terça-feira, 29 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 27 - Sem saída

 Dalan estava escrevendo, esboçando pequenos pensamentos desconexos em um pergaminho amarrotado. Ele aguardava no convés fedorento e escuro do Sete Chaves, navio pesqueiro que o levaria até a ilha de Thomas Galvan. O tal barco balançava fortemente com as ondas, fazendo o tinteiro rolar na pequena mesa que foi confiada ao garoto. A pena exteriorizava as dúvidas da missão que ele e Koga teriam pela frente, onde enfrentariam algo completamente desconhecido. Tudo o que sabiam era que haviam sequestrado a líder da Aurora e que Sasha havia quase morrido no confronto com os tais invasores. Não tinham noção de quantas pessoas os aguardavam nem se a senhora Stella estaria realmente na ilha. No entanto, não havia alternativa. Thomas Galvan era a única pista que tinham, e restava a Dalan apenas escrever em busca de alguma revelação divina.

 O convés deu uma chacoalhada particularmente mais pesada, finalmente derrubando o tinteiro. O líquido grosso e negro se derramou pelas tábuas de madeira do assoalho, escapulindo para os andares inferiores. O rapaz suspirou e largou a pena, amarrotando o pergaminho em seguida. Não havia conseguido elaborar nenhum plano, pensou ele enquanto jogava o objeto em um lixo próximo, o que desconfiava ser consequência de estar muito nervoso para isso. Esse fato o deixava ainda estressado, e se viu necessitado de um ar. Se levantou e desviou dos barris de peixe abarrotados, se guiando pela luz que vazava pelas frestas para alcançar a escadaria.

 Quando subiu, avistou diversos marinheiros correndo de um lado para o outro. O mar começava a ficar revolto, necessitando da atenção da tripulação. Acompanhava um homem carregando um balde nas mãos quando foi agarrado pelos ombros, quase caindo no chão. - Que agitação, hein Dalan? - Era Koga, que sorria animado.

 - Sim... - Respondeu o rapaz, se desvencilhando educadamente e caminhando até a lateral do Sete Chaves para observar as ondas. Na verdade era uma desculpa para evitar o contato com o companheiro, que de alguma forma conseguia se manter alegre e falante mesmo depois de Sasha ter sido atacada. Isso se aglutinava na grande lista de coisas que irritavam Dalan naqueles dias, forçando o garoto a manter distância para não se estressar de forma mais contundente.

 Decidiu se apoiar no batente do navio e encarar o horizonte, alheio ao restante da tripulação. Ele havia passado metade de sua vida acompanhando o pai em suas viagens no mar, portanto estava acostumado à certas revoltas das ondas. Essa em particular não parecia algo que pudesse derrubar a embarcação, mas precisava de uma atenção especial. O garoto passou os olhos pela agitação azul, visão tão normal para ele quanto dormir.

 No entanto, havia algo ali que era definitivamente incomum. Um ser encapuzado e mascarado estava flutuando por cima da água, de braços cruzados e a capa roxa e prata dançando pelo vento. Dalan se esgueirou no batente, achando que seus olhos estavam lhe pregando uma peça.  Ao fazer isso o navio sofreu um baque terrível, se balançando perigosamente perto de cair no mar.

 O rapaz quase foi derrubado para fora, se jogando para trás para evitar o ato. Caiu de costas na madeira molhada e salgada, perigosamente perto de ser pisoteado pelos marinheiros agitados. Koga se ajoelhou ao lado dele no momento em que uma onda se chocava com a lateral da embarcação, espirrando água para o alto. - Acho melhor irmos para dentro! Vamos deixar eles cuidando do navio! - Gritou ele, tentando levantar o companheiro. Dalan no entanto continuou onde estava, de olhos bem abertos para o mastro. O outro garoto virou a cabeça naquela direção e ficou sem palavras.

 De forma exponencial, toda a tripulação do Sete Chaves se aquietou e olhou para o mesmo lugar que os membros da Aurora fitavam. A figura encapuzada estava flutuando acima deles, em posição imponente. A própria agitação das ondas ficou em segundo plano, parecendo não mais perturbá-los. A máscara do invasor era agora mais nítida, uma carapaça metálica e cinza sem espaços para um nariz ou qualquer meio aparente para respiração. Um serrilhado vertical coberto de um material negro e relevado cobria o espaço da boca, e seus olhos eram espaços pequenos e escuros. O mascarado esperou um pouco, absorvendo toda aquela atenção. De repente acenou com as mãos, e um estrondo foi ouvido debaixo do navio. Rapidamente a água começou a invadir o Sete Chaves pelos fundos, desesperando os marinheiros e quebrando o encanto do encapuzado.

 Dalan e Koga se viraram, procurando alguma forma de evitar que a água entrasse. Era inútil, no entanto. Torrentes começaram a ascender pela escada do convés, borrifando para todos os lados. As ondas voltaram ao seu trabalho, se aproveitando da estrutura fragilizada do navio. Haviam gritos e correria, como se o fim do mundo tivesse se anunciado. A tripulação tentava arduamente fazer alguma coisa, qualquer coisa, mas o Mar de Cellintrum já havia se decidido. Ele engoliu a embarcação com voracidade, sumindo com os resquícios e os marinheiros, nos quais se encontravam os membros da Aurora. A agitação continuou por algum tempo, mas não havia mais nenhum alvo. A superfície do oceano se manteve desolada, sem nenhuma alma viva à vista.

 Em outro lugar, alguns dias depois do afundamento do Sete Chaves, um homem encapuzado fitava três cristais roxos e brilhantes com uma expressão pensativa. Estava em um pequeno aposento natural, uma espécie de sala em uma galeria subterrânea. Os objetos possuíam três metros de altura, e pulsavam em curtos períodos de tempo para iluminar aquele recinto.

 O nome do homem era Desaad, o líder do grupo que havia confrontado a Aurora, o Culto Púrpura. Seu semblante era de profunda meditação, com a ponta da capa caindo entre suas sobrancelhas, escondendo o cabelo muito loiro. Ele observava os cristais, opacos e em um lento movimento de rotação, como se escondessem alguma coisa. Sua mente trabalhava com possibilidades, a única coisa que podia contar naquele deserto de incertezas que havia se tornado sua missão. Tudo que sabia era que não podia demonstrar suas dúvidas para sua refém.

 - Pelo visto estamos sendo atacados. - Disse uma voz familiar atrás dele. O homem suspirou aliviado, se virando para Zaulin, o ser alto e mascarado que havia estado em Thomas Galvan desde então. Desaad o abraçou, voltando a sorrir.

 - Pode-se dizer que sim. - Comentou ele, observando o trio de cristais. Caminhou até o mais próximo, encostando a mão em sua superfície. - Teve a mesma sorte?

 - Eu consigo sentir o cheiro de uma Marca de guilda em um corpo morto a quilômetros. Foi ridículo perceber que estavam se aproximando da ilha. - Respondeu o mascarado, cruzando os braços. - Eram da tal Aurora. Assumi que estavam me procurando, e decidi atacá-los antes que aportassem.

 - Você não usou de seus poderes de forma espalhafatosa, usou? - Perguntou o líder de forma seca e lenta, recolhendo o braço. O mascarado apenas continuou olhando para frente, sem dar resposta. - Você sabe que precisamos nos manter escondidos dos magos da Aliança. Uma demonstração de poder dessas poderia ter sido detectada por um de seus membros, e eles estariam em nosso encalço antes que pudéssemos fazer algo a respeito. - Zaulin continuou calado, e Desaad voltou a encarar os cristais, estreitando os olhos com irritação.

 - Vim para cá pensando que iriam tentar resgatar a líder deles. - Recomeçou o outro depois de alguns instantes de silêncio. - Alguém chegou até aqui?

 - Não, mas imagino que não deva demorar muito tempo. - Confessou o homem, passando a mão pelos cabelos por baixo do capuz. - Imaginava que nosso comitê de boas-vindas fosse o suficiente para que estivessem em nossa mão. Pelo menos não alertaram as autoridades, do jeito que eu previ. Só que não podemos nos dar ao luxo de esperar.

 - Tem algo em mente? - Perguntou Zaulin, virando a cabeça. O líder pensou um pouco, tendo algumas informações a mais para trabalhar com a chegada do companheiro. Olhou para os cristais, símbolos da derrota dos outros membros do Culto Púrpura. Isso não poderia ficar assim.

 - Quero a cabeça deles. - Ordenou com a voz sem emoção. - Vá até a sede deles e me traga três corpos. Um para cada um de nossos colegas derrotados. Imagino que seja um bom para eles quando acordarem.

 - O plano de usá-los foi desfeito, então? - Questionou o outro.

 - Não, eu gosto da ideia em ter uma guilda registrada para fazer coisas que não podemos fazer das sombras. - Admitiu Desaad, levantando um pouco as sobrancelhas. - Só que devemos ter total controle sobre eles, ou não nos adiantará de nada. Portanto, se parecerem rebeldes, mate todos e destrua aquela sede. Penso em uma forma de acobertar isso depois.

 - Entendido. - Disse o mascarado, se virando para sair do aposento com a capa esvoaçando. O homem continuou onde estava, iluminado pelos pulsos roxos dos cristais. Em algum lugar daquela galeria, a líder da Aurora estava aprisionada, sem saber que seus subordinados estavam condenados. Pois Zaulin era um monstro, um ser muito mais poderoso do que parecia, até mesmo mais forte que o próprio Desaad. E agora ele estava a caminho de Helleon, e traria de volta corpos. Será que deveria contar isso a ela? Ver o desespero se apossar de seus olhos, e seus gritos de súplica? Aquela cena imaginária fez seu coração bater mais forte, e um sorriso se formou em seus lábios.

 De repente, ele balançou a cabeça para desfazer aquela sensação. Controle-se, ordenou a si mesmo. Havia muito em jogo para desperdiçar agindo de forma inconsequente, se deixando levar por suas vontades mundanas. Um passo em falso o levaria à ruína, e precisava se manter atento a toda hora.

 Afinal, estava lidando com demônios.

AURORA
CAPÍTULO 27: CONDENADOS

 A chuva ameaçava voltar a castigar Helleon. Nuvens carregadas haviam estacionado nos céus, e trovões longínquos deixavam os habitantes atentos. Eles caminhavam pelas ruas agitadas, se queixando do instável clima tropical que parecia próximo de lhes dar mais um presente. Um garoto que trabalhava na estação voltada aos mais humildes da cidade, localizada na zona oeste, comentava com um amigo sobre os bons dias de sol que haviam aproveitado. Ele carregava as malas da guilda local, levando-as até a carruagem que a tal Aurora havia alugado. Quando entrou no veículo, pareceu estar em um hospital da Fronteira. Dois homens, um adulto e outro apenas um rapaz, estavam deitados nos bancos, cobertos de ferimentos. O funcionário deixou as bagagens em um canto para sair de fininho, enquanto que uma garota loira na janela conversava com os companheiros do lado de fora. 

 - Prometo voltar o mais cedo possível. - Disse Julie para Amanda e Wieder, que aguardavam na rua. Ela tinha o rosto inchado, e o corpo estava coberto por diversas ataduras. Sua mão estava apoiada no batente, imobilizada por causa dos dedos quebrados. 

 - Volte quando tiver condições de lutar. - Pediu Wieder, falando um pouco mais alto para ser ouvido no meio de toda aquela agitação de Helleon. - De qualquer forma, ainda vamos esperar aqui algum tempo. Precisamos esperar que Koga e Dalan voltem de Thomas Galvan, ou seremos obrigados a ir até lá ver o que aconteceu.

 - Vocês acham que... - Começou a garota, mas Amanda a interrompeu.

 - Não adianta pensar nisso agora. - Seu rosto exalava o sofrimento que sentia com a falta de notícia dos outros companheiros, mas precisava confiar neles. - Você está com a carta de Sophie?

 - Sim. - Respondeu a outra, se remexendo na cadeira. A irmã gêmea havia saído de Tinyanga quando soube que as condições de Sasha e Lyra haviam melhorado, e estava voltando do vilarejo naquele momento. - Peço só que vocês cuidem dela. Não estamos lidando com bandidos comuns.

 - Não se preocupe. - Tranquilizou o anão. Um apito agudo cortou os ares, e o motorista correu até sua cabine. - Agora vá e cuide de Dom e Marcus. Vamos aguardar um pouco na sede antes de decidir o que faremos. 

 - Está bem. - Concordou o rosto sofrido de Julie. A carroça começou a se mover, e ela ficou encarando os companheiros até que o veículo fez a curva. Amanda e Wieder prenderam a respiração em uníssono, sabendo que agora a situação estava nas costas deles.

 Saíram em silêncio para a rua, cada um preso em seus próprios pensamentos. Foi apenas quando uma voz o chamou que foram trazidos de volta à realidade. Se viraram para o lado, avistando Sophie cavalgando um dos Recons da guilda. Estava com a roupa um pouco amarrotada pela longa viagem, pontuada por pequenos raminhos que também encontravam ninho em seus curtos cabelos.

 - Estava pensando em você. - Disse Amanda, deixando que a outra se aproximasse. Dalila, a réptil que estava servindo de montaria, rosnou baixinho ao fazer isso. - Precisamos nos reunir na sede. Já.

 - Sim, mas... - Ela olhou para os lados, vendo que apenas a companheira e o anão estavam ali. - Onde estão os outros? Aqueles que saíram em missão?

 A outra garota passou a mão pelo braço, pensando em como responder à amiga. Wieder, no entanto, foi quem se adiantou. - Sua irmã levou Dominic e Marcus para Tinyanga. Só que... - Ele parou por alguns instantes, respirando fundo. - Koga e Dalan ainda não voltaram.

 O rosto de Sophie ficou branco. - C-como assim? - Perguntou ela, olhando de um para o outro. - Eles já deveriam ter chegado não? S-será que...

 - Não se apresse. - Pediu o anão, estendendo a mão para acalmar a agitada garota. - Eles dependem de navios para chegar em Thomas Galvan. Talvez não tenham conseguido uma ida ou uma volta. - A companheira não parecia acreditar muito nisso, mas se aquietou.

 - Vamos só voltar para a sede por enquanto. - Disse Amanda, passando a mão pelos cabelos. Os três seguiram pelas ruas de Helleon, com os transeuntes se afastando pelo enorme réptil que caminhava com os membros da Aurora. Sophie retorcia as mãos na lombada do bicho, completamente nervosa. Seu coração batia como as asas de um beija-flor enquanto que ela rezava aos deuses para que protegessem seus companheiros.

 Andaram em silêncio até se aproximarem da praça em frente à sede. Amanda se virou para eles, parecendo decidia. - Acho que é melhor eu ir para Thomas Galvan enquanto que vocês ficam aqui caso Dalan e Koga voltem. Vou conferir a situação deles.

 - O quê? - Perguntou Wieder, parecendo indignado. - Se eles foram realmente atacados, acha que vai conseguir lidar com o problema sozinha? - Sophie fez uma careta, torcendo ainda mais as mãos.

 - Vocês estiveram viajando ou lutando nesses dias. Eu descansei no mesmo lugar. - Explicou a garota, virando uma esquina. - E não se preocupem, eu acho que consigo...

 Ela não terminou de falar, ficando com os olhos arregalados na direção da sede da Aurora. Wieder e Sophie a acompanharam, e perceberam uma figura encapuzada na frente dos portões de madeira. Ele vestia um capuz que fazia parte de uma capa roxa e prateada, e sua face estava protegida por uma máscara com um curioso serrilhado na boca.

 - Três cabeças serão entregues ao meu líder hoje. E vocês três irão contribuir com isso. - Disse o mascarado com uma voz gutural. Mesmo àquela distância de quase vinte metros, os pelos da nuca dos membros da Aurora se eriçaram. Havia algo em seu tom que assustaria até mesmo os mais corajosos. Tudo isso fazia com que sua ameaça soasse tão concreta que já parecia realidade.

 Já estavam todos mortos.

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