sábado, 1 de novembro de 2014

Aurora: Capítulo 38 - A Canção do Dever


 Um suave gotejar preenchia uma pequena poça, um acúmulo de água abrigado por uma suave depressão em um corredor de pedras cinzentas, não possuindo muito mais do que uma um centímetro de profundidade. Nela estava refletido um corredor úmido e sombrio, iluminado por uma distante lamparina trêmula. Aquele ambiente se manteve monótono e silencioso por longos minutos, interrompido apenas pelo som constante de pingos d'água, até que passos firmes e apressados ecoaram por suas paredes, chapinhando na poça rala. Refletidos pela água remanescente, dois homens caminhavam lado a lado, as costas cobertas por longas capas púrpuras e adornadas de prateado visíveis naquela escuridão. Ambos seguiram pela comprida galeria até chegarem a uma área de celas, onde vultos escuros se remexiam nas trevas.

 - Não tardará muito. - Disse uma das vozes, passando distraidamente o dedo pelas barras de metal enferrujado. - Só precisamos verificar os últimos passos da invocação, e logo terá o que anseia. - O primeiro homem pigarreou, colocando a mão fechada perto da boca. - Queria apenas agradecer pelo apoio que nos deu. Não sabe o quanto tentamos receber isso da Aurora.

 - Sou eu quem deveria agradecer. - Respondeu o outro, e um sorriso enrugado se manifestou em seus lábios. - Ver essa pequena agremiação de ofensores morrer é algo que desejo faz semanas. - Ele parou perto de uma das celas, a barra da capa agitando a água mais embaixo. - Ele foi um dos ladrõezinhos que invadiu minha casa, sabia? - Apontava para uma figura acorrentada, quase impossível de ser identificada naquela escuridão. Quase.

 - Ah, você já me contou dessa história. - Foi a vez do primeiro sorrir, se aproximando. - E é incrível como ele foi o elo que uniu nossos destinos. O meu, o seu, da Aurora... e daqui a algumas horas, do mundo. - Sua capa se agitou assim que ele se virou, voltando a andar pelos corredores fétidos. - Eu só espero que ele possa, antes do fim, compreender que sua existência condenou seus próprios companheiros. - O segundo homem também se afastou, deixando o vulto adormecer em sua cela. Uma porta à distância se abriu, revelando por uma fresta de luz o rosto desacordado de Dalan. Logo em seguida, as trevas voltaram a reinar.


AURORA
CAPÍTULO 38 - A CANÇÃO DO DEVER

 Um célere navio à vela corria pelo mar de Cellintrum, se inclinando e varando as ondas que encontrava no caminho. Ele tinha apenas dez metros de comprimento e dois apertados andares que não deixavam muito espaço para a tripulação, naquele dia consistente de apenas três pessoas: Julie, Koga e Dominic, que cuidava do leme para que aproveitassem ao máximo o vento favorável. Stella e os outros haviam pego uma embarcação para Helleon, deixando o restante com a missão mais urgente do resgate dos companheiros. O próprio céu parecia ter noção da gravidade daquela missão, apinhado de nuvens pesadas e trovões ao fundo, agitando o mar. Alguns raios de sol conseguiam atravessar as barreiras naturais e alcançar a água, onde formavam uma espécie de rota para o centro do que um dia fora Gamora.

 Dom permanecia pensativo diante de todos aqueles agouros, as mãos bem firmes no leme nervoso. Havia conseguido algumas peças de roupa, uma calça verde escura e um colete mais claro que deixavam os tatuados braços nus. Seus olhos estavam semicerrados e opacos, mergulhados em intuições diversas. Aquele homem fora um soldado na guerra, um combatente experiente que havia provado o suficiente da vida, recebendo em troca algumas poucas certezas. Uma delas era que sempre deveria confiar em seus instintos. O problema era que todos indicavam que algo terrível estava prestes a acontecer. Sua barriga se contorcia e os dedos tremiam levemente, sinais de que não voltaria igual daquela viagem. E o medo acompanhava esses augúrios.

 Após alguns minutos silenciosos, uma forma negra surgiu à distância. De início pareciam duas montanhas, separadas por um vale espinhoso com uma extensão de centena de metros. Contudo, conforme iam se aproximando, as formas ficavam mais definidas. Eram duas torres negras, densas diante do céu nublado, e entre elas havia uma miríade de pequenos casebres, todos moldadas da mesma pedra escura que dava forma àquela fortaleza flutuante. Mais atrás pareciam haver pilares espinhosos que saíam do chão e se dobravam como se fossem dedos, mas estavam muito cobertas para que pudessem ser plenamente vistas. No entanto havia uma vasta plataforma circular à frente deles, onde alguns navios estavam atracados. Dominic manobrou o leme, considerando suas opções com os olhos semicerrados. A prioridade deles era resgatar os membros capturados da Aurora, mas onde poderiam estar? O homem ficou em silêncio, formulando um plano em sua cabeça.

 - Koga! Julie! - Gritou assim que fez sua mente. - Venham até aqui! - Os dois garotos saíram do convés inferior e foram até o seu lado. Koga estava vestido com uma camisa azul e uma calça grená, assim como uma capa branca que cobria seu bastão. Julie por sua vez usava uma blusa azul-escura e uma calça marrom, ambas um pouco apertadas para seu corpo. Eles observaram a construção imponente à frente, e Koga ofegou.

 - Vou assumir que você tem um plano. - Soltou Julie sem olhar para Dominic, que murmurou positivamente.

 - Estão vendo aquelas torres? - Perguntou, apontando, mas era necessário muito esforço para não enxergá-las. - Desconfio que nossos companheiros estejam aprisionados em uma delas. Vou pedir para que cada um de vocês invada uma.

 - E você? - Foi a vez de Koga se manifestar. O rosto de Dom ficou sombrio antes de responder.

 - Eu vou chamar o máximo possível de atenção para que vocês tenham um caminho livre. - Os olhos dos garotos foram do homem até a plataforma mais à frente, os corações se encolhendo. Estava na clara que era um plano suicida.

 - Mas... - Tentou dizer Julie, mas foi interrompida pelo grande companheiro.

 - Não adianta torcer que consigamos invadir aquela fortaleza sem sermos vistos. Nem que todas aquelas casas estejam vazias. - Começou ele, um sorriso triste se manifestando em seus lábios. - Se quiserem fazer alguma coisa, sejam rápidos. Talvez dê tempo para me salvar. - Ele riu, mas não havia alegria naquele som. Julie procurou novamente dizer alguma coisa, mas Koga a segurou pela mão.

 - É melhor nos prepararmos. - Pediu, puxando-a levemente. A garota o obedeceu, dando uma olhada sofrida para Dom antes de descer as escadas do convés. Os dois foram até o andar inferior, onde Koga começou a flexionar os braços.

 - Ele foi um soldado, lembra? - Começou o rapaz, tentando acalmar a companheira que agora estava observando o mar através de uma das janelas. - Já esteve em situações piores do que essa. Vai dar tudo certo. - Nem mesmo Koga acreditou em suas palavras, e o silêncio os encobriu. O garoto se aquecia com truculência cada vez maior, o corpo tremendo ligeiramente. - Vamos precisar de sorte, não? - Grasnou, o queixo vibrando.

 - Koga... - Começou Julie sem se virar, mas o outro não pareceu ouvi-la.

 - Quer dizer, nós nem somos os mais fortes da Aurora. - Cada palavra sua subia um tom enquanto que ele procurava avidamente manter a expressão tranquila. Seus olhos, no entanto, o traíam. - Mas acho que esse é um daqueles momentos em que os mocinhos viram o jogo, né? Contrariando todas as expectativas, eles conseguem... conseguem... - Não conseguiu continuar a falar, a voz se embolando em sua própria garganta. Ele apoiou o bastão no chão e o segurou com força, o coração batendo tal qual um beija-flor. Não percebeu que Julie estava ao seu lado.

 - Ei. - Chamou ela. O rapaz a encarou, seus olhos nervosos encarando mais abaixo o rosto sofrido da companheira. Os dois ficaram em silêncio, ambos procurando força no outro. Koga foi o primeiro a quebrar aquele momento, apoiando o queixo no peito enquanto soltava o ar pelo nariz com um sorriso no rosto.

 - Quer dizer, eu... - Naquele momento Julie o segurou pelo pescoço e o beijou, fechando os olhos com força e se apoiando na ponta dos pés. Koga apenas permaneceu com as pálpebras arregaladas, preso nessa expressão atônita até mesmo depois da companheira o largar.

 - Pra dar sorte. - Sorriu ela, se encaminhando até as escadas. O rapaz continuou parado ainda por alguns segundos, um turbilhão de pensamentos em sua cabeça, até que se virou agitado.

 - Eu acho que preciso de mais sorte! - Gritou ele, correndo para encontrá-la.

 Enquanto isso, o navio seguia na direção da fortaleza negra. Dominic sentiu que olhos já começavam a ser observados. Quando se aproximou o suficiente para atracar, deu o sinal para os companheiros. Koga e Julie foram cada um para um lado, saltando na água gelada. Eles nadariam em torno daquela plataforma circular, escondidos pelas ondas até conseguirem subir as pedras negras. E Dom os daria cobertura.

 Ele calmamente encostou o barco na mureta, jogando uma corda em um toco de madeira para firmar sua posição. Em seguida desceu as escadas e apanhou alguns objetos avulsos, tão tranquilo que poderia assobiar. Se lembrou de Wieder lhe dando um esporro na última missão que haviam feito juntos, cobrando sua total atenção. Sorriu. Havia se perdido naquele dia, mas o anão havia lhe dado o que mais precisava. Um motivo. E com o motivo vinha o dever. Havia aprendido isso no exército. E agora, após tantos anos, era hora de trazer o velho soldado de volta.

 Saltou na plataforma circular, trazendo consigo uma braçada de pedaços de madeira e cordas. Jogou-as no chão ao seu lado, girando o pescoço para averiguar a área ao seu redor. Era um local plano e sem nenhuma construção, se estendendo por centenas de metros de pedras negras. Dominic se ajoelhou e colocou a palma estendida em uma das rochas, buscando compreender aquele material. Concluiu que seus poderes não funcionariam ali, mas tudo bem. Haviam caminhos alternativos.

 Ouviu sons à distância e levantou a cabeça, observando duas sentinelas encapuzadas correndo em sua direção. Gritavam, mas o que diziam não era importante. Haviam chegado tarde demais.

 Dom pisou em uma das tábuas, jogando-a para cima em uma rotação frenética. Agarrou-a em pleno ar e girou o corpo, arremessando o objeto na direção dos guardas. A madeira amplificou seu tamanho no meio da trajetória, acertando os dois homens. Agora havia chamado a atenção.

 Mais gritos, dessa vez do nordeste. Eram quatro sentinelas. Dom agarrou a corda, cuja ponta estava amarrada em uma pedra, e a rodopiou no ar como se fosse um vaqueiro de Wildest. Jogou-a em cima de um deles, que desmaiou antes mesmo de acertar o chão, e puxou-a para esquerda para derrubar mais dois guardas. O remanescente saltou na água, temeroso de ser o próximo da fila, mas esse era o posto de um grandalhão que vinha do norte.

 Dominic pegou um pedaço do leme que havia partido e o arremessou, infelizmente errando o alvo. O homem ainda vinha correndo, mas era uma questão de tempo até que fosse derrubado. O membro da Aurora franziu o cenho. Aqueles sentinelas estariam tão desesperados assim para fazer um ataque suicida?

 Um respingar de água atrás de si o fez entender a armadilha. Se virou e viu um homem ruivo acima do mar, parecendo coberto por gigantescos tentáculos verdes. Uma segunda olhada revelou que eles saíam das costas dele, mas aí Dom já havia sido capturado. Os braços pegajosos o agarram pelas pernas e o pescoço, puxando-o para trás. Fincou os pés no chão, mas o grandalhão à frente parecia obstinado em terminar o serviço de arremessar Dominic no oceano. No entanto, o membro da Aurora estava tranquilo.

  Uma das coisas que se aprendia na Fronteira era que, por melhor que fosse a habilidade de se atacar à distância, uma hora o combate corpo-a-corpo viria. E para isso, era sempre sugerida uma arma. Era nisso que Dom estava pensando quando puxou uma faca brilhante do colete, cravando-a com ferocidade no tentáculo enrolado em seu pescoço. Sangue negro se destacou no céu nublado e o ruivo gritou, seu aperto se esvaindo. O sentinela à frente continuava sua corrida, ávido em derrubar o adversário. Só que já havia perdido a vantagem.

 Dominic dobrou os joelhos e impeliu o ombro contra o grandalhão, sua barba ruiva roçando nos olhos do homem tatuado enquanto era derrubado. Dom rapidamente chutou os objetos que havia recolhido do navio, jogando-os no centro da plataforma. Aquele era o lugar mais difícil de se defender, mas não podia mais confiar nas beiras e até agora quase todos os sentinelas haviam vindo dos casebres ao norte. Só lhe restava uma opção.

 Enquanto caminhava, os pensamentos foram até seus companheiros. Havia esperado acompanhá-los por ainda muitos anos. Quando tivessem problemas ou dúvidas, procuraria exercer de sua experiência e aconselhá-los, e quando tivessem sucesso, seria o primeiro a parabenizá-los. Gostaria muito de vê-los crescer, se casar e terem filhos. E agora, mesmo que esperasse sobreviver, sabia que suas chances de estar com o restante da Aurora no futura era ínfima. A calma vinda do dever era a única coisa que impedia suas lágrimas de se derramarem, presas em algum canto de sua alma junto com todos os medos e dúvidas. Pois ele tinha olhos apenas para sua missão, sua única missão em toda a vida.

 Proteger.

 Mais sentinelas vieram, desta vez uma onda raivosa e berrante. Dominic pegou a corda com a rocha na ponta e girou-a em torno de si, formando um círculo de dor onde os homens vinham ser derrubados. Um deles, mais esperto, puxou sua espada e cortou a corda, fazendo com que a pedra voasse para cair no mar e privando o membro da Aurora de sua melhor defesa. Paciência. Dom havia visto na arma um problema e jogou uma de suas tábuas no adversário, mas agora não podia manter os inimigos longe. E eles continuavam vindo.

 Em algum canto da fortaleza, Koga havia saído da água, tremendo e esfregando as mãos. Conseguiu ouvir os sons da batalha ao longe, virando a cabeça naquela direção. - Você consegue, cara. - Disse com a voz sofrida, esperando que seu encorajamento chegasse ao companheiro.

 Do outro lado, Julie caminhava através das ruelas vazias, o rosto franzido enquanto tentava ignorar a luta na plataforma. Queria desesperadamente voltar e ajudar Dom, mas Sophie continuava refém. Apertou as mãos com tanta força nos ombros que esteve à beira de rasgar a pele, tomada pela culpa.

 Pois o trio da Aurora estava sendo movido naquele dia pelo dever. O dever de proteger os irmãos, por mais terrível que fosse o sacrifício. E essa responsabilidade era manifestada em Dominic Weitern, ex-soldado da Aliança, o membro mais experiente da Aurora. Ele atacava e se defendia, girando o corpo em uma dança solene para derrubar seus adversários. Era um homem idoso, um homem que havia perdido seus sonhos, mas que queria proteger os dos companheiros. Era seu último desejo, sua última força.

 E assim, a canção de Dominic se aproximava do seu fim, lutando e derrubando e massacrando aqueles que encontrava em seu caminho. Eram muitos, quase que uma miríade sem fim, e eles o engoliram, tal qual uma onda se debruçando sobre um caranguejo perdido. E assim eles continuaram pelo que pareceram horas, os sons da batalha mortal se estendendo até os céus, onde um raio cortou as nuvens e caiu no mar que um dia fora Gamora.

 E com ele, veio o silêncio.

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