheiro mais próximo puxou a adaga, mas a garota chutou-a antes do homem conseguir brandir a arma. Completou o movimento pisando no chão com a perna que havia levantado antes e chutando com a outra, acertando o rosto do adversário. Ele caiu, e junto com ele veio a membro da Aurora, desequilibrada pelo movimento sem jeito. Apresse-se, ordenou a si mesma, e se levantou sem demora. Dois outros guardas vinham correndo pelo corredor, mas ela pulou no corrimão da escadaria e desceu até onde os degraus faziam uma curva de cento e oitenta graus. Jogou as costas na parede para frear seu movimento, sentindo um projétil acertar as barras metálicas ao seu lado. Quando abriu os olhos avistou o andar inferior, e a porta no fim do corredor à sua frente. Apoiou o pé na base do corrimão e se impeliu para frente, saltando o último lance de escadas.

 Caiu no chão rolando para seguir adiante. Dois homens tentaram se por entre ela e a saída, mas Sasha aumentou a velocidade. Acabou disparando pela porta, correndo mais rápido do que conseguia controlar. Tropeçou e e rolou alguns metros, levantando a areia por todo o lado.

 - Sasha? - Perguntou uma voz, quase que incompreensível pelo estado em que a garota se encontrava. Espanou um pouco de terra do rosto, vendo que Wieder estava ao lado dela. - O que está acontecendo? E onde estão os outros?

 Um brilho metálico reluziu contra o sol e Sasha saltou para o lado, derrubando o anão para o chão. A faca girou por onde estava a cabeça dele meros segundos antes, indo cravejar o chão mais à frente. A garota olhou para trás, alarmada, e viu meia dúzia de guardas saírem do edifício. Ficou prontamente de joelhos, segurando o companheiro nos braços. - Espero que não se importe de ser carregado.

 - O que quer dizer com issooooooooooo! - Tentou dizer Wieder, mas Sasha já havia o agarrado e disparado o máximo que podia, descendo as longas estradas de Wildest. Os Libertadores tentaram iniciar uma corrida, mas ela já estava muito longe para ser perseguida. Se entreolharam e voltaram ao prédio, onde os outros dois alvos tocavam o caos.

Dois andares acima, Dalan e Amanda procuravam fazer o máximo de rebuliço que conseguiam. Toda atenção para eles era um pouco menos para Sasha e Wieder, concluiu o garoto, dando um cotovelo no adversário mais próximo. Sua companheira corria à sua frente, batendo com o rodo nas janelas. De vez em quando um guarda tentava interceptá-los, mas eles rapidamente o derrubavam e seguiam adiante. Dalan olhou para trás, vendo o mar de homens que os perseguiam. Essa parecia uma ideia pior do que a de Sasha, concluiu.

 - Opa! - Alertou Amanda, estancando. O rapaz se chocou com ela, e ambos quase caíram. Ele levantou a cabeça para ver o que estava acontecendo, e com pavor percebeu que havia outro mar de guardas bloqueando o caminho. O restante que os perseguia desacelerou, fechando as opções de fuga.

 - Tem um improviso agora? - Perguntou o garoto por entre os dentes, se aproximando da parede. Amanda apenas sorriu, de uma forma surpreendente considerada a situação.

 - Sempre. - Os guardas começaram a se aproximar, e ela apontou para um dos corredores. - GRAÇAS AOS DEUSES, A POLÍCIA CHEGOU!

 Todos ali olharam. Até mesmo Dalan virou a cabeça para onde a companheira estava apontando, aliviado pela chegada de reforços. Antes de perceber que não havia nada, sentiu uma mão em seu pescoço puxando-o para trás. Não conseguiu reagir, e quando deu por si estava atravessando uma das janelas quebradas. Gritou por reflexo, caindo de costas do terceiro andar para o desconhecido, com Amanda o agarrando ao seu lado.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 17 - A tempestade se aproxima


AURORA
CAPÍTULO 17 - A TEMPESTADE SE APROXIMA

 Sophie se remexeu nos lençóis, tentando voltar a dormir. Enfiou o rosto no travesseiro, sentindo seu estado de espírito depressivo voltar a se acomodar em seu corpo. Era mais um dia, pensou ela. Mais um dia sem nenhuma perspectiva de melhorar. Deitou a cabeça para o lado, observando a cama de sua irmã a poucos decímetros da dela. Julie dormia profundamente, com seus curtos cabelos tapando seu rosto e a coberta cobrindo-a até o pescoço. Sophie novamente se remexeu e ficou de costas para o colchão, encarando o teto e respirando fundo. Hora de sair da cama.

 Em silêncio, a garota retirou os lençóis de cima de si e se levantou, espreguiçando os braços. Suas costelas se sentiram incomodadas pelo movimento, mas nada que causasse dor. Já haviam se passado três dias desde que saíram de Tinyanga, e já estava quase cem por cento. O corpo, pelo menos. Não podia dizer o mesmo sobre a mente. Sophie caminhou na ponta dos pés até o banheiro escuro, onde uma banheira cheia a aguardava. Como aquecê-la levaria tempo, ela prontamente se despiu e mergulhou na água gelada.

 Enquanto se esfregava vagarosamente, os pensamentos que a atormentaram nos últimos dias voltaram à tona. Tentou afastá-los, cansada, mas eles se manifestavam no mundo exterior. O rosto de sua irmã surgiu no meio das bolhas da banheira, e encarou-a em silêncio. Seu olhar acusava o mesmo que havia sido subentendido na Estrada Verde. Você é tão fraca que tenho que te proteger todos os dias, diziam seus olhos. Sophie estancou, procurando uma resposta para balbuciar. Quando percebeu que não tinha nada, espanou com força a água, estourando o rosto de Julie. A garota arfou com dificuldades, observando as bolhas remanescentes dançarem. No entanto, quando olhou de forma mais atenciosa, percebeu que haviam outros rostos refletidos nas pequenas superfícies esféricas. Eram os outros membros da Aurora, encarando-a da mesma forma que sua irmã. Sophie sentiu o coração bater mais rápido e procurou desviar o olhar, apenas para ver uma pequena bolha com o rosto de Dalan se afastando lentamente. Estava muito longe para decifrar sua expressão, mas quando se aproximou para ver melhor, a esfera com a face de Amanda ficou em seu caminho. Tentou afastá-la, mas ela começou a inflar, ficando maior do que a garota. As outras também cresceram, com seus rostos olhando-a com superioridade velada. Sophie se sentiu cada vez menor, e a banheira diminuía também, mas as bolhas continuavam a aumentar, e aumentar, e aumentar...

 - AH! - Arfou a garota, acordando com um salto. Respirou fundo diversas vezes, pondo a mão no coração. A pele estava encharcada de suor, grudando o pijama e seus curtos cabelos. Seria um sonho? Imediatamente levou a mão ao braço, se beliscando com força. A dor lhe disse que estava no mundo real, e Sophie tornou a se deitar, passando a mão pela testa. Engoliu em seco, tentando se acalmar e conter as lágrimas. Os pesadelos já eram frequentes, comuns até. O problema era que não terminavam.

 Alguns minutos depois, com um vestido simples e sua fiel boina, ela saiu de seu quarto batendo a porta com leveza. Não possuía nenhuma vontade de encarar o mundo lá fora, mas permanecer em seus aposentos significaria ficar entre quatro paredes com Julie. E, de fato, era a penúltima coisa que queria. A pior coisa aconteceu assim que entrou no saguão da Aurora e levantou a cabeça, percebendo que Dalan e Dominic estavam sentados em uma mesa próxima.

 - Oh. Bom dia. - Falou o garoto com a boca cheia de ovos mexidos, se inclinando para trás em sua cadeira. Ele vestia uma camisa branca e uma calça escura, enquanto Dom usava um colete marrom por cima das roupas claras.

 - B-bom dia. - Respondeu Sophie, sentindo o rosto corar e a pulsação aumentar. Desviou rapidamente o olhar, procurando uma forma de fugir dali. Sua vida já estava muito complicada sem que tentasse decifrar o rapaz, e ficar ali só daria mais oportunidades de fazer uma nova besteira. Com alívio viu que Lyra estava na cozinha, preparando o café da manhã. Sem olhar para os companheiros, ela se aproximou rapidamente. - Lyra, qualatarefaquetenhoprahoje? - Perguntou nervosa, pondo as mãos no balcão e ruborescendo ainda mais.

 A outra garota reservou alguns segundos para decifrar a mensagem, movendo os lábios enquanto virava os olhos. - Eu... acho que não tem nada pra você, querida. - Disse finalmente, puxando um papel de trás do balcão. - Só daqui a dois dias. - Acrescentou quando deu uma olhada na folha.

 - E-eu posso fazer isso hoje! - Se adiantou Sophie. Lyra coçou a cabeça, pensando, enquanto que a outra garota mordia os lábios e evitava deliberadamente olhar para trás.

 - Eu... acho que pode. - Respondeu, um pouco confusa. Sua companheira sorriu aliviada e se esticou por cima do balcão para receber sua tarefa. Dalan, em sua mesa, ficou encarando a situação com a mão no queixo e o cenho franzindo enquanto pensava arduamente. Acompanhou Sophie sair da sede, e quando a porta bateu ele apontou o dedo naquela direção.

 - Acho que tem algo errado com Sophie. - Concluiu, e Dominic ergueu as mãos para os céus, suspirando aliviado e irritado. - Não deveríamos fazer alguma coisa? - Perguntou, voltando à mesa.

 - Infelizmente, não. - Respondeu o homem, se encurvando em seu prato. Ele garfou um pedaço de salsicha, levando até sua boca. - Já combinamos em deixá-la cuidar de seus problemas sozinha. - Completou enquanto mastigava.

 Dalan ficou confuso, apoiando o braço na mesa. - Como assim? Se sabemos que ela está com problemas, não deveríamos ajudá-la? Não somos companheiros de guilda?

 - Somos, mas você precisa saber de uma coisa. - Disse o homem mais velho, limpando sua boca e encarando o rapaz com uma expressão séria. - Julie prometeu à mãe, em seu leito de morte, que iria tomar conta de Sophie até que encontrassem o pai delas. Desde então ela leva essa promessa a sério, fazendo de tudo para que a irmã não se preocupe com nada e esteja sempre protegida. - Dom se ajeitou em sua cadeira, procurando uma posição mais confortável. - Desde que eu as conheço tem sido assim. Ela toma todas as decisões pelas duas, e quase nunca a deixa sair de seu campo de visão. Não houve nenhum espaço para que a irmã crescesse por si mesma em todos esses anos.

 - Não que eu não entenda o ponto dela! - Se adiantou Dom, mostrando as palmas. - Só os deuses sabem o que elas duas passaram. Ficaram anos nas ruas, lutando todos os dias para simplesmente ter o que comer. Só que eu... e o restante da Aurora... achamos que o melhor para Sophie é conseguir um pouco de liberdade da irmã. Poder ter um pouco de independência.

 - Eu não estou entendendo a relação entre isso e não ajudá-la com seus problemas. - Disse Dalan, estreitando os olhos.

 - Como eu disse, Julie tomava todas as decisões pela irmã. - Esclareceu o homem, voltando a garfar uma salsicha. - E isso acontece desde que entraram na Aurora. Só que dessa vez Sophie está com um problema que a irmã não pode resolver. Não existe mais a... muleta que usava nessas ocasiões. - Mastigou um pouco, evitando falar com a boca completamente cheia. Pela expressão dela a coitada está provavelmente passando por um inferno, eu sei, mas se tentarmos ajudá-la ela irá apenas trocar de dependência. Afinal, nunca teve de se virar. Queremos que ela encontre apoio em alguém que nunca confiou: ela mesma.

 Dalan se reclinou em sua cadeira, pensando com seus botões. Aquilo tudo era muito confuso para ele, mas tinha um sentimento bem definido sobre a situação. - Eu não gosto disso. - Confessou, puxando um garfo para voltar a comer. - Se o que você disse é verdade, e ela está mesmo passando por um inferno, não sou fã de deixá-la sozinha.

 - Também fui contra no início. - Admitiu Dominic, com uma expressão de descontentamento. - Só que ela precisa disso. É a primeira chance que tem para crescer. Entenda, ela não pode mais ficar escondida debaixo da saia da irmã. - Ele olhou para o lado, como se estivesse temeroso de Julie aparecer. - Se tem alguma coisa que falta em Sophie, é a confiança em si mesma. E ela só vai alcançar isso se conseguir resolver seus próprios problemas.

 O clima entre os dois se silenciou, e Dalan remexeu em sua própria comida, procurando a vontade de comer. Sentia vontade de ajudar a companheira, mas admitiu com relutância que provavelmente não teria nada a dizer. - Agora, para mudar de assunto, como está o treino com Sasha e Koga? - Perguntou o homem mais velho.

 O garoto estremeceu, se lembrando do dia anterior. A questão era que Koga havia decidido se tornar mais forte, e concluiu que a melhor maneira de fazer isso seria com a ajuda de Sasha. De alguma forma ele conseguiu puxar Dalan naquela maluquice, e os dois entraram em um martírio pessoal desde então. - Ela gosta de ver a gente sofrer. - Confessou alarmado para Dominic, sibilando por entre os dentes. - Ela é sádica, Dom. Sádica.

 - Sinceramente, o que vocês estavam esperando? - Perguntou o companheiro, sorrindo. - Não é como se estivessem pedindo ajuda para alguém desconhecido.

 - Eu imaginava que ela seria dura, mas não que fosse o demônio. - Disse o garoto, se esticando agora por cima da mesa. - Ela não liga que estamos nos recuperando! O coração de pedra dela vai nos matar e depois...

 - Caham. - Tossiu uma pessoa atrás dele. Dalan sentiu imediatamente uma gota de suor descer por sua têmpora, reconhecendo aquela voz. Se virou lentamente, tentando forçar uma expressão calma em seu rosto. Sasha estava ali, de braços cruzados, vestindo uma calça negra e colada e uma camisa azul com longas mangas.

 - Devo assumir que nosso treino está te cansando? - Perguntou a garota, levantando minimamente as sobrancelhas.

 - Nnnão? - Disse lentamente Dalan, com a voz aguda. Aguentou o olhar reprovador de Sasha com todas as suas forças, até que ela lhe deu as costas.

 - Pegue algumas roupas e se prepare. Estamos saindo em missão. - Disse a garota, se dirigindo até o balcão da cozinha. O rapaz ficou imediatamente confuso. Não era aquela resposta que estava esperando.

 - C-como assim? - Perguntou, se levantando e indo na direção da companheira.

 - O prefeito nos mandou mais um trabalho para fazer. - Disse Sasha, pegando um prato com pão e manteiga com Lyra. Virou a cabeça para cima, onde sua mãe estava apoiada no corrimão do segundo andar. O olhar da filha era bastante reprovador, mas ela não disse nada nesse quesito. Voltou à sua comida. - E nós quatro iremos resolver isso.

 - Nós quatro quem? - Perguntou Dalan, mas a resposta veio de outras formas. Do outro lado do saguão, Amanda e Wieder vinham caminhando pelo corredor.

 - Dalan, não vamos te esperar! - Alertou alegremente a garota. Ela vestia uma camisa rosa e uma calça branca, longa e folgada nos calcanhares, enquanto que o anão usava um macacão azul por cima da camisa vermelha.

 - Amanda faz parte desta missão? - Perguntou o rapaz, indignado. Amanda lhe mostrou a língua antes de responder.

 - Você sabe que é mais surpreendente você ser convocado para algo assim do que eu, né? - Provocou ela, fazendo com que o companheiro ruborescesse. Wieder se aproximou dele, com um sorriso no rosto.

 - Fomos chamados por causa de nosso trabalho nas Montanhas de Tina. - Disse o anão, cruzando os braços. - A senhora Stella, depois dos problemas que aconteceram nas últimas missões, decidiu reunir um grupo que tivesse atuado junto e com louvor. - Depois de falar isso ele abriu ainda mais o sorriso, esticando as sobrancelhas para o amigo. - E nós estamos nessa. - Sasha tossiu, chamando a atenção de Dalan e colocou os dois dedos no pulso.

 - Tá, eu estou indo. - Se apressou o rapaz. A garota bateu os dedos novamente, desta vez de forma mais energética. - O.K, O.K, eu vou correndo! - Ele se virou para o corredor, enquanto que Sasha se virava para os outros dois.

 - Espero que estejam preparados. - Disse ela, descansando o pão no prato. - Essa missão será consideravelmente mais difícil do que as outras. Quero total concentração e obediência às minhas ordens. Alguma pergunta? - Perguntou, apontando o dedo para eles. Uma dúvida surgiu na mente de Dalan, que se virou.

 -  Sasha, onde está seu uniforme? - Normalmente a garota usava um colante negro e azul, mas parecia ir em missão sem ele. A pergunta pareceu irritá-la por dentro, mas por fora ela manteve uma expressão fria.

 - Dalan, quero que saiba que você está em observação. E isso irá refletir no treino que teremos assim que voltarmos. - Ameaçou. O rapaz engoliu em seco e voltou ao corredor, andando rapidamente até seu quarto. Stella, observando toda a situação do andar de cima, solto o ar que mantinha preso. Não gostava daquela situação. Já havia sido difícil mandá-los realizar missões para o prefeito antes, e agora só se sentia pior. Parecia que estava perdendo o controle da guilda para o homem, que a propinava com abonos e financiamento. E, ainda pior do que isso, era a missão em si.

 Afinal, havia os mandado para a capital. E se apenas um quarto das histórias sobre aquela cidade fossem verdadeiras, eles nunca estiveram em maior perigo.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 16 - Segredos na floresta


AURORA
CAPÍTULO 16 - SEGREDOS NA FLORESTA

 O vilarejo de Tinyanga se encontrava bem escondido no meio das Florestas Cellintrunianas, uma mata oceânica bem diversa e viva ao nordeste de Helleon, ligada à cidade através da Estrada Verde. A composição daquela selva era bastante semelhante à Floresta de Hyannien, ao sul e sudeste da sede da Aurora, e aos bosques ao redor das Montanhas de Tina, mas foi nomeada de forma diferente por ser um território de domínio reptiliano. Não que isso significasse muita autonomia por parte daquela raça, historicamente segregada e injustiçada por todas as demais desde o início.

 Por exemplo, as Florestas Cellintrunianas possuíam um território cinco vezes menor que Arasteus, a região de jurisdição humana que englobava Helleon e seus arredores. Sua extensão se limitava à uma enseada, cruelmente separada das ricas Montanhas de Tina por apenas poucos quilômetros. Restava aos reptilianos a pesca e a extração de matéria-prima da mata, mas por serem uma raça extremamente ligada à natureza suas atividades se limitavam à subsistência. Restava a eles a prestação de serviços, pagos a uma quantia bem menor do que outras raças, mas que os ajudava a importar o que era necessário. Até mesmo o nome daquele lugar era fruto do preconceito, pois era costume chamar territórios na língua da espécie ali responsável, com exceção de zonas mistas. No entanto, ninguém se referia às florestas com sua alcunha verdadeira. De fato, ninguém se importava em aprender. Apenas os reptilianos que ali moravam. 

 Não que os incomodasse. Desde que existiam como raça, os reptilianos eram constantemente explorados. Embora a escravidão não fosse permitida, e sua atividade fosse condenável por cada governo presente na Aliança, isso não os impedia de serem tratados como uma sub-espécie. Com todas as disputas políticas por territórios e negócios, restava ao Povo de Escamas, como eram chamados, as áreas rejeitadas e os tratados desiguais, que muitas vezes eram considerados como presentes por parte das outras raças. E era assim que a maioria dos reptilianos recebia as migalhas atiradas em sua direção. Presentes. Depois de anos e anos de subjugação, era difícil encarar como outra coisa. Até mesmo o governo deles reprimia duramente os revoltosos, com medo de sofrerem represálias da Aliança. E assim eles seguiam, obedientes e ignorados, à parte do resto do mundo.

 O vilarejo de Tinyanga, por exemplo, prestava serviços de cura a preços praticamente nulos. Poucas guildas se dispunham a cruzar a longa Estrada Verde, e as que chegavam eram tratadas como parte da realeza. O próprio líder de Tinyanga, Galeh, alimentava essa atitude. Ele era um reptiliano tão comum que parecia ter saído de um livro educativo para crianças. Seu corpo parecia, assim como toda sua raça, um pequeno dinossauro. Caminhavam sob duas patas fortes, auxiliadas pelo longo rabo, e possuíam longos e finos braços de quatro dedos no tronco. As escamas variam em tons de verde, com a barriga normalmente de uma cor mais clara. Possuíam uma crina de pelos negros nas costas e na cabeça, coloridos desde a infância para representar a região em que nasciam. O restante do mundo ignorava esse fato, mas era um dos únicos orgulhos do Povo de Escamas. Galeh, por exemplo, se pintava com as cores da Florestas Cellintrunianas, vermelho, preto, amarelo-dourado, branco e verde. E ele os agitava animadamente, extremamente feliz ao receber Stella.

 - Não se preocupe! Nós iremos cuidar dos seus companheiros como se fossem nossos! - Exclamou Galeh, com uma voz grave e sibilante. Estava reunido com a mulher em sua cabana pessoal, uma oca circular de apenas dois cômodos, com paredes de madeira fina e teto de folhas. Ele estava agachado em cima de sua mesa, oferecendo um olhar arregalado e uma boca sorridente. A líder da Aurora se sentiu inconfortável com toda aquela bajulação e deu um passo para trás, estendendo as palmas das mãos. 

 - Tenho certeza que vocês irão fazer um bom trabalho. - Acalmou ela, soltando um sorriso forçado. O chefe de Tinyanga saltou da mesa e se adiantou, tão animado que saltitava.

 - Colocaremos nossos melhores curandeiros em ação! Seus amigos sairão daqui melhores do que entraram! - Ele se calou, olhando para baixo enquanto pensava no que tinha dito. - Quer dizer, esse é o nosso propósito, mas...

 - Galeh, eu vou colocá-los na sua mão. - Disse Stella, aproveitando o desconcertamento momentâneo do reptiliano para falar bem firme. Era como conversar com uma criança. - Agora eu vou descansar, tudo bem? Conversaremos sobre o pagamento mais tarde. - Ele arregalou os olhos e quase recomeçou a falar, mas a mulher já tinha lhe dados as costas para sair da cabana pela porta aberta.

 A aldeia de Tinyanga se abriu diante dela, com vinte e cinco ocas espalhadas de forma aparentemente aleatória no meio de uma grande clareira iluminada por um céu claro. A grama ali era bem rebelde, com exceção das ruelas de terra que ligavam uma cabana a outra. Por entre as folhas, insetos voavam de um lado para outro, trazendo consigo um forte cheiro silvestre. Todas as ruas levavam a uma praça no meio da região, que estava entulhada de reptilianos correndo de um lado para o outro com diversas ervas nas mãos. Haveria um ritual naquela noite, um ato tradicional que purificaria a família de um morto recente para entregá-la à um outro membro da aldeia. De fato, todos aqueles que não estavam cuidando dos feridos da Aurora estavam envolvidos naquela preparação. Stella sorriu, aproveitando a falta de atenção nela. Seu falecido marido gostava de vir ali, mas ela não era Adam. Não gostava de ser o centro das atenções.

 Enquanto caminhava, avistou Lyra à distância, caminhando em sua direção. A garota andava com um ar melancólico, mas se alegrou imediatamente ao perceber a chefe a encarando. Stella estranhou o momentâneo rosto triste dela, mas se convenceu de que não seria nada. Acenou sorridente ao passar pela companheira, que retribuiu na mesma intensidade. 

 Enquanto Stella se dirigia à sua oca para descansar, Lyra foi até às cabanas onde os feridos se encontravam em tratamento, tratando de manter a expressão alegre até chegar lá. Entrou na ala médica masculina, e se surpreendeu ao ver Julie lá dentro, sentada ao lado da cama de Dalan.

 - Entendi, obrigada. - Disse ela, se levantando. Estava com a mão enrolada em faixas verdes, e passou por Lyra sem dizer uma palavra. O garoto permaneceu em sua cama, encarando desconcertado a garota que saía.

 - O que aconteceu? - Perguntou Koga, se aproximando. Ele tinha alguns esparadrapos colados ao redor do corpo, mas nada que o impedisse de se levantar.

 - Julie quis saber o que aconteceu na última missão comigo e com Sophie... - O garoto fitou o companheiro com uma ar de dúvida. - Parecia um pouco irritada.

 - Ah, não se preocupe. - Acalmou-o o outro, se sentando na cama. - Ela é só muito protetora com a irmã. Imagino que tenha feito o mesmo com Amanda. - Os olhos de Dalan se arregalaram, e ele desviou o olhar. Lyra chegou mais perto, forçando a expressão sorridente.

 - Koga, eu precisava que você me ajudasse com algumas coisas. - Pediu ela, juntando as mãos. O garoto lançou a ela um olhar compreensivo e se levantou, deixando Dalan com seus pensamentos. Enquanto caminhavam pela oca, ele se aproximou e sibilou.

 - Aconteceu alguma coisa? - No entanto, Lyra apenas balançou negativamente a cabeça.

 - Aqui não. A senhora Stella quase me viu... daquele jeito. Vamos para um lugar afastado. - Saíram da cabana, se dirigindo até a floresta. Se embrenharam na mata por alguns minutos até chegarem a um tronco caído. A garota se sentou, convidando o companheiro a acompanhá-la. - Você está bem? - Perguntou ela. Ainda mantinha o sorriso, mas seus olhos refletiam uma tristeza crescente.

 - Tive alguns problemas, mas consegui resolvê-los sem ninguém desconfiar. - Ele colocou a mão no ombro da companheira, oferecendo-a um olhar condescendente. - Acho que não é o seu caso, não?

 Lyra não respondeu, mas retirou lentamente uma carta amarrotada de seu bolso. - S-Samuel me respondeu. A carta chegou um pouco antes de tomarmos a Estrada Verde. - Ela fungou, e seus olhos se tornaram marejados.

 - O que ele respondeu? - Perguntou Koga, sério.

 - E-e-ele... - A garota parecia à beira de um colapso, amassando a carta com as mãos. Se virou para o amigo, fungando novamente. - Ele não vai voltar. - Disse com a voz fraca. Em seguida se jogou no companheiro, chorando copiosamente. Koga fechou o rosto e a abraçou, oferecendo o conforto em troca das palavras que lhe faltavam.

 Ficaram ali alguns minutos enquanto Lyra desabava, soltando tudo que havia guardado dentro de si durante o último dia. A floresta parecia os esconder, aninhando-os em seu colo verde. Por fim a garota conseguiu se recompor um pouco, mas continuou agarrada firmemente à camisa do amigo, soluçando fracamente. - Éramos uma família, não éramos? - Perguntou com a voz enrolada, fungando. Koga apoiou o queixo em sua cabeça, meditando um pouco enquanto se aninhava nos fios roxos.

 - Ainda somos. - Disse o garoto finalmente. - Só que Samuel não percebia. Ele queria algo muito maior do que a gente, e não queria trabalhar para nos ajudar a ficar do tamanho que queria.

 - E-ele arranjou outra guilda. - A garota intensificou o aperto, sentindo as lágrimas voltarem a escorrer e o rosto franzir. - Não consigo acreditar, sabe? - Confessou com a voz dolorida. - Samuel sempre me ajudou quando eu precisava. Sempre mostrou uma vontade imensa de ajudar a Aurora. Vê-lo desistir é tão... tão...

 - Eu sei. - Interrompeu educadamente Koga, passando a mão em seus cabelos. - Só que... devemos continuar. Temos que fazer com que a guilda cresça e mostrar para eles.

 - Sim... - Soltou a garota, engolindo em seco. - E... um dia eles podem voltar. - O garoto preferiu ficar calado a responder, mordendo a língua. Lyra reservou mais alguns minutos para se recompor, para em seguida se afastar sorrindo do rapaz, limpando os olhos. - Obrigada. Sério mesmo, obrigada.

 - Não se preocupe. - Respondeu Koga, sorrindo em resposta. - Não é a primeira vez nem a última que vamos fazer isso. E talvez na próxima seja você quem vai me ajudar. - A garota ampliou o sorriso, passando a mão nos cabelos para arrumá-los.

 - Hoje a senhora Stella quase me pegou... daquele jeito. - Disse ela, desentrelaçando os fios roxos com os dedos. - Eu tenho que prestar mais atenção nessas horas. Se a gente desabasse perto deles, quem sabe o que iria acontecer.

 - Eu já te disse que somos a pedra fundamental da Aurora. Precisamos nos manter felizes perto do resto deles, para levantar um pouco o clima. - O rapaz se levantou, espreguiçando as costas. - Por mais que irrite algumas pessoas.

 - Está falando de Julie, não é? - Perguntou a garota, se levantando também. - Ainda acho que ela se irrita demais com você. Já te disse que talvez seja o jeito dela de...

 - Nem tente. - Interrompeu novamente Koga, sorrindo e estendendo a mão. - Já faz uns três anos que você tenta juntar a gente. Isso quando não fala de Sasha e Marcus.

 - Vocês são muito chatos. - Brincou Lyra, cruzando os braços. - Todos vocês. Não valorizam meu trabalho de cupido. Por sorte eu tenho outro casal pra trabalhar.

 - Quem? - Perguntou Koga, afastando um pouco a cabeça.

 - Não vou te dizer. - Respondeu a garota de forma misteriosa, embora ainda mantivesse o sorriso. - Só acho que esses dois perceberão seus sentimentos mais rápido do que vocês todos. Quer dizer, não são um casal tão fofinho quanto você e Julie, mas ainda são promissores.

 - Desde que tire você do meu pé, eu aceito. - Riu ele, e em resposta Lyra o empurrou de brincadeira. Os dois seguiram para voltar ao vilarejo, distraídos e brincando um com o outro. Não repararam algo estranho na floresta, e mesmo se estivessem prestando atenção seria difícil de detectá-lo. Uma figura encapuzada os observava, escondida pela escuridão que o teto de folhas proporcionava. Ele ficou em silêncio até os membros da Aurora se afastarem, para em seguida dar as costas, sumindo completamente nas Floresta Cellintrunianas.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Aurora: Capítulo 15 - Requianno


AURORA
CAPÍTULO 15: REQUIANNO

 De início, parecia apenas mais um estabelecimento abandonado à beira da estrada, escondido pelo pôr-do-sol que se alongava. Era grande, com três andares de pedras pálidas pontuados com dezenas de pequenas janelas de madeira, mas não parecia conter uma alma dentro de si. No entanto, uma pequena bandeira no topo da cobertura indicava algo mais. O símbolo de uma cruz azul em um fundo branco tremulava ao vento, e seu significado era especial. Aquele prédio era um porto seguro para membros de guilda, exauridos por suas batalhas e muito afastados de suas sedes. Requianno era o nome daquela espécie de edifícios na língua élfica, e poderia ser traduzido livremente como "local de descanso". E era naquele Requianno, precisamente o localizado no meio da Estrada Verde, que a Aurora se encontrava.

 Stella Alba, a mestra da guilda, saiu do estabelecimento com a mente nebulosa. Encarou seus companheiros que se rodeavam no lado de fora e seu coração apertou. Dos nove membros que haviam saído em missão para o prefeito, apenas dois estavam relativamente ilesos. Stella chamou sua filha Sasha, sua segunda-em-comando Lyra e Amanda, as únicas que não apresentavam ferimentos consideráveis. - Aqui estão as chaves dos quartos. - Disse, entregando um molho nas mãos da garota de cabelos roxos. - Consegui seis aposentos, então dividam-nos de forma adequada. Irei pagar o motorista. - Com isso, se separou das outras e andou até uma carroça estacionada na estrada, passando pelo restante dos membros da Aurora.

 Os feridos estavam sentados no chão de pedra ou nos bancos de madeira, cansados e com poucas palavras. Todos tinham curativos rudimentares de primeiros-socorros, passando de faixas enroladas nas costelas de Dominic a uma tala na mão enfaixada de Sophie. Stella suspirou, mal conseguindo encará-los. Havia sido ela quem aceitou as missões, e teve bastante sorte de todos ali terem voltado vivos. Muita sorte.

 Parou ao lado da carroça puxada por grandes canabéis, separando distraidamente os tens para pagar o motorista. Tentou se alegrar ao ver a quantidade de dinheiro em sua carteira. O abono nos impostos havia lhe dado segurança financeira, o suficiente para que pudesse garantir um atendimento médico competente para seus companheiros. No final, tudo havia dado certo, não? - Que horas amanhã? - Perguntou levianamente ao motorista. Ele deveria levá-los até o final da Estrada Verde, onde existiam vilarejos reptilianos que cuidariam melhor dos feridos.

 - Oito da manhã. - Respondeu o garoto sardento com a voz aguda e cantada. Assim que terminou de contar o dinheiro ele estalou o chicote, forçando os animais semelhantes a touros a seguirem estrada adiante. Stella ficou parada algum tempo, sentindo o vento fresco balançar seus cabelos, e quando se virou percebeu que o restante da Aurora já havia entrado no Requianno. Mais rápido do que eu pensei, admitiu, e caminhou em direção ao estabelecimento. Se pegou perguntando no que eles estariam pensando.

 - O que está fazendo, rapaz? - Perguntou Dominic assim que entrou em seu quarto no primeiro andar. O aposento era bem apertado, mobiliado apenas com duas camas e um armário. Dentro dele Koga estava sem camisa, fazendo flexões no chão de pedra. O garoto parou e se deitou de costas, suspirando enquanto limpava a testa suada com a palma das mãos.

 - Treinando. - Respondeu o rapaz, fitando o teto acima dele.

 - Agora? Você está em recuperação! - Exclamou o outro homem, adentrando o quarto. Koga ficou em silêncio, buscando as palavras.

 - Sabe o que eu estive fazendo nos últimos dois anos, Dom? - Perguntou o garoto, se apoiando com o cotovelo no chão. - Nada. Não treinei nada, não fiz quase nenhuma missão e passei o tempo inteiro dentro de Helleon.

 - Não é o único, acredite. - Admitiu o outro homem, deixando suas malas em cima da cama. - Agora, por favor saia do chão empoeirado. Você já passou mal em sua última missão, e tudo o que não precisa é ficar doente de novo.

 - Exatamente! - O garoto se levantou, se levantando. - Eu não fiz nada nessa última missão! Claro, a não ser que você conte ser pateticamente salvo por Sasha e Julie, mas esse é o ponto! - Se alongou até grunhir, e começou a fazer o mesmo com as pernas. - Elas ficaram muito acima de mim, e meu papel na missão se resumiu a cair de um barranco! - Ele encarou o outro homem com um olhar determinado. - Isso não vai acontecer de novo.

 Dominic ficou em silêncio, reconhecendo a verdade naquelas palavras. Tal verdade que se aplicava a ele também. - Tudo bem, mas precisa mesmo fazer isso antes de chegarmos ao vilarejo?

 - Passei dois anos de sacanagem. Já tive todo o tempo para me recuperar. - Respondeu o garoto, voltando às suas flexões. Dom sentou-se na cama, fitando distraidamente o companheiro absorvia o que ele havia dito. Estava agindo da mesma forma que Koga desde que Adam morreu, notou. Passou meses de inércia, bebendo no bar enquanto o restante da guilda se decompunha. Era aquilo que a Aurora precisava, em seu momento mais difícil?

 - Faça o que achar melhor, rapaz. - Avisou ele, se dirigindo à sua cama. - Assim que minhas costas se recuperarem, irei te acompanhar. - Koga sorriu, continuando com suas flexões. Era a hora de mostrar sua real importância na guilda.

 Do outro lado do prédio, no terceiro andar, Lyra estava sentada de pernas cruzadas em cima de sua cama, vestida com uma camisola e com o cabelo preso em um rabo-de-cavalo. Avaliava os documentos das missões para a senhora Stella, e só cessou de olhar os papéis quando Amanda saiu do banheiro, enrolada em uma toalha grande enquanto enxugava o cabelo com uma menor. O vapor d'água a acompanhava em densas camadas, ocupando o teto do quarto.

 - Nem tive tempo para te perguntar. - Disse Lyra, recolhendo os papéis enquanto a amiga procurava uma roupa em sua mala. - Como foi com Dalan? Conseguiu resolver os problemas dele?

 - Com muito esforço, sim. - Respondeu a outra garota, balançando a toalha na cabeça com mais vontade. - Acredite, ele não é a pessoa mais inteligente do mundo, nem a mais perceptiva. Precisou de alguns empurrões. - Ela terminou de secar o cabelo e começou a desenrolar a toalha que cobria seu corpo.

 - Ainda não entendi essa sua fixação pelos problemas do garoto. - Comentou Lyra, estreitando os olhos com um sorriso provocador. Amanda sorriu e soltou o ar pelo nariz, girando os olhos. Era o sinal de que não iria continuar nesse assunto. A outra, por sua vez, adotou uma postura mais séria. - E quanto à Samuel? Já... superou a saída dele? - Estava falando do homem que havia abandonado a guilda no dia em que Dalan chegou. A garota mais nova estava colocando o pijama, e parou quando terminou de colocar a calça.

 - É claro que não. - Admitiu. Seus olhos ficaram marejados, e ela sentou-se na cama. - Ainda não consigo acreditar. - Confessou com a voz fraca, encarando o chão de pedras com os cotovelos nas pernas. - Sempre achei que todos nós éramos uma família, entende? - Perguntou, levantando a cabeça para fitar a outra, como se encontrasse alguma resposta em seu rosto. - Família não abandona família.

 Lyra sorriu e se levantou para ficar ao lado da amiga, abraçando-a. - Se quiser se alegrar, acho que todos os que sobraram na Aurora se consideram família. Até mesmo Dalan e Wieder. - Amanda sorriu de volta, esfregando os olhos nas costas da mão.

 - É uma forma de encarar. - Disse, mas não pareceu se conformar com isso. Continuou a se vestir enquanto que a companheira voltava aos papéis de Stella. Família não abandona família, refletiu repetidamente.

 No quarto ao lado, Julie estava com rolo de esparadrapos na mão sadia, e tentava enrolá-los desajeitadamente em torno da cintura da irmã. Sophie ficou calada, aguardando, até que a gêmea terminou a terceira volta. - Acho que está tudo bem agora. Obrigada. - Disse com a voz fraca.

 Julie mordeu a língua, observando seu trabalho recém-feito. - Eu devia ter ido com você. Não era pra você ter feito uma missão sozinha.

 - Não, tudo bem! Eu... não estava sozinha. - Se adiantou a irmã, mas ainda com a voz fraca. A outra garota fez um muxoxo e se levantou, caminhando até sua cama. Sophie abaixou a camisa e começou a torcer as mãos, encarando-as.

 - O que houve? - Perguntou Julie, retirando seus brincos.

 - Eu... - A irmã mordeu a boca por dentro. Tinha tantas coisas que poderia falar. Por exemplo, não sabia se Dalan era uma pessoa terrível ou o completo contrário. Não sabia se ele e Amanda teriam algo a mais, e como se sentia em relação a isso. No entanto, havia um desejo, muito mais antigo do que os outros, que se manifestou novamente em Thomas Galvan. - Eu queria ser mais forte. - Disse baixinho. Dalan e Amanda pareciam ter uma sincronia de alguma forma, e isso provavelmente era porque estavam no mesmo nível. Ninguém ligaria para ela por muito tempo, um peso morto, inútil a longo prazo. A outra garota estreitou os olhos e abriu um pouco a boca, pensando.

 - Sasha te disse alguma coisa? - Perguntou desconfiada. Sophie levantou a cabeça com os olhos arregalados em resposta.

 - N-n-n-não... não é isso. - Respondeu apressadamente, balançando negativamente a cabeça. Ela voltou à suas mãos, retorcendo-as lentamente. - Eu só... acho que queria fazer mais, sabia? Isso talvez... me ajudasse a me sentir melhor. - Não estava disposta em contar sobre as consequências que essa sensação de inferioridade causava, principalmente porque ainda não havia entendido direito seus sentimentos. Só sentia que a maior parte de culpa naquela situação era dela.

 Julie suspirou. - Você é parte vital da Aurora, Sophie. Não se menospreze desse jeito.

 - Não, mas... - Havia algo que a perturbava havia muito tempo. - Eu sinto que essa minha... essa minha fraqueza apenas puxa as outras pessoas para baixo. - Confessou com a mão no peito, se agitando. - Você poderia fazer muito mais na guilda se não fosse por mim! Nos últimos dois anos não pegou quase nenhuma missão! Se eu fizesse alguma coisa, você poderia...

 - Somos uma dupla, irmãzinha. - Interrompeu a outra, sorrindo pacificamente. - Se eu fiquei dentro da sede durante todo tempo, era para ficarmos juntas. - Sophie respirou fundo, sentindo o coração se apertar e os olhos marejarem. Então era verdade. A irmã havia sacrificado seu crescimento na Aurora para cuidar dela. Se sentiu mal, e deitou na cama com o rosto virado para o outro lado.

 - Obrigada. - Sibilou, e afundou o rosto no travesseiro. Julie conseguia enxergar a dor na irmã, mas o que poderia dizer? Se louvasse a garota demasiadamente, ela provavelmente se colocaria em situações bem mais perigosas nas missões seguintes, e poderia facilmente morrer. Deixá-la assim, por mais que quebrasse seu coração, era o único jeito de mantê-la segura. Seria Julie quem iria protegê-la enquanto procuravam o pai. Havia feito essa promessa há muito tempo.

 Havia acontecido alguma coisa com ela na última missão, concluiu Julie enquanto se deitava. Ela não estava assim antes, e não parecia disposta a contar o que houve. Se Sophie não confessasse, concluiu, teria que perguntar para seus companheiros naquele dia. Se perguntou se Amanda ou Dalan haviam feito alguma coisa.

 Dalan que, por sua vez, caminhava à frente da porta do quarto das garotas naquele exato momento. Assobiava distraído, procurando o tonel de água que supostamente estaria naquele andar. Sua sede estava angustiante, e isso o deixava bastante irritado. Pra quê esconder água, se perguntava. Como esperavam que ele ficasse sem um único copo antes de dormir? Ou percorrer um labirinto para achar algo tão básico? Passou por uma porta aberta que dava para o ar livre, e adentrou-a como se esperasse ver o tonel ali, rindo e se escondendo. Chegou em uma varanda, iluminada pela lua cheia acima, e olhou para os lados com raiva. Tal qual foi sua surpresa quando avistou duas figuras na semi-escuridão, e uma delas tinha um par de familiares maria-chiquinhas.

 O rapaz instintivamente voltou ao corredor, com as costas coladas na parede e o coração batendo forte. Aquela não parecia ser uma situação normal em que duas pessoas se encontravam. Não numa varanda de pedras, iluminada pela lua. Soava um pouco... romântico? Então quem estaria com Sasha? Dalan não resistiu à sua curiosidade, e esticou o pescoço para identificar a segunda pessoa. Para seu espanto, percebeu que era Marcus, o membro da Aurora que havia encontrado no bar Quatro Luas alguns dias atrás. Ele e Sasha? O que estava acontecendo ali? O garoto ficou quieto, tentando ouvir o que estavam falando.

 - ... está ficando mais difícil de controlar, sabe? - Dizia Marcus, encarando sua mão direita. - Isso quase comprometeu minha última missão. Se estivesse sozinho...

 - Você sabe o que deveria fazer. - Respondeu Sasha, apoiando as duas mãos na sacada de pedra cinza. O vento agitava seus cabelos, mas seu rosto era impassível. - Se continuar assim, alguém acabará morrendo. Precisa procurá-los.

 - Eles nunca me aceitariam de volta. - Disparou o garoto, ajeitando seu tapa-olho. - Sabe como são. Só preciso de um tempo para meditar e retomar meu equilíbrio. Consigo fazer isso sozinho.

 - Bem, se tem alguém nessa guilda que eu confio a tal ponto, é você, Marcus. - Dalan ajeitou o corpo, procurando uma posição para escutar melhor as palavras trazidas pelo vento. Isso estava ficando bom. - Apenas não postergue isso. Precisamos de você cem por cento.

 - Não se preocupe. - Respondeu o rapaz, se virando para ficar de costas para a sacada. Dalan recuou a cabeça, aterrorizado, mas não pareceu ser notado. O outro garoto apenas cruzou os braços e apoiou o pé esquerdo na fachada. - Agora, você me chamou aqui para...?

 Sasha ficou em silêncio, observando a floresta infinita à sua frente. Dalan estava quase se arriscando para ouvir melhor, achando que ela estava falando baixo demais, quando sua voz irrompeu pelo ar. - Eu precisava de seu pessoal para checar uma coisa para mim.

 Era só isso? Dalan revirou os olhos, se amaldiçoando por ter colocado suas expectativas tão altas. De qualquer forma, ainda curioso, voltou a ouvir a conversa. - Continue. - Pediu Marcus. Sasha desviou os olhos e pareceu arrependida de iniciar aquela conversa, mas seguiu em frente.

 - Minha missão se consistiu em prender um velho que estava ocupando um território não-permitido. - Começou Sasha, se abraçando. Era difícil dizer se era por causa do frio ou da história que contaria. - A questão é que ele havia ficado louco. E supostamente... supostamente era porque tinha avistado Zemopheus. Aqui. Deste lado da fronteira.

  Dalan ficou calado, sentindo o coração disparar. Não poderia ter ouvido certo. Certamente a garota havia dito outra coisa, e não o nome da encarnação do mal, o demônio que havia enganado deuses e provocado uma guerra cujo início se misturava com o início dos tempos. Marcus não reagiu da mesma forma, mas se virou na sacada e encarou a floresta, como se conseguisse enxergar através das árvores. - Você sabe que isso é completamente irreal, não?

 - Vindo de apenas uma fonte, sim. - Disse Sasha, virando a cabeça para também encarar a mata silenciosa. - Por isso queria que você checasse com os seus passarinhos. Preciso de confirmação. Da forma mais discreta possível, por favor.

 - Não sou idiota. É claro que farei isso por baixo dos panos. - Disparou Marcus, sem se mover. Os dois continuaram em silêncio por algum tempo, ambos imaginando o pior. - E se... for verdade? O que pretende fazer com essa informação?

 Correr seria um bom início, pensou nervosamente Dalan. A garota, por sua vez, descruzou os braços. - Então eu saberei. E isso já seria um pouco melhor.

 Ela começou a voltar para dentro do edifício, e o rapaz escondido ouviu seus passos se aproximando. Desesperado, ele tropeçou até o corredor interno, andando rapidamente até seu quarto em seguida. Ouviu um copo se quebrando na distância e se assustou, apressando o passo depois. Estava quase correndo quando chegou, e adentrou o aposento como um raio, batendo a porta atrás de si. Wieder, que estava deitado em sua própria cama, abaixou o livro que lia e encarou o garoto.

 - O que houve? - Perguntou o anão. Vestia uma touca de dormir branca, e estava coberto dos pés aos ombros. Dalan não respondeu, ainda extremamente nervoso pelo que havia acontecido, e rapidamente começou a vestir seu pijama. Estava motivado por uma confiança infantil de que nada poderia atacá-lo em sua cama. - Bem, eu vou fingir que seu comportamento é normal. - Declarou Wieder, de volta à sua leitura. - De qualquer forma, queria nos parabenizar.

 - Pelo quê? - Perguntou Dalan distraído, deitando na cama. Puxou as cobertas até o queixo, com o coração ainda batendo forte.

 - Por conseguirmos fazer as tais missões incrivelmente importantes. - Respondeu o anão, sorrindo de orelha a orelha. - Normalmente você tem um tempo até fazer algo marcante numa guilda. Estamos na Aurora há menos de uma semana, e já fomos essenciais. - Ele lambeu o dedo e virou a página. - Agora só falta um repórter para divulgar nossos feitos. Talvez eu arranje um quando voltarmos à Helleon.

 O rapaz não tinha muita vontade de conversar, mas Wieder estava tão mergulhado em seus sonhos de fama que nem percebeu. Dalan se revirou na cama, encarando de olhos bem abertos a parede cinza. Será que Zemopheus estaria realmente lá fora? Espreitando, fazendo planos? E se o maior inimigo de toda Aliança estava em território teoricamente seguro, o que estava acontecendo com o exército na Fronteira? Hein? O garoto se revirou nas cobertas, crente de que a noite seria longa.

 Sasha também acreditava nisso, e pelos mesmos motivos. Ela andava calmamente pelos corredores do hotel, se dirigindo ao seu quarto. As palavras de Marcus ecoavam em sua mente. O que faria se encontrasse Zemopheus? Ele era um adversário de um nível incapaz de ser imaginado. Não havia como derrotá-lo. E isso a enfurecia por dentro. Não havia nada a fazer caso o encontrassem. Apenas rezar para uma morte rápida.

- Feche a porta. - Pediu Stella. Sasha se assustou, percebendo que já estava no quarto. De forma quieta ela obedeceu, desabotoando a camisa em seguida para vestir o pijama. A mãe estava sentada na escrivaninha, iluminada apenas por uma lamparina e cercada por diversos papéis aparentemente oficiais.

 - O que é isso? - Perguntou a garota, retirando a camisa.

 - Nossas contas. - Respondeu a outra mulher, ajeitando os óculos em seu rosto. - Com o abono do prefeito por realizarmos as missões dele, temos um caixa sobrando. Estou pensando em qual dívida pagar primeiro.

 - Tem certeza de que não existe nenhuma pegadinha nas promessa dele? - Perguntou Sasha, ansiosa para afastar a mente dos terrores ocultos.

 - Só saberei quando comparecer à reunião do Conselho Regional, Sasha. - Respondeu a mãe, puxando uma dívida de mais de sete anos, ainda dos tempos em que seu marido era o líder da guilda. - De qualquer jeito, não é um problema para agora. Preciso que você descanse para me ajudar com a logística amanhã. Lyra deve passar a noite inteira lendo os contratos das missões que realizamos para o prefeito em busca de alguma falcatrua, e irei precisar de ajuda.

 - Tudo bem. - Respondeu a garota, terminando de vestir a camisola. Se deitou na cama, pensando se contava ou não à mãe sobre o que havia descoberto em sua missão. O terror inerente àquele assunto voltou a assombrá-la, e Sasha respirou fundo. Não adiantava perturbar a mãe sobre aquilo. Pelo menos não enquanto não tivesse certeza de que estavam sob perigo. Seu trabalho era proteger a guilda, e não causar confusões.

 De qualquer forma, a Aurora por inteiro já parecia estar repleta de problemas e temores para adicionar mais um à bandeja.