AURORA
CAPÍTULO 40: POR TODOS OS SONHOS
Koga levantou a cabeça, observando a enorme torre de ébano que se esticava por entre os casebres vazios, um vulto negro destacado no céu nublado. Um raio cruzou as nuvens, iluminando-a em um clarão. Pequenas janelas pontuavam a extensão daquela construção, terminando em uma ponta achatada e murada. E era ali que deveria procurar seus companheiros.
Olhou para trás, a ruela desolada o encarando de volta. Os sons da luta de Dominic haviam cessado, e um silêncio agoural se estendia como um manto naquela fortaleza flutuante, interrompido às vezes pelas ondas que batiam no perímetro. O rapaz voltou a se virar para a torre, engolindo em seco enquanto segurava com força seu bastão dourado. Sabia que Dom estava vivo, disso tinha certeza. Só que também tinha conhecimento de que não viria ajudá-lo. Julie estava do outro lado, ocupada com seus próprios problemas. Ele estava só. Inspirou fundo, procurando algum tipo de coragem naquele ar úmido e salgado. Que os deuses me ajudem, rezou.
Passos trêmulos o trouxeram mais perto do grande portão de madeira da torre, cada um se tornando mais forte do que o anterior. Koga abriu a maçaneta, se surpreendendo por estar destrancada. A porta rangeu e ele entrou, preparado para qualquer ataque.
Se viu em uma sala retangular, montada com as mesmas pedras escuras que formavam o restante da torre. Um tapete vermelho e dourado se estendia até a porta no outro lado, acompanhado por diversos castiçais bruxuleantes. Parecia estranhamente um convite. Deveria ter trazido um presente, pensou o garoto. Se virou para o lado para fazer aquela piada até que se lembrou que estava sozinho. Saco. Arqueou os ombros e continuou, caminhando na direção da porta. Uma escada o aguardava.
O segundo andar era composto de um corredor de várias portas trancadas, assim como o terceiro. O quarto parecia apenas um depósito velho, enquanto que o quinto e sexto eram vazios e gotejantes. A cada lance de escadas as luzes diminuíam em quantidade, deixando os andares superiores escuros e frios.
Koga chegou ao sétimo andar praticamente cego, o pé chapinhando em poças rasas. Apoiou a mão na parede para se localizar, e ao fazer isso sentiu barras de ferro. Olhou para a direita, e avistou um vulto com familiares maria-chiquinhas.
Koga chegou ao sétimo andar praticamente cego, o pé chapinhando em poças rasas. Apoiou a mão na parede para se localizar, e ao fazer isso sentiu barras de ferro. Olhou para a direita, e avistou um vulto com familiares maria-chiquinhas.
- Sasha. - Sussurrou, procurando uma porta. Novamente se surpreendeu ao vê-la destrancada, mas estava mais preocupado com a companheira. Ela estava usando uma bata cinza e imunda, os olhos fitando o vazio. Se ajoelhou ao seu lado. - Sasha! - Tentou chamar, mas a garota não parecia ouvi-lo. O rapaz começava a se assustar quando uma luz branca e intensa veio do corredor, preenchendo todo o ambiente.
Koga colocou a mão na frente do rosto, procurando se acostumar àquele brilho forte. Havia uma figura o encarando de fora da cela, uma mulher alta e delicada. Usava um simples vestido branco e rendado, os cabelos loiros e cacheados descendo até a cintura fina. Seus olhos azuis se destacavam no rosto redondo, tirando a atenção do nariz mirrado e a boca fina. Ela sorria, as pálpebras levemente levantadas em uma expressão de alegria serena. O membro da Aurora se levantou, o braço ainda tapando um pouco dos olhos.
- Quem é você? - Perguntou, segurando o bastão com força.
- Eu sou a Dama dos Sonhos. - Sua voz era angelical, cada palavra saindo naturalmente cantada de seus lábios. Parecia haver um coro quando falava, quase imperceptível. - Estou cuidando de seus amigos. - Koga olhou para trás dela, reparando nas outras celas. Marcus e Amanda estavam lá, a mesma expressão hipnotizada de Sasha em seus rostos.
- O que fez com eles? - Perguntou o rapaz, abaixando o braço.
- Realizei seus sonhos. - Ela sorriu, parecendo extremamente satisfeita consigo mesmo. Suas vestes se agitaram e ela pareceu flutuar até onde Amanda estava, passando a mão carinhosamente em seu rosto. - Essa aqui é tão bonitinha. Tudo o que quer é que seus amigos estejam juntos. - Riu, fechando os olhos. - Já aquele ali... - Apontou com a cabeça para Marcus. - Passou por tanta coisa, coitado. Fico feliz que esteja calmo agora.
- Eu... não entendi. - Começou Koga, olhando de relance para Sasha abaixo de si. - São ilusões?
- Pode-se dizer que sim. - Disse a Dama dos Sonhos, passando os dedos pelos cabelos castanhos de Amanda. - Fornecidas pelos próprios corações.
- Solta eles então. - Ordenou o rapaz, caminhando forte para sair da cela. - Eles não merecem passar por isso. Está apenas enganando eles, e quando acordarem vão te matar. - A mulher ficou calada por alguns segundos, ainda brincando com a garota ao seu lado.
- Ah, mas é simples para você, não? - Perguntou, se levantando. Os cabelos taparam a visão de seu rosto, inclinado para o lado. - Se preocupar com a diferença entre a realidade e um sonho. Não se importar com as realizações de seus amigos. Não esperava menos de você.
- Você não me conhece. - Disse ele, nervoso. Queria entrar naquela cela e afastá-la de Amanda, mas temia ferir a amiga.
- Ah, mas eu conheço. - Continuou a Dama, ainda sem se mover. - Eu e minha irmã nascemos com poderes, sabia? Podemos olhar na mente dos outros, identificar seus maiores medos e desejos. E você, querido Koga Sabin, é um livro aberto. E por isso sei o motivo de não se importar com seus amigos nesse momento. - Ela virou o rosto para ele, contorcido em um sorriso maléfico. - Diferente deles, você não possui um sonho.
Koga ficou calado, inconscientemente dando um passo para trás. - Eu... não sei do que você está falando. - Grunhiu. Piscou e a mulher apareceu à sua frente.
- Ah, mas você sabe. - Tentou passar a mão no rosto do membro da Aurora, que recuou. - Mas isso não é um problema. Você apenas não achou seu sonho ainda, é isso. - Ela olhou para baixo, parecendo genuinamente perturbada. - Só que seus amigos acharam, e agora eles estão vivendo o que sempre quiseram viver. Por que quer tanto destruí-los?
- Eu não quero isso. - Se apressou o rapaz. - Eu quero que eles realizem seus sonhos, só que isso... isso não é certo. É uma mentira. - Ele olhou para Marcus, o único olho desfocado.
- Mas quem disse que não é verdade? - Questionou a Dama dos Sonhos. - Para eles, é a mais pura realidade. Só parece uma ilusão para você, que está do lado de fora. Se a vida é feita de memórias, porque eles não estariam vivendo uma?
- Olha, moça... - Koga estava cansado com a viagem até ali, a preocupação com os companheiros e toda aquela discussão. - Eu só sei que isso é errado. Então solte-os, ou eu farei isso sozinho. - Com aquelas palavras, a mulher ficou indecifrável por vários segundos. O rapaz tentou dar um passo para trás, mas naquele momento a Dama investiu contra ele, se tornando uma nuvem branca que o prendeu contra a parede. Um som de ossos se partindo subiu ao ar e Koga gritou, o braço esquerdo quebrado.
- Se quer tanto ser um maldito egoísta, que seja. - Agora sua adversária estava com o rosto contorcido, a ira desfigurando sua expressão. - Não conseguirá passar por cima de mim. - Ela manteve o rosto em fúria até ver que o garoto estava rindo, um som abafado através dos dentes fechados. - O que foi?
- Ah, eu achei que ia ter que te vencer com conversa. Não é meu forte. - Sua mão direita se fechou em torno de seu bastão, encoberto pela mesma névoa que o abraçava. - Já a porrada... - Ele girou o braço e acertou a arma no rosto da mulher, que caiu para trás, desfazendo o aperto. Koga caiu de pé desajeitado, mas seus olhos transpiravam vontade.
- Saia... daqui! - Gritou a Dama dos Sonhos, esticando a mão na direção do garoto. Uma torrente de nuvens brancas o cobriram, forçando para trás, mas ele prendeu o pé e se manteve imóvel, a trança esvoaçante atrás de si. - O que está fazendo? - Perguntou a mulher, aplicando mais força. O medo começou a tomar conta dela, que arregalava os olhos por cima do nariz sangrento. Não era uma lutadora como a irmã. - Você não tem um sonho! Não tem nada que anseia! Está vivo apenas por inércia! O que te faz ficar em pé e lutar?
Koga demorou um pouco para responder, com o braço na frente do rosto enquanto se preparava para dar um passo. Sorriu. - Sabe, eu tinha o mesmo pensamento que você. - Disse alto, procurando ser ouvido através da tempestade à sua volta. Conseguiu colocar o pé para frente, firmando-o. - Eu via todos aqueles ao meu redor com planos e desejos, e tudo que tinha era um treinamento marcial e um medo de ir pra Fronteira.
- Só que o tempo passou, e eu fiquei amigo deles. - Mais um passo. A ventania se intensificou, e Koga quase caiu para trás. Suas bochechas tremiam e as roupas o chicoteavam. - E as dificuldades vieram. Pessoas morreram e a Aurora parecia prestes a acabar. Eu e uma grande amiga decidimos nos esforçar para deixar-los tranquilos e felizes. - Conseguiu dar um novo passo, ainda maior que o anterior. - E isso inclui proteger os sonhos deles. E é algo que vou fazer agora.
- F-fique longe! - A Dama tentou imprimir mais força, mas estava nervosa demais para isso. Tudo o que conseguia enxergar à sua frente era a nuvem branca, e dela veio um raivoso Koga, o bastão seguro pelo braço sadio. Ele desceu a arma na cabeça da mulher, batendo com tanta força que ela desmaiou antes mesmo do sangue espirrar do ferimento.
As ilusões então se esvaneceram, e o corredor voltou a ficar escuro e silencioso. O membro da Aurora permaneceu onde estava, respirando com dificuldades, até que uma pequena mão pousou em seu quadril.
- Koga? - Era Wieder, vestido com o uniforme cinza que todos ali usavam. Estava pálido e suado, como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo. - O que... - Ele olhou para a Dama dos Sonhos no chão, derrotada, e para o rapaz que ainda segurava sua arma. - O que houve? Eu...
- Imagino que tenha tido um sonho bom, não? - Perguntou o garoto, um pouco aliviado ao ver que o companheiro estava bem, soltando o ar que inconscientemente havia prendido. Apontou com a cabeça para a mulher aos seus pés. - Ela que fez isso. Tinha dominado vocês.
- Então... não era verdade? - Ele desviou o olhar, engolindo em seco. Koga olhou por trás do ombro, percebendo os vultos que saíam cambaleantes das celas.
- Não... desculpa, cara. - O anão fez que sim com a cabeça, perdido em seus próprios pensamentos. O rapaz pensou em dizer mais algumas palavras, mas foi interrompido antes de abrir a boca.
- O que houve? - Disse a voz de Sasha, se apoiando nas barras metálicas. Ela tinha os olhos arregalados e os cabelos desentrelaçados, mas se segurava com força. - Por que estamos aqui, Koga?
- Olha, eu não sei. - Disse o membro da Aurora, se virando para ela. - Só sei que vocês foram sequestrados e viemos te salvar. Eu, Dominic e Julie. - Um vulto atrás deles se agitou, mas Sasha não pareceu notar.
- Certo, certo... - Ela parecia sem ar, olhando para os companheiros. Marcus, Sophie, Dalan e Amanda estavam saindo de suas prisões, todos extremamente abalados ao perceberem o que era real e o que não era. Sasha pigarreou, tentando recuperar a compostura. - Onde estamos? E temos uma rota de fuga?
- Estamos em uma fortaleza flutuante, mas Dominic tinha um barco. Ainda deve estar flutuando. - O rapaz olhou de relance para Dalan, considerando contar que estavam sobre Gamora. Não parecia o melhor momento.
- Então vamos. - Ela foi para o corredor, respirando fundo. - Seja quem for que tenha nos capturado, vai ser melhor se escaparmos sem luta. Koga, precisamos achar Dominic e Julie antes de sairmos. Talvez se... - Naquele momento a parede se desintegrou em um estouro, cobrindo-os em uma nuvem de poeira. Sophie gritou e os outros protegeram os rostos com os braços, a adrenalina catapultando em suas veias. Marcus foi o primeiro que conseguiu enxergar o rombo na torre, um buraco na lateral que dava para o lado de fora. E principalmente, o sexteto encapuzado que os encarava, flutuando no ar.
- Desaad. - Disse Sasha, conseguindo reconhecer o homem no centro.
- E o restante do Culto Púrpura. - Se adiantou Dalan, abaixando o braço. O mascarado Zaulin, o ente Rohr, a fada Jyll e a elfa Alana. Estavam todos lá.
- E... tem mais um cara. - Acrescentou Amanda, apontando para o desconhecido. De fato, havia mais uma pessoa com os membros originais do Culto Púrpura, uma figura familiar.
- Jones... - Sussurrou Sasha. Era James Jones, o ex-líder dos Libertadores, uma milícia de Wildest. Ele havia sido preso após uma missão da Aurora naquela cidade, mas claramente algum revés havia acontecido. Ele parecia maleficamente contente em suas novas vestes roxas e prateadas, o sorriso marcado em seu rosto enrugado. - Conseguiu os capangas que queria, Desaad? - Gritou a garota, dando um passo na direção do rombo na parede negra.
O homem apenas encolheu os ombro, as mãos espalmadas. - Vocês poderiam estar no lugar dele se tivessem aceitado cooperar. Nos oferecendo a mão de obra que usamos para trazê-los aqui e proteger essa fortaleza. - Ao dizer isso ele franziu o cenho, expandindo o sorriso. - Só que, considerando as circunstâncias atuais, talvez tenha sido melhor que tenhamos traçado caminhos separados.
- O que quer dizer com isso? - Sasha colocou a mão atrás do corpo enquanto falava, fazendo gestos para que os companheiros se aproximassem. Eles seguiram lentamente, observando o Culto Púrpura em busca de movimentos bruscos. - Pra quê nos sequestrou? O que quer?
- Bem, vocês foram trazidos para um bem maior. - Começou ele, a capa esvoaçando através do vento forte. Um raio caiu no mar, seu estrondo atingindo a fortaleza flutuante. - Como sabem, nós temos o dever de resgatar nosso mestre da prisão que a Aliança o colocou. De nosso querido mestre, o salvador deste mundo condenado.
- Mas antes eu poderei humilhá-los. - Era Jones quem falava, os olhos extasiados pela chance que tinha de ter sua vingança. - Ah, como eu fiquei esperando essa ocasião. Semanas na prisão, apenas pensando em como vocês...
- Escolham um alvo. - Grunhiu Sasha enquanto o homem falava. - Koga está ferido, então são seis contra seis.
- Eles parecem ter malhado. - Disse Dalan, também entre os dentes. - Que eu me lembre, não podiam voar antes.
- Isso é trabalho do mascarado. - Se adiantou Marcus, o único olho franzido. - Posso derrubá-lo, e isso deve afastar os outros. Se quiser eu fico com ele, Sasha.
- Certo. - Concordou a garota, sentindo o coração bater mais forte. - Eu fico com Jones. Temos... coisas a resolver depois de nosso último encontro.
- E eu com Desaad. - Acrescentou Dalan, a boca seca.
- ... e talvez eu arranque um de seus olhos, para que possam ver o que farei com suas carcaças, esmagadas pelos meus mais novos poderes... - Continuava Jones, mas ninguém parecia estar escutando. Nem mesmo os membros do Culto Púrpura.
- Eu luto com o ente. Já fiz isso antes, ele não vai me surpreender. - Disse Wieder, nervoso. Haviam lhe retirado sua pulseira, mas não sentia medo. Havia acabado de ter sido manipulado por seus próprios sonhos, e não estava com vontade de deixar aquilo por barato.
- Então eu fico com a elfa. Joana, Jelena, alguma coisa assim. - Soltou Amanda, respirando fundo. Alguns olhos se viraram para Sophie, que se assustou.
- Ah, eu... - Ela olhou para o sexteto de encapuzados, uma gota de suor escorrendo pela têmpora. A fada sorriu para ela, parecendo entender o que estava acontecendo. - E-eu fico com a que sobrou, acho. - Engoliu em seco, os braços encolhidos perto do corpo.
- Ao meu sinal, então. - Disse Sasha, e naquele momento Jones foi interrompido por Desaad.
- Decidiram o que querem fazer? - Perguntou o homem, sereno. Os garotos se encolheram, os rostos nervosos. Ele conseguiu ouvir?
- Sim. - Sasha foi a primeira a se recuperar, as mãos se fechando em punhos apertados. - Vamos acabar com vocês. Já fizemos isso e vamos fazer de novo, agora de uma vez por todas.
- Vocês são realmente engraçados. - Riu Desaad, acompanhado por seus companheiros. - Só conseguiram nos... retardar por superioridade numérica. O que farão agora que estamos igualados?
- A mesma coisa. - A garota se virou para Marcus, o sangue já pulsando em sua cabeça. - AGORA!
O garoto se adiantou e esticou a mão, mirando o mascarado Zaulin. O ar se dobrou e explodiu, lançando o Culto Púrpura para longe. Não caíram muito separados, mas era uma oportunidade que os membros da Aurora não poderiam ignorar. - VÃO, VÃO, VÃO! - Gritou Sasha, os companheiros correndo para o andar inferior. - EU NÃO QUERO MEDO, EU NÃO QUERO HESITAÇÃO! SÓ QUERO QUE VOLTEM VITORIOSOS E UNIDOS! - Ela se virou para Koga, tão perto que poderia contar seus poros. - Aguarde uns segundos e vá. Preciso que junte Julie e Dominic e espere no tal navio.
- Certo. - Respondeu o rapaz, e a garota correu para as escadas. Sophie apertou seu braço, chamando sua atenção.
- Cuide da minha irmã, por favor. - Pediu ela, ainda tomada pelo medo e a adrenalina. Encolheu o lábio e seguiu os companheiros, deixando Koga sozinho. Ele olhou para o rombo, os raios se agitando à distância. Seus amigos se atropelavam nos degraus, a agitação tão grande que nem pensavam no perigo que passavam. Só havia a luta, e com ela só poderia haver a vitória. Gritavam para expulsar os medos, gritavam para unir suas forças.
Começava a última batalha que travavam unidos. Os trovões agora chegavam à fortaleza, segundos após os raios.
Koga ficou calado, inconscientemente dando um passo para trás. - Eu... não sei do que você está falando. - Grunhiu. Piscou e a mulher apareceu à sua frente.
- Ah, mas você sabe. - Tentou passar a mão no rosto do membro da Aurora, que recuou. - Mas isso não é um problema. Você apenas não achou seu sonho ainda, é isso. - Ela olhou para baixo, parecendo genuinamente perturbada. - Só que seus amigos acharam, e agora eles estão vivendo o que sempre quiseram viver. Por que quer tanto destruí-los?
- Eu não quero isso. - Se apressou o rapaz. - Eu quero que eles realizem seus sonhos, só que isso... isso não é certo. É uma mentira. - Ele olhou para Marcus, o único olho desfocado.
- Mas quem disse que não é verdade? - Questionou a Dama dos Sonhos. - Para eles, é a mais pura realidade. Só parece uma ilusão para você, que está do lado de fora. Se a vida é feita de memórias, porque eles não estariam vivendo uma?
- Olha, moça... - Koga estava cansado com a viagem até ali, a preocupação com os companheiros e toda aquela discussão. - Eu só sei que isso é errado. Então solte-os, ou eu farei isso sozinho. - Com aquelas palavras, a mulher ficou indecifrável por vários segundos. O rapaz tentou dar um passo para trás, mas naquele momento a Dama investiu contra ele, se tornando uma nuvem branca que o prendeu contra a parede. Um som de ossos se partindo subiu ao ar e Koga gritou, o braço esquerdo quebrado.
- Se quer tanto ser um maldito egoísta, que seja. - Agora sua adversária estava com o rosto contorcido, a ira desfigurando sua expressão. - Não conseguirá passar por cima de mim. - Ela manteve o rosto em fúria até ver que o garoto estava rindo, um som abafado através dos dentes fechados. - O que foi?
- Ah, eu achei que ia ter que te vencer com conversa. Não é meu forte. - Sua mão direita se fechou em torno de seu bastão, encoberto pela mesma névoa que o abraçava. - Já a porrada... - Ele girou o braço e acertou a arma no rosto da mulher, que caiu para trás, desfazendo o aperto. Koga caiu de pé desajeitado, mas seus olhos transpiravam vontade.
- Saia... daqui! - Gritou a Dama dos Sonhos, esticando a mão na direção do garoto. Uma torrente de nuvens brancas o cobriram, forçando para trás, mas ele prendeu o pé e se manteve imóvel, a trança esvoaçante atrás de si. - O que está fazendo? - Perguntou a mulher, aplicando mais força. O medo começou a tomar conta dela, que arregalava os olhos por cima do nariz sangrento. Não era uma lutadora como a irmã. - Você não tem um sonho! Não tem nada que anseia! Está vivo apenas por inércia! O que te faz ficar em pé e lutar?
Koga demorou um pouco para responder, com o braço na frente do rosto enquanto se preparava para dar um passo. Sorriu. - Sabe, eu tinha o mesmo pensamento que você. - Disse alto, procurando ser ouvido através da tempestade à sua volta. Conseguiu colocar o pé para frente, firmando-o. - Eu via todos aqueles ao meu redor com planos e desejos, e tudo que tinha era um treinamento marcial e um medo de ir pra Fronteira.
- Só que o tempo passou, e eu fiquei amigo deles. - Mais um passo. A ventania se intensificou, e Koga quase caiu para trás. Suas bochechas tremiam e as roupas o chicoteavam. - E as dificuldades vieram. Pessoas morreram e a Aurora parecia prestes a acabar. Eu e uma grande amiga decidimos nos esforçar para deixar-los tranquilos e felizes. - Conseguiu dar um novo passo, ainda maior que o anterior. - E isso inclui proteger os sonhos deles. E é algo que vou fazer agora.
- F-fique longe! - A Dama tentou imprimir mais força, mas estava nervosa demais para isso. Tudo o que conseguia enxergar à sua frente era a nuvem branca, e dela veio um raivoso Koga, o bastão seguro pelo braço sadio. Ele desceu a arma na cabeça da mulher, batendo com tanta força que ela desmaiou antes mesmo do sangue espirrar do ferimento.
As ilusões então se esvaneceram, e o corredor voltou a ficar escuro e silencioso. O membro da Aurora permaneceu onde estava, respirando com dificuldades, até que uma pequena mão pousou em seu quadril.
- Koga? - Era Wieder, vestido com o uniforme cinza que todos ali usavam. Estava pálido e suado, como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo. - O que... - Ele olhou para a Dama dos Sonhos no chão, derrotada, e para o rapaz que ainda segurava sua arma. - O que houve? Eu...
- Imagino que tenha tido um sonho bom, não? - Perguntou o garoto, um pouco aliviado ao ver que o companheiro estava bem, soltando o ar que inconscientemente havia prendido. Apontou com a cabeça para a mulher aos seus pés. - Ela que fez isso. Tinha dominado vocês.
- Então... não era verdade? - Ele desviou o olhar, engolindo em seco. Koga olhou por trás do ombro, percebendo os vultos que saíam cambaleantes das celas.
- Não... desculpa, cara. - O anão fez que sim com a cabeça, perdido em seus próprios pensamentos. O rapaz pensou em dizer mais algumas palavras, mas foi interrompido antes de abrir a boca.
- O que houve? - Disse a voz de Sasha, se apoiando nas barras metálicas. Ela tinha os olhos arregalados e os cabelos desentrelaçados, mas se segurava com força. - Por que estamos aqui, Koga?
- Olha, eu não sei. - Disse o membro da Aurora, se virando para ela. - Só sei que vocês foram sequestrados e viemos te salvar. Eu, Dominic e Julie. - Um vulto atrás deles se agitou, mas Sasha não pareceu notar.
- Certo, certo... - Ela parecia sem ar, olhando para os companheiros. Marcus, Sophie, Dalan e Amanda estavam saindo de suas prisões, todos extremamente abalados ao perceberem o que era real e o que não era. Sasha pigarreou, tentando recuperar a compostura. - Onde estamos? E temos uma rota de fuga?
- Estamos em uma fortaleza flutuante, mas Dominic tinha um barco. Ainda deve estar flutuando. - O rapaz olhou de relance para Dalan, considerando contar que estavam sobre Gamora. Não parecia o melhor momento.
- Então vamos. - Ela foi para o corredor, respirando fundo. - Seja quem for que tenha nos capturado, vai ser melhor se escaparmos sem luta. Koga, precisamos achar Dominic e Julie antes de sairmos. Talvez se... - Naquele momento a parede se desintegrou em um estouro, cobrindo-os em uma nuvem de poeira. Sophie gritou e os outros protegeram os rostos com os braços, a adrenalina catapultando em suas veias. Marcus foi o primeiro que conseguiu enxergar o rombo na torre, um buraco na lateral que dava para o lado de fora. E principalmente, o sexteto encapuzado que os encarava, flutuando no ar.
- Desaad. - Disse Sasha, conseguindo reconhecer o homem no centro.
- E o restante do Culto Púrpura. - Se adiantou Dalan, abaixando o braço. O mascarado Zaulin, o ente Rohr, a fada Jyll e a elfa Alana. Estavam todos lá.
- E... tem mais um cara. - Acrescentou Amanda, apontando para o desconhecido. De fato, havia mais uma pessoa com os membros originais do Culto Púrpura, uma figura familiar.
- Jones... - Sussurrou Sasha. Era James Jones, o ex-líder dos Libertadores, uma milícia de Wildest. Ele havia sido preso após uma missão da Aurora naquela cidade, mas claramente algum revés havia acontecido. Ele parecia maleficamente contente em suas novas vestes roxas e prateadas, o sorriso marcado em seu rosto enrugado. - Conseguiu os capangas que queria, Desaad? - Gritou a garota, dando um passo na direção do rombo na parede negra.
O homem apenas encolheu os ombro, as mãos espalmadas. - Vocês poderiam estar no lugar dele se tivessem aceitado cooperar. Nos oferecendo a mão de obra que usamos para trazê-los aqui e proteger essa fortaleza. - Ao dizer isso ele franziu o cenho, expandindo o sorriso. - Só que, considerando as circunstâncias atuais, talvez tenha sido melhor que tenhamos traçado caminhos separados.
- O que quer dizer com isso? - Sasha colocou a mão atrás do corpo enquanto falava, fazendo gestos para que os companheiros se aproximassem. Eles seguiram lentamente, observando o Culto Púrpura em busca de movimentos bruscos. - Pra quê nos sequestrou? O que quer?
- Bem, vocês foram trazidos para um bem maior. - Começou ele, a capa esvoaçando através do vento forte. Um raio caiu no mar, seu estrondo atingindo a fortaleza flutuante. - Como sabem, nós temos o dever de resgatar nosso mestre da prisão que a Aliança o colocou. De nosso querido mestre, o salvador deste mundo condenado.
- Mas antes eu poderei humilhá-los. - Era Jones quem falava, os olhos extasiados pela chance que tinha de ter sua vingança. - Ah, como eu fiquei esperando essa ocasião. Semanas na prisão, apenas pensando em como vocês...
- Escolham um alvo. - Grunhiu Sasha enquanto o homem falava. - Koga está ferido, então são seis contra seis.
- Eles parecem ter malhado. - Disse Dalan, também entre os dentes. - Que eu me lembre, não podiam voar antes.
- Isso é trabalho do mascarado. - Se adiantou Marcus, o único olho franzido. - Posso derrubá-lo, e isso deve afastar os outros. Se quiser eu fico com ele, Sasha.
- Certo. - Concordou a garota, sentindo o coração bater mais forte. - Eu fico com Jones. Temos... coisas a resolver depois de nosso último encontro.
- E eu com Desaad. - Acrescentou Dalan, a boca seca.
- ... e talvez eu arranque um de seus olhos, para que possam ver o que farei com suas carcaças, esmagadas pelos meus mais novos poderes... - Continuava Jones, mas ninguém parecia estar escutando. Nem mesmo os membros do Culto Púrpura.
- Eu luto com o ente. Já fiz isso antes, ele não vai me surpreender. - Disse Wieder, nervoso. Haviam lhe retirado sua pulseira, mas não sentia medo. Havia acabado de ter sido manipulado por seus próprios sonhos, e não estava com vontade de deixar aquilo por barato.
- Então eu fico com a elfa. Joana, Jelena, alguma coisa assim. - Soltou Amanda, respirando fundo. Alguns olhos se viraram para Sophie, que se assustou.
- Ah, eu... - Ela olhou para o sexteto de encapuzados, uma gota de suor escorrendo pela têmpora. A fada sorriu para ela, parecendo entender o que estava acontecendo. - E-eu fico com a que sobrou, acho. - Engoliu em seco, os braços encolhidos perto do corpo.
- Ao meu sinal, então. - Disse Sasha, e naquele momento Jones foi interrompido por Desaad.
- Decidiram o que querem fazer? - Perguntou o homem, sereno. Os garotos se encolheram, os rostos nervosos. Ele conseguiu ouvir?
- Sim. - Sasha foi a primeira a se recuperar, as mãos se fechando em punhos apertados. - Vamos acabar com vocês. Já fizemos isso e vamos fazer de novo, agora de uma vez por todas.
- Vocês são realmente engraçados. - Riu Desaad, acompanhado por seus companheiros. - Só conseguiram nos... retardar por superioridade numérica. O que farão agora que estamos igualados?
- A mesma coisa. - A garota se virou para Marcus, o sangue já pulsando em sua cabeça. - AGORA!
O garoto se adiantou e esticou a mão, mirando o mascarado Zaulin. O ar se dobrou e explodiu, lançando o Culto Púrpura para longe. Não caíram muito separados, mas era uma oportunidade que os membros da Aurora não poderiam ignorar. - VÃO, VÃO, VÃO! - Gritou Sasha, os companheiros correndo para o andar inferior. - EU NÃO QUERO MEDO, EU NÃO QUERO HESITAÇÃO! SÓ QUERO QUE VOLTEM VITORIOSOS E UNIDOS! - Ela se virou para Koga, tão perto que poderia contar seus poros. - Aguarde uns segundos e vá. Preciso que junte Julie e Dominic e espere no tal navio.
- Certo. - Respondeu o rapaz, e a garota correu para as escadas. Sophie apertou seu braço, chamando sua atenção.
- Cuide da minha irmã, por favor. - Pediu ela, ainda tomada pelo medo e a adrenalina. Encolheu o lábio e seguiu os companheiros, deixando Koga sozinho. Ele olhou para o rombo, os raios se agitando à distância. Seus amigos se atropelavam nos degraus, a agitação tão grande que nem pensavam no perigo que passavam. Só havia a luta, e com ela só poderia haver a vitória. Gritavam para expulsar os medos, gritavam para unir suas forças.
Começava a última batalha que travavam unidos. Os trovões agora chegavam à fortaleza, segundos após os raios.
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