sábado, 3 de janeiro de 2015

Aurora: Capítulo 47 - A noite mais escura


AURORA
CAPÍTULO 47: A NOITE MAIS ESCURA

Grandes raios brancos surgiam no céu chuvoso, entrecortando as nuvens com brilhos cegantes, e pequenos raios azuis saíam dos olhos de Dalan, pipocando com zumbidos baixos. Ele encarava o caído Desaad do outro lado, uma camada grossa de gelo preenchendo o espaço entre os dois. E, em seus braços, estava uma mortalmente ferida Amanda, com um grande rombo em seu abdômen.

 Dalan pôs a mão no ferimento da companheira, produzindo uma fina cobertura gelada para estancar o ferimento. Fez a mesma coisa no outro lado, esperando que aquilo fosse salvar sua vida por um tempo. Pelo menos enquanto cuidava de outro assunto. Levantou a cabeça para o adversário, as órbitas completamente preenchidas se estreitando.

  - Azul. - Disse o líder do Culto Púrpura, se levantando com a mão no joelho. Se empertigou, o cabelo brilhando na chuva. - Cor da alma. Normalmente é o que se consegue quando se atinge o Indramara. - Ele parecia um pouco pálido, mas não havia sinal de nervosismo na voz. - Não que isso vá funcionar.

 O rapaz não respondeu, apenas conjurou uma rudimentar cama e nela cuidadosamente deitou Amanda. Prometo voltar rápido, prometeu em silêncio. Ouviu um som atrás de si e sequer pensou, girando o corpo e estendendo a mão com uma fúria reaquecida. Um aríete saiu de sua palma, acertando Desaad bem no estômago e o arremessando para o outro lado da praça. 

 Dalan fincou os pés no chão e abriu as mãos, juntando suas energias. Sentia que podia fazer qualquer coisa, como se houvesse uma porta escancarada entre ele e boa parte de seus poderes. Sequer pensava no que fazer, apenas agia. Com isso criou um maremoto de gelo, engolindo o adversário com um estrondo.

 O homem foi atirado contra um dos casebres da vizinhança, sendo pressionado pelas ondas conjuradas. Isso é ridículo, pensou ele com os olhos arregalados de fúria e medo, a chuva pingando em seu nariz. Estava enfrentando um moleque. Mesmo com o Indramara, ele deveria ter atingido apenas a segunda esfera de seus poderes. Seria tão forte assim? O pensamento fez com que a raiva suplantasse o temor. Não podia deixar isso acontecer. Tinha ido muito longe para perder.

 Gritou e bateu as mãos no chão, e espinhos roxos cresceram e destroçaram o gelo. Em seguida entrelaçou rapidamente os dedos e girou os pulsos. Um raio desceu dos céus e acertou o centro da praça, explodindo com um estouro ensurdecedor. Quando a poeira baixou, Dalan continuava de pé, atrás de um muro transparente que o protegia junto com Amanda.

 Ele percebeu que tinha de afastar o adversário dali o mais rápido possível. Correu para frente, juntando energia gélida nas mãos. Desaad tentou lançar os espinhos contra ele, mas o rapaz agitou o braço esquerdo, criando uma camada grossa que o protegeu. Um ferrão chegou a cortar seu rosto, mas ele ignorou. Quando chegou perto do rival fincou os pés no chão e girou o braço para frente. Uma massa disforme acertou o outro, fazendo-o atravessar uma sequência de casebres. 

 Ainda estava se recuperando no meio dos destroços quando Dalan chegou. Ele conjurou uma rocha, derrubando-a em cima do rival. Desaad saltou para trás e abriu os braços, invocando um mar de energia verde para acertar o garoto. Ele por sua vez criou um construto de gelo do mesmo tamanho, e os dois colossos se chocaram em pleno ar. O impacto foi o suficiente para arrasar a região ao redor, subindo uma nuvem de poeira negra. Quando ela abaixou, os dois tinham cobertos os membros com os poderes, o membro do Culto Púrpura usando espinhos roxos e o da Aurora gelo afiado e pontudo. E partiram um pra cima do outro. 

 Trocaram golpes o mais rápido que conseguiam, atacando e se defendendo em uma miríade confusa no meio da chuva cada vez mais forte. Dalan desferiu um soco, mas o adversário se abaixou e tentou chutar seu estômago. Conjurou do chão uma pequena parede para se proteger e deu uma joelhada nela, arremessando-o contra as pernas do outro. Desaad caiu, mas esticou a mão e um ramo de espinhos envolveu os braços do garoto, cortando o gelo e rasgando sua pele. Ele por sua vez os cobriu com mais gelo, e juntou as mãos para envolvê-los com uma esfera que usou para marretar as costas do homem. Sangue foi espirrado e ele girou o corpo, se afastando. Seus olhos brilharam em amarelo, tentando usar o mesmo feitiço de medo que funcionara antes, mas a cobertura azul do rapaz o protegeu. Um raio piscou em suas órbitas e ele gritou, formando um novo aríete que arremessou o rival contra os casebres, demolindo o edifício. Parou para recuperar o fôlego, respirando avidamente.

 - Chega. - Ordenou Desaad. Ele estava ajoelhando no chão, segurando o braço esquerdo com uma das mãos. - Não vou te deixar vencer, moleque. Não quando eu tenho a vantagem do terreno. - Ele conjurou uma nova camada de espinhos, segurando-os bem perto do cotovelo. Encarou o garoto com os olhos furiosos, os dentes rangendo. - Conjurei essa fortaleza com este propósito. Aqui, não serei derrotado. - Olhou para baixo, respirando fundo. - Ó CONSTRUTO DE GAERA TYWIL, RECEBA ESTE SACRIFÍCIO PELOS ESPINHOS DE NIGERROSA! POR SEU LORDE, ZEMOPHEUS! - Com um movimento da mão, seu antebraço estava no chão, coberto pela tempestade de sangue que saía do corte. O homem berrou, o suor gotejando pela sua testa. Mesmo assim, se forçou a olhar para o garoto, e um sorriso se formou em seus lábios pálidos.

 Naquele momento a terra tremeu, e o membro cortado foi engolido pelas rochas negras. Em toda a fortaleza, um brilho roxo saiu das frestas das ruelas e dos prédios, iluminando as gotas de chuva. Raios dançaram no céu, e do chão veio um som gutural que suplantou os trovões. Desaad agora ria como um maníaco, o braço decepado ainda sangrando incessantemente.

 - SE ACHA QUE SEU INDRAMARA IRÁ TE PROTEGER, DESISTA! - Algo se agarrou aos pés de Dalan. Ele olhou para baixo, percebendo que o próprio piso havia se enrolado ao redor dele. Ouviu um som à frente e levantou a cabeça, avistando o dragão de rochas negras que vinha em sua direção. Fora atingido em cheio, sendo arremessado para longe. Quando caiu, foi segurado pelos braços e pernas e uma mão de pedra caiu em cima dele. O garoto tentou conjurar um teto de gelo para protegê-lo, mas não era o suficiente. Seu corpo foi esmagado, os ossos rangendo audivelmente. E não era o fim.

 O chão tratou de cuspi-lo, catapultando-o até o outro lado da fortaleza. Enquanto estava no ar, quase desmaiado, diversas rochas o seguiram. Percebeu o perigo e tentou se proteger dos projéteis em sua direção, mas embora dançasse ao redor de si mesmo para evitar os ataques, não era rápido o suficiente. Uma rocha acertou seu nariz, quebrando-o facilmente. Outra foi direto em suas costelas, e a partir daí ele não conseguiu mais manter a concentração. Brutalmente espancado, não percebeu que havia caído até o piso se revolver abaixo de si, se levantando como uma mesa.

 - Agora... vamos acabar com isso. - Era a voz de Desaad, posicionado entre o garoto e a plataforma de espigas curvadas, colossal atrás dele. Dalan sentiu algo esmagar suas costas e cuspiu sangue. Estava em uma prensa no formato de uma concha, e o líder do Culto Púrpura estava à sua frente. Não conseguia se mover, deitado e prensado pelas rochas. - Prefere desistir agora ou quebrar todos os ossos?

 O garoto não respondeu, preferindo conjurar pilares de gelo para se soltar. Infelizmente não tinha força o suficiente, e as rochas o prensaram de novo. Não conseguiu contar quantos ossos estalaram. - Bem, creio que você vá se quebrar todo antes de sair daí. - Desaad estava rindo, mesmo com o rosto terrivelmente pálido. O cotoco em seu braço havia sido cauterizado de alguma maneira, mas ainda era um cotoco. - Agora, é só esperar seu tempo de Indramara acabar...

 O coração de Dalan bateu mais forte. Não podia deixar as coisas acabarem daquele jeito. Buscou uma força oculta dentro de si, e com surpresa encontrou. Estava lá, quase como uma esfera azul dentro de si. Tocou-a, e naquele momento os raios em seus olhos se intensificaram. Seu corpo começou a tremer, os músculos estalando e a cabeça girando. Sentiu calor e depois frio, uma sensação intensa que se espalhou pela pedra em que estava preso.

 E, de repente, quatro enormes pilares de gelo foram conjurados ao seu lado, empurrando as rochas negras para cima e para baixo. Os olhos de Desaad se arregalaram com tanta força que poderiam se arrebentar, e ele esticou a única mão para frente. Os prédios inteiros se desfizeram atrás do garoto e marretaram a plataforma superior de sua prisão. O gelo chegou a rachar, mas se manteve firme. E, depois de alguns segundos tremendo, recomeçou a subir.

 Relâmpagos estouravam dos olhos de Dalan a cada segundo. Ele se levantou, a fresta em que estava agora tão alta que conseguia ficar de pé. Ficou alguns segundos parado, olhando para o adversário, os quatro pilares suportando a pressão do que parecia metade da ilha. Os joelhos do líder do Culto Púrpura tremeram. O que estava acontecendo ali? Seria o Indramara tão poderoso para atingir... a terceira esfera? Não era possível!

 Ainda pensava nisso quando o garoto pulou para o chão, formando uma lâmina em sua mão direita. Caminhou em sua direção, a mente fixa em um único objetivo. Derrotar Desaad. Derrotá-lo para salvar seus amigos. Derrotá-lo pela Aurora. O homem gritou e as pedras que formavam a prensa se agitaram, formando um novo dragão de pedra que tentou atacar o rapaz pelas costas. Um escudo de gelo foi conjurado, e aguentou a investida com um impacto que explodiu as ondas mais próximas. O mar se revolveu, ampliando a chuva, e de repente Dalan estava na frente de Desaad.

 - Agora já chega. - Não deu espaço para uma resposta de qualquer tipo. Apenas estocou o braço, enfiando a lâmina no estômago do outro. Levantou-o, olhando em seus olhos, o sangue se derramando pelo gelo. O adversário estava estarrecido, a surpresa se tornando maior do que o temor. - Nunca mais chegue perto dos meus amigos. - Ele puxou o construto de gelo, e o homem caiu no chão, as pedras negras ao redor o acompanhando.

 Naquele mesmo instante Dalan saiu do Indramara. Seu corpo pareceu explodir, e ele imediatamente perdeu a consciência, sem ter forças para sequer sonhar.






 - Da... Dal... lan? Dalan! - Conseguia ouvir uma voz ao fundo. Sasha? Não sabia dizer. Se viu levantado por um ombro, apoiado por um corpo pequeno e magro. Seus ossos doíam e não conseguia sequer abrir os olhos, tamanha a exaustão. No entanto, conseguia ouvir.

 - Vamos sair daqui logo! - Gritou outra voz, mais gutural. - Precisamos de cobertura! - Dalan conseguiu perceber um vento imensamente forte agitando seus cabelos. E o pior de tudo, sentiu um frio em sua barriga. Um frio tão terrível que se alastrou pelo corpo, fazendo-o abrir os olhos para ver o que estava acontecendo.

 Estavam entre os destroços da luta dele contra Desaad. Sasha o carregava desajeitadamente enquanto que Wieder, em sua forma de golem, levava o líder do Culto Púrpura. Poeira e pequenas pedras eram aspirados para trás deles, e o rapaz olhou para trás.

 O caos reinava na plataforma redonda dos quatro pilares curvados. As pontas dos construtos estavam brilhando em roxo, a iluminação lentamente se espalhando pelo material. O ar girava no centro do tablado, provocando um gigante redemoinho de quase cinco metros. E em seu interior, havia uma cristal branco do tamanho de um homem. Dalan olhou para aquilo e seus calafrios se intensificaram como nunca antes. - Temos que sair daqui. - Disse com a boca seca, atraindo a atenção da companheira.

 - O que quer dizer com isso? - Perguntou Sasha, e o garoto a encarou em terror.

 - Temos que sair daqui. Agora! - Gritou as últimas palavras, tentando se soltar dela. Havia perdido quanto tempo desmaiado? - JÁ!

 Gostaria de dizer que tinha sido ouvido. Talvez por Sasha, que estava ao seu lado, mas era difícil saber. Pois naquele momento um estouro que varreu a terra os atingiu, saindo do centro da plataforma com os pilares. Foi tão forte que os arremessou para longe, os jogando contra os destroços de rochas negras. Gritaram, sem saber o que estava acontecendo ou sequer onde estavam. Perderam a noção dos sentidos, da audição explodida até o olfato coberto por um cheiro acre. Só recobraram alguma coisa quando estavam no chão, e olharam para trás. Não era, nem de longe, uma visão que qualquer pessoa pretendia ter em sua vida.

 Pois havia um demônio gigante do outro lado, coberto pelos quatro pilares agora opacos. Tinha quase seis metros, o corpo coberto por pelo negro. Seu rosto se assemelhava ao de um gorila, com sabres de marfim na boca que apontavam afiados para cima. Tinha dez olhos, espalhados de forma aleatória na parte superior da face. Era gordo e se apoiava com a ajuda dos braços, gigantescos membros com extremidades roxas. Haviam também pequenas asas emplumadas, de um metro cada, quase minúsculas em comparação ao resto do corpo. O cristal branco de antes estava encrustado em seu peito, brilhando à luz dos raios. Ele os encarou, a miríade de olhos piscando em amarelo. Seu nome era...

 - MAEDEGOEN! - Gritou Desaad, pálido porém insano de tanta felicidade. Ele se levantou para ver o esplendor de sua invocação, e rapidamente se pôs de joelhos, recitando uma língua oculta. - HAETHIN LOPPO BYANGA THATYYN!

 - GOOLAAA... - Replicou o demônio lentamente, e sua voz era o suficiente para estremecer os corações dos mais próximos. A chuva se intensificou, assim como a força das ondas. - ZABALOO DANTA OROSTRA? ZABALOO GAMORA?

 - ZABALAN GAMORA! - Gritou o líder do Culto Púrpura, batendo com o único braço no peito. - FINTAN DANTA OROSTRA! MAERE ZEMOPHEUS! - Pareceu se lembrar de algo. Olhou para Dalan, que estava no chão com Sasha. E sorriu. - OONIT FARA LANTA! ZAUL VINTORI! - Berrou, apontando para os garotos. Que não conseguiam sequer se mover.

 Do outro lado, Maedegoen sorriu, um riso débil e aterrorizador. - AEN... - Esticou a mão. Dela se iniciou um brilho verde, tão forte que poderia eclipsar o sol. Dalan e Sasha levantaram os braços para se proteger, mas não tinham mais forças para fazer nada. De algum modo, sabiam. Já estavam condenados.

 Um raio saiu das mãos do demônio e disparou na direção dos membros da Aurora. Eles conseguiram enxergar um vulto grande à frente antes de todos serem catapultados como moscas. Caíram onde não era possível enxergar, e Desaad riu histérico. Riu porque tinha conseguido. Riu pois tinha feito o impossível. Conseguira descobrir o segredo da Aliança e onde tinham escondido seu mestre. Contactara os demônios do outro lado da Fronteira, e eles lhe deram uma das míticas fortalezas de Gaera Tywill, o que os esconderia dos magos. Sequestrara os membros da Aurora para que replicasse o contra-encanto que protegia Gamora, e quando conseguiu, um dos próprios demônios de Zemopheus veio para que resgatassem seu mestre. Estava tudo perfeito.

 E o melhor de tudo: não havia mais como perder.

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