domingo, 23 de novembro de 2014

Aurora: Capítulo 41 - Custe O Que Custar

 Marcus desacelerou assim que chegou ao primeiro andar, deixando seus companheiros dispararem pelo carpete vermelho. Ele parou ao lado de um dos castiçais, o fogo vermelho brilhando em seu traje negro, aguardando em silêncio até que Sasha surgiu da escadaria. Agarrou seu braço e a puxou para o lado, deixando que Sophie os ultrapasse com curiosidade.

 - O que foi? - Perguntou Sasha, iluminada pelas chamas, tentando se livrar do aperto.

 - Eu tenho algo a te contar. - Confessou Marcus, o rosto impassível. A garota tentou dar mais um puxão, os dentes mordendo o lábio inferior.

 - Você pode me contar isso depois. - Sua voz soou um pouco desesperada, e ela virou a cabeça para a porta, como se estivesse esperando que alguém viesse os interromper. - Vamos ter tempo para isso.

 - Talvez, mas escute. - O rapaz finalmente conseguiu a atenção da outra, que o encarou com os olhos arregalados. Ela deixou o braço cair, mas Marcus continuou o segurando pelo pulso. Reservaram um momento em silêncio enquanto que ele respirava fundo, ainda sem expressão. - Eu...

AURORA
CAPÍTULO 41: CUSTE O QUE CUSTAR

 Marcus corria pelas ruelas de pedra, um labirinto delimitado por casebres que se estendia além de onde sua vista alcançava. Era uma figura de ébano correndo nas pedras da mesma cor, vestido apenas com seu uniforme de prisioneiro, uma calça folgada e uma camisa manchada. As ruas possuíam curvas aleatórias e as casas tinham tamanho variado, aumentando a sensação de confusão. No entanto, tinha que correr até onde Zaulin havia caído. Virou bruscamente à direita e adentrou um beco tão escuro que era difícil separar as paredes cinzas do chão negro. Um raio cruzou as nuvens, iluminando o caminho à frente. Eles começavam a se tornar cada vez mais frequentes, e com eles vinha os sons de trovões e das lutas que já haviam começado.

 O rapaz sentia um fiapo de nervosismo crescendo a cada esquina. E se seu adversário tivesse se encontrado com alguns de seus companheiros? Não eram apenas os membros da Aurora que estavam procurando o Culto Púrpura, o oposto poderia acontecer também. Ainda estava pensando nisso quando sentiu um formigamento do lado direito do corpo, uma sensação particular de que algo grande se aproximava.

 Saltou para trás bem a tempo de se esquivar da enorme explosão que arrombou a parede daquele beco. Destroços catapultaram em várias direções e uma cortina de poeira voltou a encher sua visão, mas conseguia enxergar um vulto à frente, levitando de braços cruzados. Havia encontrado Zaulin.

 Deu um passo para trás e ajeitou sua posição, aguardando um ataque. O mascarado ficou imóvel, deixando que a poeira se esvaísse. Ao seu lado uma casa começava a ruir, o som se misturando com o de um trovão. O chão tremeu por alguns segundos, mas nenhum dos dois fez qualquer movimento, o único olho negro encarando os buracos vazios da máscara serrilhada. Marcus conseguia sentir os pelos do corpo se eriçando, sinal de que não estava enfrentando alguém comum. Era como Amanda havia lhe dito. Estava frente a frente com um verdadeiro demônio.

 - Não desejo matá-lo. - Alertou Zaulin sem descruzar os braços, a capa se esvoaçando com a chegada de um vento úmido e salgado. - Nenhum de nós. Embora vocês não nos tenham mais utilidade, Jones nos pediu que estivessem vivos para ver o que causaram. Embora sugiro que não nos tentem.

 - E o que exatamente nós causamos? - Perguntou Marcus. Algo frio desceu pelo seu estômago. O que havia acontecido enquanto estavam hipnotizados? Do outro lado, o encapuzado soltou um som abafado.

 - Não vejo motivos de lhe contar nosso plano agora. - Retrucou, a voz provocando calafrios. Um raio o iluminou brevemente, as sombras do capuz escondendo o topo de sua máscara. - Apenas saibam que vocês nos ajudaram de uma forma inexplicável. Particularmente um de seus companheiros.

 - O que quer dizer com isso? - Agora o rapaz estava ficando genuinamente nervoso, algo intensificado pela aura do adversário. Um gota de suor caiu perto de seu tapa-olho.

 - Vocês realmente não sabem o que estão se metendo. - Disse, inclinando a cabeça um pouco para trás, o capuz se mexendo.

 - Heh. - Soltou Marcus, uma risada abafada mais para soltar a pressão dentro de si. - É engraçado você dizer isso. Que eu saiba, um demônio reunido com raças da Aliança é quem realmente não sabe o que está fazendo. - Aquilo pareceu perturbar o mascarado. Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos, os trovões causando barulho em seu lugar.

 - Bem... verifique realmente se eu não sei o que estou fazendo. - Ele balançou o braço direito e a parede ao seu lado explodiu, os destroços arremessados na direção do membro da Aurora. Ele foi pego de surpresa e levantou instintivamente os braços para proteger o rosto. Um pedaço de rocha se chocou contra seu cotovelo, trincando-o audivelmente. Nem teve tempo de se recuperar, pois Zaulin já estava ao seu lado. - Apenas espero que não morra. - Ele soltou o cotovelo no queixo do rapaz, catapultando-o para longe. O rastro de sangue o acompanhou, e antes que uma gota caísse no chão o demônio disparou e o agarrou pelo pescoço, prensando-o contra a parede.

 - Ugh. - Marcus sentiu o sangue esquentar a garganta e começou a engasgar. Cuspiu o líquido desesperado, o olho arregalado pelo medo. Só conseguia enxergar um braço enfaixado de linho negro o segurando pela visão turva, mas conseguia ouvir o demônio falando.

 - Você fala de mim me unindo às raças da Aliança, mas não conhece metade da história. - Começou ele, as órbitas negras da máscara encarando o outro. - Já fui membro de um renomado esquadrão de demônios. Estávamos infiltrados nesse lado da Fronteira a pedido do próprio lorde Zemopheus.

 - É, e o que aconteceu para você virar uma babá? - Conseguiu dizer o garoto, as mãos no braço do adversário.

 - Eu... cometi um erro. - Admitiu após ficar calado por alguns segundos. - Fiz com que fossemos descobertos, e toda a minha equipe foi dizimada pelos seus malditos magos. Me exilaram após isso e fiquei preso aqui. - Ele pareceu perceber que estava soando fraco, e a voz se recuperou. - Mas não importa. Graças à vocês, eu trarei o meu senhor de volta e serei aceito novamente.

 - Pra quê... você quer voltar às pessoas que te exilaram? - Estava ficando cada vez mais difícil para Marcus respirar, que dirá falar. - Eles te deram as costas. Não há motivo para continuar fiel a eles.

 - Você não entenderia. - Respondeu o mascarado sem nenhuma emoção na voz.

 - Mais do que você imagina. - O garoto levantou o braço e o ar atrás de Zaulin começou a se dobrar. Ele não reagiu, mesmo quando a explosão o acertou pelas costas. Marcus arregalou o olho ao ver a total indiferença do adversário ao seu golpe à queima-roupa. Antes que pudesse fazer algo, foi arremessado de encontro ao chão com tanta força que gerou uma cratera nas rochas negras. Cuspiu sangue novamente, sentindo que duas costelas haviam se partido.

 - Acho que você está me subestimando. - Disse o membro do Culto Púrpura, a capa esvoaçando enquanto descia até o piso. - Não deveria fazer isso. Posso muito bem matá-lo se quiser. - Do outro lado, Marcus tremia. Há muitos anos não sentia um medo tão paralisante quanto aquele. Tentou recuperar a compostura respirando fundo, os dedos prensados nas pedras quebradas. Ainda havia uma chance de lutar, concluiu. Sua última cartada. Com pesar, soltou o ar que estava preso.

 Me desculpe, Sasha, pensou.

 - Sabia que esse dia chegaria. - Começou ele, se levantando debilmente. Falava mais para si mesmo do que para o demônio, juntando as energias que possuía para seu último impulso. - O dia em que precisaria protegê-las com a minha vida. Infelizmente para ti, Zaulin... - Ele desamarrou o tapa-olho, abaixando um pouco o queixo. Quando levantou, revelou seu outro olho. Era uma órbita totalmente negra, escura como o céu sem lua. - ... é você quem está no meu caminho.

 Seu adversário ficou em silêncio, tentando entender aquilo. - Você é um Exitud. - Cuspiu finalmente. O rapaz apenas concordou com a cabeça.

 - Eu nasci em um vilarejo chamado Gwlayd, último filho de um clã que dedicava a existência a aprender os mistérios da energia negra. - Os pelos do braço se eriçavam com suas forças retornando. Um raio cruzou os céus. - Infelizmente eu nunca fui um bom aluno. Não conseguia manter a energia controlada, e meus pais nunca foram muito pacientes. Quando tinha onze anos, me marcaram para o exílio com o símbolo dos renegados e perigosos. - Ele levou um dedo ao olho descoberto, ardendo pelo primeiro uso após tantos anos. - Fiquei dois anos vagando, sendo temido e odiado por todos que encontrava. Até que um dia um homem chamado Adam Alba me encontrou.

 - Ele me tratou, alimentou e me levou até uma guilda chamada Aurora. - Continuou o garoto. - Eu perguntei o que queria após esse inesperado cuidado. O homem me disse que eu era um companheiro, e a única coisa que queria era que eu protegesse a guilda. - Ele fechou um dos punhos com força. Conseguia sentir uma energia despertar dentro de si, muito mais forte do qualquer outra coisa que tinha produzido sozinho. - Sua mulher me confeccionou um tapa-olho para que escondesse meu exílio e absorvesse parte de meus poderes. Disse que só deveria retirá-lo quando não conseguisse mais defender o que me era importante. - Marcus encarou a máscara de Zaulin, as unhas cortando a palma da mão em punho. - E hoje irei defender minha guilda, meus companheiros e a filha deles. Hoje irei soltar o que está preso há seis anos. - Conseguia sentir a energia negra rodeando seu punho, tão concentrada que era visível no espectro normal. - Custe o que custar.

 Ele estendeu o braço, conjurando um buraco redondo no meio do ar, escuro como a noite e grande como um cavalo. A capa de Zaulin esvoaçou na direção do vazio enquanto que ele tentava se manter onde estava, a poeira e os destroços o envolvendo enquanto disparavam para a esfera. Um som de aspiração preenchia o espaço, tão alto que encobria os trovões. O membro da Aurora usou toda a sua concentração para manter aquele construto, mas quando viu que o demônio estava conseguindo se firmar, fechou o punho. O buraco explodiu, um estouro de ar que destroçou as paredes mais próximas e catapultou os dois adversários para longe.

 - Não ache que apenas isso vai me derrotar! - Gritou Zaulin, voando na direção do rapaz. Marcus, ainda na trajetória de seu arremesso, girou o corpo e conseguiu bloquear o soco do adversário, os dois rolando através das ruas de pedra. O mascarado conseguiu ficar em cima, o cotovelo recuado para desferir mais um golpe. Marcus estendeu a mão para a direita e explodiu a casa mais próxima, o raio da detonação os atingindo também. Foram atirados para a outra calçada, onde se viram soterrados pelos escombros.

 Ferido e sangrando, o garoto se levantou apenas para ver que o demônio já estava o esperando. Foi recebido com dois socos no rosto e quase caiu novamente, cuspindo um dente quebrado. Iria receber o terceiro quando invocou um buraco negro em miniatura atrás do adversário, que parou para se firmar. Marcus cancelou a conjuração e o encapuzado caiu para frente, onde foi recepcionado pelo punho do rapaz em seu estômago.

 O membro da Aurora aproveitou a situação e girou o corpo para acertar uma cotovelada na máscara. No entanto, o adversário viu aquilo e girou o corpo, fazendo com que o antebraço batesse inofensivamente no artefato. O demônio então puxou sua mão para o lado e empurrou o cotovelo para frente, quebrando o braço com facilidade. O garoto gritou e foi chutado para frente, onde caiu entre os destroços.

 - Não irá conseguir! - Gritou Zaulin. Marcus limpou o sangue da boca e se levantou, juntando as forças para sua última cartada. Em algum espaço de sua mente, achou que iria ter medo, mas era algo que já havia aceitado. Levantou o braço e conjurou um novo buraco negro atrás do adversário, tão forte quanto o primeiro. - Eu já disse que... - Estava começando o encapuzado, até que ele viu o que estava acontecendo. O membro da Aurora estava correndo em sua direção, o corpo inclinando para frente.

 - AAAH! - Gritou o rapaz, expulsando qualquer ideia de hesitação de seu corpo. Estava mais rápido do que nunca, atraído pela esfera da morte.

 - Não... - Soltou o demônio, incapaz de aceitar a situação. Precisava de manter sua posição para não ser sugado pelo vácuo, mas aquilo o manteria na trajetória do garoto. Começou a se desesperar, o rosto virando em todas as direções em busca de uma saída.

 Marcus, por sua vez, estava revivendo um momento recente em sua mente, algo que não conseguia evitar em seus derradeiros segundos. - Eu vou enfrentar um demônio. - Dizia em sua memória, parado perto de um castiçal em um quarto escuro, com Sasha à sua frente. - Eu sei que eu escolhi meu adversário, mas as coisas podem sair do controle.

 - Você não sabe disso ainda. - Se enraiveceu Sasha. - Os outros já o derrotaram.

 - A situação é um pouco diferente. - Riu ele, um sorriso de canto de boca. - Vou dar o meu máximo, mas se as coisas parecerem irreversíveis, serei obrigado a retirar meu tapa-olho. - Sasha arregalou os olhos, o rosto imediatamente perdendo a cor.

 - Você não pode. - Conseguiu dizer com a voz fraca antes de explodir. - Você não vai fazer isso! Sabe que vai acabar morto!

 - Acabarei morto se não fizer nada também. - Respondeu o rapaz, sereno. - E me surpreende você dizer isso. Devemos sempre dar o máximo para defender a Aurora, não? Às vezes isso significa um sacrifício maior.

 A garota ficou o encarando com o rosto incrédulo, as lágrimas começando a se formar ao redor dos olhos. - Então pra quê veio falar comigo sobre isso? - Sua voz estava embargada, e ela abaixou o queixo para que Marcus não a visse chorar. - Se já fez sua mente, pra quê me contar? Hein? - Não houve resposta, o que a fez levantar a cabeça em fúria. - HEIN?

 - Eu... - Foi a vez do outro desviar o olhar, corando um pouco. - Aquela mulher me fez ver algumas coisas que eu não sabia sobre mim mesmo. Coisas que... - Ele parou, procurando as palavras. - Coisas que me fazem querer que você saiba. - Completou, voltando a encarar a garota. - Que você saiba o que eu vou fazer.

 Sasha ficou em silêncio, as lágrimas em cascatas e os lábios trêmulos. Ela deu um passo pra frente e abraçou o companheiro, mais de uma cabeça mais alto que ela. Aninhou o rosto em seu peito, os braços o segurando com força. - Por favor, não morra. - Pediu baixinho, a boca tapada pelas roupas do rapaz. - Você não. Eu não sei se conseguiria aguentar.

 - Conseguiria. - Disse o rapaz, passando a mão na nuca da garota. - Você é mais forte do que imagina, Sasha. Mais forte do que todos nós. - Ele abaixou o rosto, seu queixo apoiado no topo da cabeça dela. - Tenho certeza de que seu pai estaria orgulhoso. Assim como estou.

 Os dois ficaram mais alguns segundos parados como estavam, imersos na luz fraca do candelabro. E Marcus não conseguia tirar aquela cena da cabeça, mesmo enquanto o mundo se desintegrava ao seu redor. Pedaços do chão eram arrancados, o som de aspiração zunia como a fúria de um tornado, e Zaulin o encarava sem o que fazer.

 - AAAARGH! - Ele gritou, mais por reflexo do que por razão, mesmo incapaz de ser ouvido naquele pandemônio. Uma manga da sua camisa foi rasgada por uma pedra aleatória, e a marca da Aurora se fez vista. O único lugar que o havia aceitado, e agora ele retribuía tudo que recebera. Custe o que custar.

 Seu ombro acertou o estômago do demônio, arrancando-o do chão. Os dois foram aspirados pelo buraco negro, o membro do Culto Púrpura gritando a plenos pulmões. Já Marcus estava quieto. Estava sendo sugado de costas, e assim conseguiu enxergar o corredor destruído lá fora. E por um momento achou que conseguia ver uma garota ao longe, as maria-chiquinhas azuis esvoaçando como chicotes.

Me desculpa, pensou para Sasha, esperando que aquela mensagem chegasse à garota. De verdade. E assim ele caiu no buraco negro, que sumiu assim que engoliu seus últimos dois alvos. E com sua ausência, veio o silêncio.

 E em algum lugar, uma única lágrima caiu de um olho azul.

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