sábado, 29 de novembro de 2014

Aurora: Capítulo 42 - Crede In Te


AURORA
CAPÍTULO 42: CREDE IN TE

 Sophie caminhava entre os becos da fortaleza flutuante, escondida pela iluminação débil. Vestia um uniforme de prisão no mínimo dois números acima do seu, uma blusa cinza e folgada cuja abertura formava uma grande área entre os ombros e uma calça da mesma cor que precisava ser ajeitada a cada quinze passos. No entanto, a garota não se incomodava com isso, muito porque havia um sentimento tão predominante em sua alma que não deixava espaço para nada mais. Medo.

 O temor era visível em seu corpo. O estômago parecia imerso em um balde de gelo, e era difícil andar com a tremedeira dos joelhos. De vez em quando um trovão a fazia saltar pelo susto, isso quando era ouvido através da batida insana do coração. Cada passo da membro da Aurora era marcado pelo questionamento entre fugir e cumprir a missão que Sasha havia passado. Até agora não fazia nenhum dos dois, pois caminhava na direção em que sua suposta adversária havia caído mas se escondia a qualquer menção de proximidade. E isso a estava deixando louca.

 O que viera fazer ali, se perguntava. Em um momento estava no melhor sonho de sua vida, onde era a mais respeitada membro da guilda. Todos estavam lá, sua irmã, seu pai, Dalan... a aplaudindo e a respeitando. Só que de repente fora acordada e tudo era uma mentira, percebeu isso assim que Sasha disse para escolher um adversário do Culto Púrpura. Bastava uma olhada neles para destruir qualquer resquício de fingimento e acordá-la para realidade. Ela teria que enfrentar pessoas que quase mataram seus companheiros sozinha, e tudo que tinha era a capacidade de se tornar invisível. Parcialmente.

 Atravessou o beco e saiu em uma rua larga, sem notar realmente para onde estava andando. Só conseguia pensar na sua tal adversária, a fada que absorvia poderes. Julie havia lhe dito que ela era uma sádica. O coração de Sophie se encolheu, o medo a envolvendo. O que pensava que ia fazer? O que faria quando encontrasse a mulher? Como seus companheiros tiveram a coragem de mandá-la a essa luta? Estava sozinha como nunca antes.

 Um som abafado surgiu do fim da ruela, e quando ela virou o pescoço viu uma figura roxa disparar em sua direção. Pulou para trás por reflexo, esquivando por pouco de um soco que mirava sua cabeça. A recém-chegada no entanto girou o corpo e lhe deu um chute no estômago, fazendo com que a garota voasse até o beco atrás de si, batendo as costas na parede do outro lado.

 Tossiu um filete de sangue, a respiração débil minando suas forças. À frente, sua adversária se empertigava e sorria. - Fico feliz de ter te encontrado! - Dizia ela, as asas vibrando mesmo com a fada no chão. Seu nome era Jyll, como havia dito sua irmã. Tinha o cabelo curto e azul-escuro, coberto pelo capuz da capa roxa e de adornos prateados. A roupa cobria uma veste complicada, composta por um top decotado de linho roxo-escuro que terminava bem abaixo dos seios, de onde saía uma traje colado, marrom e transparente, com uma longa tanga ornamentada das cores da capa no quadril. - Eu queria muito lutar contra você ou aquele garoto de tapa-olho pelo que fizeram comigo nas montanhas de Tina. Até mesmo peguei os poderes de Rohr para isso. - Sophie limpou a boca com as costas da mão. Estava sendo confundida com Julie. Por um momento pensou em pegar a boina, mas se lembrou que havia a perdido no naufrágio.

 - Eu... - Tentou começar, se levantando com as costas grudadas na parede. Procurava uma bravata, uma provocação que os corajosos faziam frente ao perigo. Só que nada veio. Ao invés disso havia o medo, o temor pela vida que era intensificado pelo olhar intenso e arregalado de Jyll. A membro da Aurora arfou, os joelhos tremendo na vontade de cederem. Ela já havia enfrentado batalhas antes, mas normalmente estava escondida, invisível, imperceptível no calor da batalha. Hoje, as coisas eram diferentes. Era uma contra uma, e não havia como se ocultar sem que a outra percebesse.

 Seu medo era tão palpável que a fada, do outro lado, conseguiu perceber. E sorriu. - Ora, não sabia que havia causado uma impressão tão marcante na nossa primeira vez. - Zombou, deliciada pela situação. - Mas não se preocupe. Me aconselharam a não te matar, portanto vou parar um pouco antes. - Ela passou a mão pelos curtos fios negros, o brilho no olhar se acentuando. - Apenas quebrarei todos os seus ossos, Irei parti-los com lentidão e cuidado, para que você sofra a cada segundo. Pensando bem... - Ela parou, o vento salgado agitando sua capa e seus cabelos. - Talvez eu te mate mesmo.

 Naquele momento Sophie virou para o lado e correu, disparando com todas as suas forças. Um instinto primal de sobrevivência havia tomado conta de seu corpo, tornando até mesmo o pensamento difícil. Apenas fuja. Fuja porque essa luta só resultará em sua morte, e uma morte sofrida. A garota não concebia nem mesmo conceber essa ideia, mas ainda assim abandonou a batalha. Não havia como vencer.

 Do outro lado, Jyll ficou estupefata por alguns segundos, mas logo se recobrou. - Tudo bem... - Disse a si mesma, sorrindo. - É um jogo de gato e rato. - E voou pelo beco, perseguindo sua presa.

 Sophie disparou pelo corredor mal-iluminado, procurando se embrenhar naquele labirinto. Ouviu um som atrás de si e virou o pescoço, vendo que a fada estava disparando em sua direção. Gritou e se abaixou, deixando que a adversária a ultrapassasse. Ela pousou e deslizou em velocidade pelo chão negro, se virando para a membro da Aurora. - Ora... - Zombou em sua voz aguda, os olhos brilhando na semi-escuridão. - Nós já invertemos os papéis?

 A garota engoliu em seco e respirou com força, tateando as paredes em busca de qualquer presente dos deuses. Seus dedos da mão esquerda encontraram um objeto estranho, e girou a cabeça para identificá-lo. Havia sido recompensada. Era uma porta. Abriu-a e adentrou o edifício, para ira de Jyll.

 - Merda! - Gritou ela, voando para a abertura. Ela a explodiu com um punho, fazendo com que a outra gritasse. Estavam em um aposento repleto de estantes vazias, e Sophie tentava se esconder atrás de uma mais distante. A fada derrubou os objetos com raiva, mas não conseguiu achar a garota. - Eu vou acabar com Jones! - Gritou enquanto procurava sua adversária. - Ele e sua maldita ideia de cidade flutuante! Quando eu encontrá-lo, vou... - Uma porta se abriu em um dos cantos da sala, e uma calça cinza foi vista atravessando-a. - Volte aqui!

 Sophie correu pelo que parecia um depósito de caixas, tão desesperada que o coração vibrava. Avistou uma abertura à direita e desviou para lá, batendo os braços no batente do portal para desacelerar. Tropeçou na nova sala, abrindo mais uma porta para voltar às ruas. As sombras a abraçaram e ela avançou para um beco, onde se encolheu e ativou seus poderes. Agora era apenas um punhados de roupas agachadas, tremendo enquanto rezava para estar escondida. Por favor, que ela vá embora, repetia em sua mente. Que ela não me ache. Por favor.

 Uma trovoada surgiu do horizonte, fazendo-a saltar. Por um momento se viu de novo uma garotinha, se escondendo de ladrões nos becos de Helleon. Só que daquela vez não tinha Julie para a proteger. A irmã estava longe, e nem sabia que estava lutando. Estava sozinha. Lágrimas começaram a descer pelo seu rosto, a garota tentando prendê-las enquanto fungava. Iria ser descoberta se continuasse assim, mas a urgência em manter silêncio só a deixava mais nervosa, fazendo com que mais lágrimas caíssem.

 Uma porta foi aberta com violência à distância, e ela gemeu. - Saco! Cadê você? - Gritava Jyll, caminhando pela rua perpendicular à viela em que a membro da Aurora estava. Ela puxou as pernas contra o peito, fechando os olhos como se pudesse fazer todos os problemas desaparecerem. Não sabia mais se estava sendo perseguida por um bando de arruaceiros ou pela fada sádica, mas se sentia com treze anos, indefesa. O medo apertava seu coração, e as lágrimas desciam. Eu só quero que isso acabe, pensou com o rosto nos joelhos. Por favor, que isso acabe. Que alguém venha me salvar.

 - Você não era covarde assim! - Gritou a adversária, ainda a procurando. Ainda estava a confundindo com Julie. Julie realmente iria se levantar e lutar, mas Sophie não era sua irmã. Não era corajosa, e segundo as próprias palavras dela, era fraca. Apertou com mais força as canelas, torcendo para que a gêmea aparecesse e resolvesse as coisas. Que nem naquele dia em que fora perseguida pelos ladrões, tão vívido que se confundia com a realidade.

 - Tudo bem então! - Anunciou a fada, ainda oculta pelos edifícios. - Se não quer me enfrentar, vou ser obrigada a procurar seus companheiros. - Aquilo acertou Sophie como uma marreta, os olhos bem abertos através das lágrimas. Seus amigos estavam lutando contra inimigos poderosíssimos, e a presença de mais um membro do Culto Púrpura iria desequilibrar a batalha. Se Jyll fosse entrar em uma contenda, com certeza iria ganhar, e seguiria assim até que toda a Aurora tivesse tombado. Sasha, Amanda, Dalan, nenhum sobreviveria. E isso era um pensamento pior do que a morte para a garota.

 Se viu dividida, tremendo naquele beco escuro. Por um lado queria ficar escondida, torcendo para que seus amigos conseguissem dar um jeito. Do outro, queria fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não poderia deixar a fada sair dali. E a única que poderia fazer alguma diferença naquele momento era ela mesma. Olhou para sua mão, se rematerializando. Da última vez, era Julie quem havia a defendido. Uma parte de si queria desesperadamente que a irmã chegasse, mas o resto sabia que isso não era possível. Só que havia outra Helder ali.

 Teria que ser Julie naquele dia.

 - Ei! - Gritou, saindo do beco para a luz fraca da rua. Jyll sorriu e se virou, encarando-a, as duas separadas por cerca de cinquenta metros. A membro da Aurora tinha os olhos inchados e tremia levemente, mas os punhos estavam cerrados e o queixo estava firme. Sentia mais medo do que nunca, e se forçava a cada segundo para manter sua posição. Era o que Julie faria.

 - Isso sempre funciona. - Riu a fada, saindo do chão e disparando na direção da adversária. A garota ofegou e deu um passo para trás, mas uma ideia surgiu de forma instantânea em sua mente. Fechou a boca e estendeu a mão, tal qual sua irmã fazia para ativar seus poderes. Jyll viu aquilo e fechou os olhos, se defendendo da suposta rajada de luz que viria. Isso deu tempo para Sophie correr, pegando a rua para voltar à casa em que havia estado antes.

 Quando a membro do Culto Púrpura voltou a abrir os olhos, viu a adversária se afastando. - Ei! Fugindo de novo? - Gritou, se enraivecendo. A outra havia saltado pela janela, se escondendo no interior do recinto. A fada invadiu aquele lugar arrebentando o vidro, observando a sala escura. Daquela vez, não havia um grito.

 - Cadê vocêêê... - Falou em voz alta, se embrenhando a cada passo. Diversas caixas a rodeavam, mas não pareciam grandes o suficiente para esconder alguém. Talvez ela esteja em outra sala, pensou. Estava procurando uma porta quando viu uma caixa em sua direção.

 Já estava no chão antes de reagir, a quina do objeto pesado prensando seu pescoço. A dor era inexcrutável, impedindo qualquer tipo de respiração. Ela olhou para cima, vendo que o rosto da garota estava separado a um palmo de distância, contorcido pelo esforço de manter a outra presa. Jyll se enfureceu, a raiva lhe dando forças para jogar a adversária para longe.

 - Filha da... - Sua voz saiu tão fraca que mal conseguiu ouvi-la, a traqueia severamente ferida. Se levantou com esforço para voltar à luta, mas a garota havia corrido para outra sala. Correu para alcançá-la, mas quando entrou já havia a perdido novamente no aposento cheio de estantes que havia entrado há alguns minutos. Praguejou.

 Sophie por sua vez estava atrás de uma das estantes perto da saída. Segurava nas mãos uma lasca de madeira da porta destroçada, sua única arma na ocasião. Sua inimiga claramente não poderia ser derrotada com socos e chutes, pelo menos não dela. Era preciso uma abordagem diferente.

 Passos indicavam que a outra estava do outro lado do móvel. A garota respirou fundo e deu a volta, correndo rápida e silenciosamente. Viu a capa roxa, as asas que saíam dela e as costas do capuz à sua frente, como se estivessem a convidando para um ataque. Disparou com a arma nas mãos e a brandiu antes que a adversária pudesse reagir, enfiando a lasca na lateral direita da outra. A dificuldade de penetrar a carne lhe assustou e a arma deslizou para fora um pouco depois de entrar, mas sabia que fora o suficiente para um estrago. Jyll gritou e virou o pescoço para trás, vendo as roupas cinzas flutuando no ar. Sophie ainda estava invisível.

 Uma expressão de confusão se misturou à dor em seu rosto, apenas para serem substituídas pela ira gélida. Ela agarrou a camisa pelo colarinho e levantou vôo, disparando para o beco. Logo em seguida foi para cima, cruzando a linha dos telhados. Sophie estava aterrorizada, sem opção a não ser segurar firme em sua inimiga para não cair. As duas atravessaram algumas ruas em alta velocidade antes da fada diminuir a altura, pousando em um telhado plano e vazio, com o tijolo cinza formando pequenas muretas na borda. Despejou a outra em uma ponta e se afastou para a outra, as mãos no ferimento. O corte parecia profundo e estava sangrando bastante, um risco um pouco abaixo do seio. Só que isso não era nada, nada mesmo, comparado à fúria em seu rosto. Se virou para a outra, tão colérica que poderia abrir um rombo apenas com o olhar. Um raio cruzou os céus, dramatizando a situação.

 - Você não é... a garota que eu enfrentei no Vale das Cachoeiras, né? - Disse com dificuldade, respirando fundo. - É apenas uma pirralha que adora fugir. Pois veja bem... sua covarde. - Ela estendeu o braço livre, mostrando o telhado. - Não há lugar para você se esconder aqui. - E era verdade. Não havia nem um objeto que pudesse ser usado como arma. Sophie deu um passo para trás, espiando o beco abaixo. Longe demais para saltar, concluiu nervosa. Por um instante ouviu passos, mas havia preocupações maiores no momento. - E é aqui que você vai ser espancada. - Jyll disparou, a ira. A garota levantou os braços para se proteger, mas a fada pegou o esquerdo e o torceu, produzindo um audível som de estalo.

 - Ngh. - Grunhiu a membro da Aurora, mas haviam apenas começado. A adversária a esbofeteou no rosto, jogando-a para longe. Uma marca de sangue foi deixada no chão perto de sua face, a boca e as narinas cobertas pelo líquido vermelho. Do outro lado, Jyll se aproximava novamente, sua presa se contorcendo.

 - Jones nos disse que queria vocês vivos, mas acho que posso arrancar um olho. - Falar era doloroso para a fada, mas ela não conseguia se controlar. Chutou o estômago da outra antes que levantasse, arremessando-a contra a mureta. Sophie bateu de costas, cuspindo mais sangue. - Ou quem sabe um braço. Posso te deixar com esse quebrado se quiser. Talvez sua perna acompanhe! - Começou a chutá-la seguidamente onde a havia atingido antes, cada golpe levantando a garota minimamente no ar antes de acertar o pequeno muro e cair. Quando pareceu se cansar, a membro do Culto Púrpura se agachou e levantou a adversária pelo pescoço, o sangue descendo do rosto da outra até pingar em seu pulso.

 - Patética. - Soltou, arremessando a garota novamente para a longe. Ela deslizou de lado no chão, parando no centro do telhado, sem se mover. - Aquela outra que eu lutei era sua irmã, não? Pelo menos ela me divertiu um pouco. Batalhou frente a frente comigo. Já você... - Pisou na mão esquerda de Sophie, esfregando o calcanhar até os sons de ossos quebrados serem ouvidos. Não havia reação do outro lado, exceto o rosto contorcido de dor. - É uma vergonha. Se esconde melhor do que luta. Você me dá náuseas. - Chutou-a no peito, lançando-a contra a mureta mais uma vez. - Talvez eu procure sua irmã e mostre esse seu corpo arrebentado.

 Enquanto isso, do outro lado, Sophie tremia. Tentava juntar as forças que precisava para continuar lutando, mas sua mente estava uma balbúrdia. Não adiantava tentar buscar forças de outras pessoas, concluiu com pesar. Era apenas ela quem estava batalhando. Não havia irmã, amigo ou qualquer outra pessoa para lhe ajudar. Estava sozinha. O desespero voltou a crescer, e por algum motivo havia se lembrado de seu sonho, o sonho em que havia estado presa desde o naufrágio do Intrépida Saída. Se perguntou o que aquela Sophie do sonho faria, e tentou conjurar sua figura diante dela, como se estivesse a olhando deitada naquele chão ensaguentado. E o que viu foi seu rosto. Não era o de outra pessoa lhe dando forças, mas pela primeira vez era o seu próprio. A pergunta não era o que outra pessoa faria naquela ocasião.

 Era o que ela mesma faria.

 Se levantou debilmente, a mão direita segurando o braço destroçado. Tremia levemente, mas seus olhos haviam se enchido novamente de vontade. Se virou para Jyll, o sangue que saía da boca começando a secar. - Realmente, eu não sou Julie. - Começou, o queixo um pouco para baixo. - Meu nome é Sophie. Sophie Helder. Tenho dezoito anos, nasci em Genoble, filha de Nala Helder e Charles Helder. Faço parte de Aurora desde os meus doze anos. - Ela respirou fundo, levantando a cabeça. - E hoje você ameaçou a vida dos meus companheiros. E por causa disso estou aqui para te derrotar.

 - Hah. - Riu baixinho a fada. - A última sobrevida dos mortos, creio eu. - Zombou. Ela disparou novamente na direção da adversária, agarrando seu pescoço com as duas mãos e o prensando contra a quina da mureta. A outra rangeu os dentes e tentou se soltar, o ar cada vez mais difícil de chegar aos pulmões.

 Naquele momento um estouro surgiu perto delas, tremendo a base do telhado. As duas olharam para o edifício mais próximo, o vidro das janelas estourado e rachaduras se formando na fachada. Uma ideia maluca surgiu na cabeça da membro da Aurora, e era a única que tinha.

 Grunhindo, ela enfiou o pé no peito da adversária, afastando-a de si. Jyll tropeçou para trás e Sophie se levantou, apoiando a mão sadia no parapeito da mureta. Olhou o edifício e tentou calcular a distância entre eles. Os resultados não eram nem de longe satisfatórios, mas mesmo assim apoiou o pé e saltou, mirando uma das janelas maiores. No meio do caminho percebeu que estava longe demais, e o medo tomou seu coração como uma manta.

 - O que diabos pensa que está fazendo?! - Era a voz da fada, que se jogou contra a garota para agarrá-la. As duas caíram um andar abaixo do que Sophie estava planejando, onde as janelas ainda estavam de pé. Atravessaram o vidro e derraparam no chão, ambas explodindo de dor. - Te querem viva, sua vadiazinha. - Disse Jyll, se contorcendo no chão, até reparar que a outra havia se levantando e corrido para fora do aposento empoeirado. - Ei!

 Sophie disparou pelas salas vazias, o braço quebrado ardendo em agonia. O chão tremia aos seus pés, e de vez em quando um tijolo parecia mais solto do que o anterior. Virou uma esquina e se deparou com uma pequena abertura na parede, e do lado de fora havia um membro do Culto Púrpura, aparentemente flutuando no ar. Estava encapuzado e era difícil identificá-lo, mas apenas vê-lo foi o suficiente para paralisar a garota. Agora teria que lutar contra os dois, se perguntou.

 Não teve muito tempo para pensar, pois foi agarrada pela direita e derrubada no chão. Mal conseguiu identificar que Jyll estava em cima dela quando tomou o primeiro soco no rosto, tão forte que sentiu um dente rachar. Tentou se levantar, mas estava sendo presa pelos joelhos da adversária. Recebeu o segundo golpe, este abrindo uma ferida no lado da testa. Sangue espirrou e ela contorceu o rosto, completamente imobilizada.

 - Por favor, se mantenha acordada. - Pediu a fada em sua voz ferida, mas antes que pudesse desferir o terceiro soco, o chão embaixo delas cedeu. Parte do teto acima também ruiu, envolvendo a sala em uma cortina de poeira. Sophie sentiu o corpo começar a cair e girou para a esquerda, apoiando o braço sadio nos tijolos ainda firmes para não despencar.

 O edifício inteiro começou a tremer e rugir com o som dos condenados, as paredes se desintegrando e os rebocos em avalanche. A garota olhou para baixo em busca da adversária, e conseguiu vê-la caída no andar inferior. A visão, por sua vez, não era nada bonita. Ela estava de costas, o rosto esguichado de dor e uma poça de sangue cada vez maior a envolvendo, vindo do braço esquerdo. Ou pelo menos, o que sobrou do membro. Ele havia sido enterrado por um destroço particularmente grande do teto, e pelo visto havia sido completamente obliterado.

 Os olhos agoniados de Jyll se encontraram com os de Sophie, ainda se segurando acima. - S-s-s-sua... pi... - Tentou dizer, mas não conseguia ser ouvida através do rugido do prédio caindo. Procurou balançar as asas, mas faltava um pedaço de uma e a outra estava esburacada. Elas vibraram inutilmente.

 Mais um rugido e novos pedaços do interior do edifício caíram. A membro da Aurora caiu, felizmente amparada por uma pilha de destroços alta o suficiente para protegê-la. A fada por sua vez fora soterrada novamente, e a poeira a envolveu. Sophie olhou para onde a outra estava, sem saber o que fazer, até que um pedaço do teto caiu bem ao seu lado, lhe conferindo urgência. Hora de sair dali.

 Tropeçou e correu para fora, a visão comprometida pelo pó que dançava e rodopiava. Se lembrou do encapuzado do Culto Púrpura que havia visto do lado de fora, e procurou sair na outra direção. As paredes eram derrubadas e os andares superiores desmoronavam, mas ela sequer olhou para os lados. Havia uma janela à sua frente, os fracos raios de sol iluminando um caminho até ela. Rangeu os dentes e acelerou o passo, as dores do braço se tornando inescrutáveis. Só que estava perto demais para pensar em outra coisa. Eram só mais alguns passos. Doze, onze? O teto ruiu e ela foi obrigada a contornar os destroços, temendo perder o caminho. Sete, seis... Já conseguia sentir o ar salgado no lado de fora. Um reboco caiu em suas costas, a assustando como se fosse sua lápide. Três, dois... Saltou.

 Jogou o corpo contra o vidro e destruiu o que havia sobrado, caindo no chão. Atrás de si o edifício se desmanchava. Usou o braço sadio para se arrastar para longe, arfando e gemendo. A adrenalina lhe dava as forças necessárias para o último impulso, mas quando já estava distante o suficiente ela sumiu como se fosse drenada por um ralo. Sophie ficou de costas, encarando o céu nublado acima. O peito subia e descia como uma gaita de fole, a boca aberta e sangrenta em busca do ar extra. Conseguia ouvir sons de luta bem próximos, mas não tinha energia para levantar, que dirá batalhar novamente.

 Um raio a iluminou, sozinha em uma esquina de um beco qualquer. O vento salgado balançou seus cabelos empapados de sangue, e a garota começou a chorar. De início não conseguia saber o motivo, embora não demorasse muito para compreender. Havia vencido. Enfrentara um membro do Culto Púrpura sozinha, e era vitoriosa. Sozinha. Quem poderia acreditar?

 Levou a mão direita ao rosto para limpar as lágrimas, mas o cansaço a deixou ali. Agora eu só preciso contar para os outros, pensou com suas últimas forças antes da exaustão a derrubar, a única coisa que havia conseguido esse feito naquele dia.

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