quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Aurora: Capítulo 48 - As trevas em seu ápice


AURORA
CAPÍTULO 48: AS TREVAS EM SEU ÁPICE

 Chovia terrivelmente.

 A tempestade que estivera se formando lentamente agora despencava tal qual uma cachoeira no mar de Cellintrum, particularmente em cima de uma fortaleza flutuante no meio do oceano, uma massa negra que se abrigava entre o mar agitado e as nuvens clareadas por relâmpagos. Fortaleza esta que estava em pedaços. Os navios ancorados a ela se chocavam contra a murada, alguns caindo e suas tábuas de madeira se despedaçando contra as rochas. O topo de uma das duas torres estava arruinado, e diversas construções tinham se desfeito, com seus destroços sendo levados pela chuva torrencial. Por cima dos casebres ainda em pé, havia um vulto colossal em uma das extremidades da ilhota artificial, cercado por pilares curvados e com um enorme cristal branco em seu peito. De perto dele, vinha uma estrada de destruição que se infiltrava para o interior da fortaleza, agora abrigando um mirrado e veloz córrego causado pela chuva. Essa rota terminava bruscamente, formando uma clareira entre os edifícios escuros. E nele, haviam três figuras de costas para cima.

 Duas delas se levantaram com dificuldades. Uma tinha cabelos curtos e azuis, vestida com vestes cinzas e rasgadas, e se apoiava com os dois braços no chão estraçalhado. Outro era um golem marrom de quase dois metros e meio, que estava sentado com a mão no peito. Mesmo com a chuva forte, era possível ver seu rosto em pânico silencioso, e seu queixo se abaixou para observar seu tórax.

 A figura menor passou a mão pela testa, afastando a franja encharcada. Sasha ainda estava se recuperando, a dor penetrando fundo nos ossos. - O que... - Tentou dizer, uma mancha de sujeira na bochecha sendo lavada pela chuva. A última coisa que se lembrava era de um clarão, e um vulto à sua frente. Levantou a cabeça, encontrando seu companheiro Wieder. Contudo, havia algo mais chamativo. O enorme demônio mais à frente, iluminado pelos raios. Os olhos da garota se arregalaram, o medo a invadindo como uma horda de bárbaros. Era o tipo de visão que enlouqueceria a maior parte das pessoas. Ela continuou em sua posição, os braços tremendo enlouquecidamente. - E-ele... conseguiu... - Deixou o queixo despencar, os destroços abaixo se embaçando. - Falhamos.

 Wieder continuou calado.

 Sasha engoliu em seco, o suor se misturando com a chuva forte. Desaad havia conseguido invocar seu demônio, Maedegoen, e agora iriam trazer Zemopheus. Era o terror de todo habitante daquele lado da Fronteira, o tipo de pesadelo que poderia deixar alguém pregado durante a noite. O maior inimigo de todas as raças da Aliança, o ser que havia sido o mal primordial desde as eras em que apenas os elfos viviam, o responsável pela eterna guerra que travavam... estaria ali em pouco tempo.

 Era preciso muita força de vontade para fazer algo diante daquele desespero. Para se mover com aquele medo paralisante. No entanto, Sasha Alba não era uma garota comum. Era a filha dos fundadores da Aurora, e o lema da guilda continuava em sua cabeça. Ser a luz entre as trevas. Não poderia desistir agora. Ficou de pé, tentando pensar no que fazer. Se lembrou de Dalan, e girou o corpo para procurá-lo. Ele estava um pouco afastado, e continuava imóvel. - Dalan. - Disse em voz alta, e correu até o rapaz. Wieder os encarou, mas permaneceu em silêncio.

 A garota se ajoelhou ao lado do companheiro, pondo a mão em seu pescoço. Ainda havia pulso, fraco, mas havia. Suspirou aliviada, embora não tanto assim. Ele ainda estava desmaiado, com uma série de ferimentos cobrindo o corpo. Não parecia que iria acordar tão cedo, mas já havia feito sua parte, derrotar Desaad sozinho. Cabia aos outros agora continuar na luta.

 Sasha considerou suas opções, deixando os olhos girarem pela clareira de destroços. Não poderiam derrotá-lo com apenas duas pessoas. Sua única opção era sair dali e alertar a Aliança, atravessando a tempestade em um dos navios. Era um plano tremendamente arriscado pelo tempo que iriam levar, mas não havia outro melhor. Sua visão pousou na estrada de destruição que o demônio havia causado com seus golpes, e um peso gélido caiu em seu estômago. Mesmo que conseguissem sair dali, ainda estariam sob ameaça. Alguém precisaria ficar para distraí-lo. Engoliu em seco, sabendo que era seu trabalho. Cuidar da Aurora. Já tinha as palavras em sua boca, vindas do passado.

 - Wieder... - Começou, sentindo os lábios secos mesmo através da chuva. - Quero que você... - Sentiu uma mão de pedra em seus cabelos recém-cortados, e quando levantou a cabeça viu que o golem estava atrás dela, olhando para o demônio.

 - Eu cuido disso. - Disse ele, sem encarar a outra. Ela estreitou os olhos, e se levantou.

 - Não. - Disse firmemente. - Não, essa é a minha tarefa. Tenho que garantir que vocês--

 - Você não vai durar muito tempo. Não nessas condições. - Interrompeu o anão. Ele olhou para baixo, notando o braço direito da garota, pendendo inútil ao lado do corpo. Voltou a encarar a figura gigantesca. - Sabe disso.

 Sasha fitou o chão, fechando com força a mão esquerda. O companheiro estava certo, e não tinham tempo para discutir. Se abaixou para levantar Dalan, o apoiando no ombro sadio. Quando voltou a ficar de pé, rangeu os dentes enquanto desviava o olho do golem. Se recusava a tratar aquilo como uma despedida. - Vou sair daqui e chamar a Aliança. Prometo que não irei demorar. - Não houve resposta. Ela começou a andar, se dirigindo até os casebres remanescentes. Wieder ficou parado por alguns segundos, pensativo enquanto que a chuva descia por sua pele de ronatto. Ela pingava em um determinado ponto do tórax, onde não havia mais para onde descer.

 Pois havia um rombo no peito do golem.

 Sasha seguiu seu caminho, cambaleando com o peso de Dalan. Se esforçava para ser mais rápida, mas o amigo não conseguia sequer se equilibrar sozinho. A chuva não contribuía, tornando-os escorregadios e alimentando diversas poças no meio do caminho.

 A garota se obrigou a parar na parede de um prédio para recuperar as energias, apenas alguns metros de onde tinha saído. Estavam protegidos por uma sacada, mas o lugar continuava úmido e fedorento. Ela deixou o companheiro no chão e passou as mãos no braço dilacerado com uma careta de dor. Embora as feridas já estivessem se cicatrizando, graças às habilidades naturais de cura dos yullianos, não significava que estivessem confortáveis. Se apoiou na lateral do edifício, respirando fundo com os olhos fechados.

 Ouviu um chapinhar atrás dela, mais alto que o barulho da chuva. Se virou para trás, e no mesmo momento que avistou um vulto pulando em sua direção, ele a derrubou. Bateu com a cabeça no chão e estrelinhas pipocaram em sua visão. Entre elas, estava o rosto inchado, sangrento e roxo de Jones, que ainda assim conseguia manter uma expressão de triunfo louco.

 - Hoje você não me escapa. - E com isso, sua mão cheia de garras foi direto no coração de Sasha. Sangue espirrou alto.

 Do outro lado da fortaleza, Wieder andava pensativo. Estava em seus últimos passos. Havia se posto entre seus companheiros e o golpe de Maedegoen, e isto havia lhe custado a vida. O rombo no peito não era fatal em sua forma de golem, mas assim que voltasse ao normal, estaria morto.

 Era... difícil, no mínimo, aturar aquele pensamento. De que seu tempo estava contado. Não sabia como responder àquilo. Ele ainda não tinha penetrado fundo em sua mente. Parecia apenas um pesadelo, uma irrealidade que logo seria corrigida. Só que não seria. Não iria sobreviver. Seus sonhos estavam arruinados. Nunca faria seu nome. Vivera tanto para... nada.

 Teve que parar, um misto de raiva e descrença tomando conta de seu corpo trêmulo. Controle-se, se ordenou com esforço. Ainda tinha um trabalho a fazer. Percebera isso quando avistou Sasha e Dalan. Teria que ganhar tempo para que se salvassem. Podia ouvir a voz de Dominic em sua cabeça, rindo. No final, lutaria pelos sonhos dos mais jovens. Os deuses deveriam estar gargalhando.

 - Ora, ora... - Uma voz cortou seus pensamentos. Levantou a cabeça, vendo que não estava sozinho naquela estrada de destruição. Desaad estava do outro lado, aproximadamente no meio do caminho, coberto pela chuva densa. Haviam formas negras coladas ao seu corpo, e uma olhada mais atenta revelou que era um braço esquerdo feito das rochas da fortaleza, assim como um preenchimento que tapava o ferimento em seu abdômen, causado na luta anterior. Ele riu. - Bem que achei que alguém ia tentar ser o sacrifício corajoso!

 - Ah, cale a boca e morra de uma vez. - Disparou o anão, cansado. - Quantas vezes tem que voltar até que acabemos de vez com você? Sasha e Dalan já o derrotaram. Quer fazer uma trinca?

 Aquilo pareceu irritar o líder do Culto Púrpura, cujo rosto se contorceu. - Fale o que quiser, inferior, mas nada que fizer aqui irá ter alguma diferença. - Ele abriu os braços disformes, e um raio se derramou no oceano. - Maedegoen já está procurando meu lorde Zemopheus graças ao contra-encanto que a Aurora me forneceu. É uma questão de tempo até trazê-lo de volta.

 Wieder juntou as duas mãos. - Então as apostas estão mais altas! - De alguma forma, ele gostou daquilo. Era sua última luta. Sua última chance de fazer seu nome, mesmo que não fosse tirar proveito depois. Iria aceitar essa oportunidade. - Vou acabar contigo!

 - Vou acabar contigo! - Gritava Jones, tentando fincar seus dedos no coração de Sasha. Ela havia conseguido colocar a mão direita entre seu corpo e o velho para se proteger, mas parecia que tudo que tinha ganho era tempo e mais uma palma dilacerada. Sentia uma garra arranhar o espaço entre seus seios, rasgando a camisa cinza cinza e a pele. A dor na mão era inacreditável, e usava todo seu esforço para manter o adversário afastado e não desmaiar. - Está me ouvindo?! - Cuspiu o homem, usando a mão livre para tentar arrancar os olhos da outra.

 Ela afastou instintivamente a cabeça, e sentiu algo lanhar sua testa. O sangue se derramou mais uma  vez, e a garota levantou as pernas, jogando o velho para longe. Se levantou cambaleante, girando para enfrentá-lo, e se surpreendeu ao ver que ele corria em sua direção, ensandecido. Conseguiu se abaixar de um golpe contra sua cabeça e saltou para trás para esquivar de outro contra seu estômago, mas pisou em uma poça e se desequilibrou. Derrapou rapidamente para se manter em pé, e Jones surgiu para atacar. Três garras cortaram seu ombro direito, passando pelo ferimento antigo e descendo até as costelas. Ela gritou, e o grito foi entrecortado pelo pé em seu peito que a jogou para trás, caindo na chuva pesada.

 Rolou nas poças, a chuva lavando o sangue que escorria. Tateou para se levantar e sentiu a mão esquerda destruída, fazendo-a cair novamente. Um chute na barriga a fez perder o ar, engolindo água em sua ânsia por respirar. Foi agarrada pelo pescoço e virada para cima, vendo a mão que descia em sua direção. Teve tempo de ranger os dentes antes de chutar com o pé direito o braço do adversário para longe, e aproveitou o movimento para voltar e chutá-lo na cabeça. Ele se afastou, segurando o ferimento, e Sasha levantou para se afastar.

 Aquilo estava ficando ridículo, pensou com o cabelo molhado nos olhos. Já havia derrotado Jones antes, não deveria ter que fazer aquilo de novo. Só que dessa vez era diferente. Tinha enfrentado o próprio líder dos Libertadores, Desaad e Maedegoen desde então. Seus ferimentos minavam suas forças, especialmente o rombo na mão esquerda e os cortes que atravessavam seu tórax. Havia perdido sangue demais, notou, um dos olhos mais aberto que o outro. Não aguentaria mais muito tempo.

 - Vai desistir? - Perguntou o velho, a loucura brilhando em seu olhar. Sasha se empertigou. Wieder estava se sacrificando para ganhar tempo. Os segundos que lhe restavam eram desesperadores, e não podia gastá-los em vão.

 - Já chega de você, Jones. - Disse ela, fincando o pé esquerdo em uma poça e girando o corpo, protegendo o braço incapacitado. Tinha suas pernas e o cotovelo canhoto. Teria que bastar. - Que queime no inferno de onde saiu. - E com isso, disparou para a luta. O chão estremeceu.

 O pequeno terremoto tinha seu epicentro um pouco mais longe, onde o piso se recurvava e virava a cabeça de um dragão, que se esticou para atacar Wieder. Ele tomou impulso e desferiu um soco, quebrando a mandíbula da conjuração. Três pilares serpenteantes saíram da criatura agora disforme, e se amarraram nos braços do anão, que os partiu sem muita dificuldade. - Terá que fazer mais do que isso! - Gritou para Desaad, que já estava a caminho. Tentou golpear com o braço de pedra, e o golem o segurou com as duas mãos. O impacto no entanto foi tão forte que ele deslizou através do córrego no meio da rota de destroços. O demônio mais à frente rugiu, e o anão foi lembrado que não tinha muito tempo. Precisava alcançá-lo.

 Correu, mas não deu cinco passos antes dos casebres mais próximos se desfigurarem, formando dois aríetes que o prensaram com brutalidade. Sentiu o ronatto trincar e caiu no chão, sem forças, e Desaad se aproximou. - Do jeito que eu gosto. Aos meus pés. - Se aquilo era para irritar Wieder, funcionou com louvor. O membro da Aurora juntou as duas mãos e atacou de baixo para cima, esmurrando o quadril do adversário pelo seu lado esquerdo. Ele caiu gritando em uma das inúmeras poças d'água, e rapidamente convocou um apoio de rochas negras ao redor da área quebrada.

 Isso vai durar para sempre, pensou o anão. Se levantou e tentou pisotear o líder do Culto Púrpura, que fez um bloqueio negro para se defender. Estava sem forças, no entanto, e o golem sentiu as rochas abaixo tendo dificuldade em segurar a força de seu golpe. - Faça-me um favor, Desaad! - Gritou para ele, tentando ser entreouvido no meio dos raios. - Fique...

 - ... no chão! - Berrou Sasha, se abaixando e chutando Jones no queixo. Ele engoliu seu dente quebrado, e voou alto antes de cair no chão com força. A água espirrou alto, e antes de cair a garota já estava em cima do adversário, o pé molhado em seu pescoço. - Me ouviu? - Perguntou, pisando com mais força. Aquela não era uma luta difícil, pensou, se recriminando por ter penado tanto. Era necessário tomar o controle, e não perderia.

 O problema, como ela perceberia, era sua exaustão. Havia sofrido muito desde que chegou àquela fortaleza, tanto físico quanto emocionalmente. Ela avistou o braço do velho se mover, mas não foi rápida o suficiente para recuar. Ele perfurou sua perna um pouco abaixo do joelho, atravessando os músculos como se fosse manteiga. A membro da Aurora gritou e caiu para trás, se afundando em uma poça. Jones já começava a se levantar, abastecido pela loucura.

 - Eu disse que ia acabar com você. - Soltou para a garota que ainda agarrava a perna com as duas mãos. Estava finalmente  à sua mercê. - Vou arrancar sua cabeça e levar para seus companheiros. E então vou matar aquele garoto idiota e a vagabunda de cabelos castanhos, e depois--

 - Você me chamou de quê? - Jones olhou para a esquerda, bem a tempo de ver um soco em sua direção. O golpe fraturou seu nariz em um instante, o jogando para o chão. Ele tentou se levantar, mas um bastão dourado o derrubou de vez. Sasha arregalou os olhos, achando que a chuva estava lhe pregando uma peça. No entanto, uma mão familiar se ofereceu a ajudá-la. Era Amanda.

 - A-Amanda... - Disse sem acreditar, aceitando o auxílio e se apoiando na companheira por causa da perna ferida. Olhou por trás do ombro dela, os olhos arregalados. Koga a encarava mais perto, e na cobertura onde havia deixado Dalan, estava o restante da Aurora. Dominic, Julie, Sophie, até mesmo Kulela, Lyra e sua mãe. - O... o que aconteceu? - Perguntou com a voz fraca.

 - Viemos aqui para salvá-los. - Disse Stella, ao lado do reptiliano e de Dalan. - Desculpe-nos pela demora.

 - Esse aqui está bem. - Avisou Kulela, dando uns tapinhas no rosto do garoto adormecido. - Só precisa de uma infusão para recuperar as energias. - Levantou a cabeça, olhando para os companheiros. - Alguém se habilita a fazer isso para economizar meu tempo?

 - A-ah. Eu faço. - Respondeu Sophie, os olhos arregalados. Pegou um pacote verde com o curandeiro enquanto que Amanda e Sasha chegavam ao local. Amanda deitou com cuidado a amiga, que continuava confusa.

 - Ainda não entendi. - Confessou. - Onde vocês estavam?

 - Eu tinha ido com Kulela e Lyra para Helleon, onde recolhemos e compramos o que era necessário para socorros de emergência. - Começou Stella, olhando com sofrimento para os ferimentos da filha. que ficou pensativa. Não tinham dinheiro para isso. - Foi um excelente plano, visto o estado em que encontramos vocês.

 - Não que seja a melhor coisa do mundo. - Interrompeu Kulela, passando um pano mal-cheiroso no ombro de Sasha. - Só o suficiente para que fiquem em pé depois das perfurações e braços quebrados. Vamos ter um longo trabalho quando voltarmos à sede. - A garota desviou o olhar. Helleon parecia tão longe...

 - Onde estão Marcus e Wieder? - Perguntou Stella, cortando seus pensamentos. - Só precisamos buscá-los antes de irmos embora daqui. - Sua filha abriu minimamente a boca, tentando falar através do rosto cheio de dor. Deixou o queixo abaixar,

 - Marcus... - Não teve como continuar a falar, pois o ambiente se cobriu de roxo. Todos olharam para cima, percebendo que a chuva havia parado. Koga andou para o terreno descoberto, pisando sem perceber em uma poça funda. O rapaz tremia, e não era o único. Por toda a fortaleza negra, uma camada púrpura cobria os céus, se estendendo por todo aquele território. Sasha sentiu o coração parar. Havia esquecido do demônio.

 Wieder, por sua vez, se recordava perfeitamente. Olhou para baixo e percebeu a expressão triunfal de Desaad, ainda se protegendo pela camada de rochas. O anão pressionou ainda mais, aproximando o rosto. - O que diabos está acontecendo? - Perguntou por entre os dentes.

 - Maedegoen conseguiu. - Avisou o homem, sorrindo abertamente. - Ele localizou lorde Zemopheus! Agora estamos a caminho! - O golem olhou para cima, encarando o céu roxo. Não se lembrava de tamanho temor ter passado por sua alma. Do outro lado, o demônio continuava seu trabalho, o cristal em seu peito. O material branco reluziu nos olhos vermelhos de Wieder. Havia uma chance, considerou. Apenas uma chance.

 Se desvencilhou de Desaad e desatou a correr na direção do demônio.

 Corriam também Dominic e Stella, acompanhados de perto pelo restante da guilda. Eles pararam na beira do espaço onde Sasha havia acordado, e avistaram a estrada de destruição. Maedegoen estava do outro lado, segurando os pilares que o rodeavam. Aquela visão foi o suficiente para paralisar os membros da Aurora, até que Sasha avistou a figura solitária que corria na direção do demônio.

 - WIEDER! - Gritou, tirando os companheiros do transe. Amanda arregalou os olhos e tentou correr, mas foi contida por Dom.

 - Me solta! Ele está indo na direção daquela coisa! - Berrou ela, tentando se soltar. O homem por sua vez estava vidrado na cena, ainda tentando entender porque tinha impedido a companheira. E então, uma chave girou em seu cérebro.

 - SE PROTEJAM! - Gritou, carregando a garota para o lado. Os outros ainda estavam estupefatos, e foi necessário mais um incentivo. - ANDEM! AQUILO VAI EXPLODIR!

 Wieder, de certa forma, sabia daquilo. Ouvira histórias sobre a guerra além da Fronteira, onde o sombrio reinava. Sabia que demônios usavam constantemente cristais para suas tarefas, e destruir um significava caos. Só que não importava. Era a única chance deles. Pegou um destroço do chão enquanto corria, uma rocha praticamente do tamanho de um humano recém-nascido. Seria sua arma. Que os deuses a abençoem.

 - TEMOS QUE AVISÁ-LO! - Gritava Amanda, contida à força por Dom e Koga. Estavam a arrastando para a proteção dos casebres, bufando a cada passo. Julie também a puxou, e percebeu Desaad na estrada destruída. Virou o rosto sem contar para ninguém. - WIEDEEEER!

 O anão seguia em frente. Se lembrou de sua família. Você não tem mais idade para perseguir esse tipo de coisa, diziam eles. Apenas se foque em seu trabalho. Sorriu. Como estavam errados.

 Dalan acordou, percebendo o alvoroço ao seu redor. - O que aconteceu? - Perguntou meio grogue.

 - Wieder... Wieder está indo enfrentar aquela coisa. - Disse Sophie, com lágrimas nos olhos. - A gente acha que ele vai... ele vai... - Não conseguiu completar, mas o rapaz havia entendido. Rangeu os dentes e tentou se levantar, impedido pela companheira. - Não vá, por favor! - Chorou em seu ombro.

 - Wieder... - Soltou o garoto, sem conseguir acreditar no que estava acontecendo.

  O anão corria. Já estava muito próximo para recuar. O demônio não o olhava, preferindo levar seus olhos para o céu. Não parecia algo significante. Se pudesse, o membro da Aurora estaria suando o suficiente para largar seu projétil improvisado. De alguma forma, só conseguia pensar nos companheiros, especialmente os mais jovens. Que vocês não demorem como eu.

 - WIEDEEEEEEEEEEEEEEER! - Berrou Amanda.

 O anão girou o corpo e arremessou a rocha. Ela rodopiou no ar, expelindo as últimas gotas d'água que teimavam em permanecer na superfície. O cristal branco no peito de Maedegoen era seu alvo, e não iria errar. Acertou o objeto com toda a força que um golem obstinado podia juntar, e tudo pareceu explodir. O demônio gritou mais alto do que os trovões, o material brilhou em vermelho e amarelo, engolfando a plataforma circular em uma explosão multicolorida. Wieder também foi atingido, e fechou os olhos enquanto era destruído. Um sorriso se formou em seus lábios enquanto dava seu último pensamento antes de bater no portão dos mortos.

 Wieder, aquele que se opôs contra um demônio. Gostava do tom daquilo.

 - NÃÃÃÃO! - Gritou Amanda, caindo nos braços de Dominic. Chorava copiosamente, e lágrimas também estavam no rosto do homem. O impacto da explosão chegou até eles, trazendo consigo o som e a fumaça. Berraram e se abaixaram, procurando se proteger. Alguns prédios se desfizeram, desmoronando sem cerimônia e contribuindo para o som do apocalipse que rodeava os membros da Aurora. E, de repente, o silêncio. Apenas ele e a fumaça que os envolvia.

 Sasha foi a primeira a se levantar, um vulto naquela visibilidade diminuída. Estava lívida de raiva, as lágrimas contidas pelo aperto das bochechas. Conseguia ver Maedegoen do outro lado, ainda gritando. Chega, pensou ela. Já tinham perdido gente demais.

 - ESCUTEM! - Gritou para os companheiros, que se levantavam debilmente ao seu redor. - Nós fomos sequestrados. Obrigados a vir aqui por causa de um maluco que se julgou acima da própria Aliança. - Se virou para eles, olhando fundo na direção de cada um. - Cada um de nós lutou por sua vida. E vencemos. Marcus e Wieder até morreram para vencer, mas a Aurora está de pé! - Gritou as últimas palavras. - E eu digo para vocês, estou disposta a fazer o sacrifício deles valer a pena! Que não morram em vão! Vou acabar com esse demônio e honrar meus companheiros caídos! - Não havia como não acreditar na vitória agora. Sua alma queimava demais para a lógica. Só havia a missão. Ser a luz na hora mais negra. Fechou os punhos com força, se virando para Maedegoen. - A AURORA NÃO TARDARÁ! QUEM ESTÁ COMIGO?

 - Eu. - Grunhiu Dalan, ficando de pé. - Desaad os trouxe aqui por minha causa. Não vou deixar que ele mate mais nenhum de vocês.

 - Nem eu. - Se prontificou Amanda, fungando e limpando as lágrimas dos olhos. - Chega de mortos. Vamos voltar para casa. Juntos.

 - Sim. - Foi a vez de Sophie se levantar. Sua irmã a olhou com surpresa. - Vamos dar o nosso máximo para derrotar essa coisa.

 - Não deve ser tão difícil. - Soltou Koga, batendo o bastão no ombro.

 - Continue achando assim. - Sorriu Julie, se apoiando em um joelho. - E não vamos ter nenhum trabalho.

 - Hah. - Riu Dominic. - Não fiquem tão arrogantes assim.

 - Ou vou ter mais trabalho na hora de consertar vocês. - Disse Kulela.

 - Eu também vou. - Anunciou Lyra, puxando um arco que estava às suas costas. - Chega de acompanhar dos bastidores.

 - Digo o mesmo. - Acompanhou Stella, estreitando os olhos. - É a hora em que lutamos todos juntos.

 - Por Wieder e Marcus. - Começou Sasha, dando um passo à frente. A poeira já havia se esvainecido, revelando o caminho destruído e Maedegoen no fundo. Ele os encarava. - E pela Aurora. - Começou a correr, gritando com toda a força da sua alma. Os outros a acompanharam, cada um por seus motivos e todos por um. Defender a guilda.

 Dispararam para a luta, aquela que seria a última que travariam juntos.

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