AURORA
CAPÍTULO 23 - QUEBRADA
Era uma noite escura e abafada em Helleon. Uma chuva forte se anunciava, predita pelas nuvens pesadas que se aglomeravam à distância. Nas ruas, o breu era total. O próprio chafariz da praça em frente à sede da Aurora era apenas um som no vazio, um barulho constante de água derramada.
Um raio cruzou os céus, tracejando um caminho entre as nuvens. Sua energia iluminou brevemente a praça, revelando um conjunto de cinco pessoas encapuzadas de roxo e prateado, todas olhando para o prédio à frente. A luz se apagou tão rápido quanto surgiu, e eles foram novamente engolidos pela escuridão. No entanto seus passos conseguiam ser ouvidos, caminhando sempre em frente.
Na sede, por sua vez, as pessoas continuavam com suas tarefas normais. A maior parte da guilda se concentrava em construir os estábulos para os Recons, obra que não havia nem perto de terminar.
- Saco... - Praguejou Wieder baixinho, passando a mão pela testa enquanto observava sua planta, iluminada fracamente por uma vela. Com o canto do olho viu que Dalan e Amanda se aproximavam, carregando tábuas de madeira. - Vocês não deveriam estar cuidando dos seus bichos? - Perguntou, levantando a cabeça.
- Sophie conseguiu controlá-los. - Respondeu Amanda calmamente, apontando com o dedão para o quintal atrás de si. - Isso pelo menos deve nos dar um tempo para descansar. Se eu soubesse que cuidar de Recons fosse tão cansativo, eu...
- Não complete essa frase. - Pediu Dalan, ficando sua tábua no chão e se apoiando nela. - Eu já gastei uma bela quantidade de dinheiro. Por favor, não me torne mais infeliz. - Acrescentou o rapaz, melancólico.
- Pelo menos eu acho que não vamos precisar de mais material. - Disse o anão, voltando a olhar para sua planta, coçando a barba.
- Como está a construção até agora, Wieder? - Perguntou Dalan, se encurvando para olhar o diagrama.
- Nós não conseguimos completar nem um terço do projeto. - Admitiu ele, suspirando profundamente e descendo do banquinho alto que se encontrava. - Só queria terminar de montar o material antes de irmos dormir.
- Ah, mas poderíamos ser mais rápidos! - Reclamou Julie em tons de indignação e raiva, sentada atrás deles martelando tábuas com Koga. Ela se levantou e abriu a janela do prédio da Aurora, colocando a cabeça para dentro da área de musculação da guilda. - Ouviu essa, Sasha? Poderíamos ser mais rápidos se alguém estivesse nos ajudando!
Sasha estava realizando flexões no chão quando foi chamada. Com um pouco de cansaço, a garota terminou seus movimentos e se levantou, puxando uma toalha branca para secar seu suor. - Eu já disse que estaria ocupada, Julie. - Disse à companheira com a voz irritada, se aproximando da janela. - Irei ajudá-los quando terminar aqui!
- E isso vai ser quando acabarmos de montar o estábulo sozinhos? - Perguntou a garota, abrindo os braços e indicando a movimentação dos companheiros. - Que tal ajudar a gente e depois fazer o que quiser?
- Se chama estar pronta para uma missão iminente. - Disse Sasha com a voz seca, segurando as duas pontas do vidro. - Não acho que você consiga entender isso. - Ao terminar essa frase, ela fechou a janela com força, trancando-a rapidamente em seguida. A outra garota ficou algum tempo imóvel, até que se virou com os olhos arregalados e uma expressão lívida.
- Eu vou matar ela. - Pronunciou meio que sorrindo, balançando o punho.
Enquanto que a guilda se concentrava nos fundos, não restava ninguém vigiando a entrada. Com isso, os encapuzados adentraram o saguão sem dificuldade, apenas quebrando a fechadura da porta da frente. Seu líder se adiantou, vestido com a capa e um simples traje negro por baixo, observando o grande aposento em que se encontravam. Estava escuro, muito devido às cortinas nas janelas, mas as mesas onde os membros da Aurora faziam refeição eram visíveis, um lembrete solitário de dias mais tranquilos.
- Alana, Jyll. - Chamou Desaad, o homem à frente, e duas figuras se aproximaram. A primeira era uma elfa alta e curvilínea, com cabelos longos e negros, olhos castanhos e uma expressão de completa apatia, que usava um simples vestido azul por baixo da capa. Já a segunda era a fada que Sophie havia encontrado na prefeitura, de rosto redondo, cabelo curto e azul-escuro, e olhos negros e grandes. Ela por sua vez vestia uma roupa mais complicada. Um adorno prateado cobria seus cabelos, e suas vestes possuíam um generoso decote. Um top de linho roxo-escuro terminava bem abaixo dos seios, de onde saía uma traje marrom e transparente, com uma longa tanga ornamentada das cores da capa no quadril. Elas se aproximaram do líder, que continuou olhando para o saguão. - Certifiquem-se de que não teremos companhia hoje.
A fada acenou com a cabeça e colocou as mãos ao redor da cabeça da companheira elfa. Um brilho multicolorido saiu das têmporas da outra mulher, e as duas se separaram. A mais alta se dirigiu à sombria parte de trás da sede da Aurora, enquanto que a mais baixa se aproximou das portas. Ela estendeu as mãos e uma energia verde se expandiu, cobrindo toda a parte frontal do prédio e iluminando o aposento.
- Agora... o escritório deve estar no segundo andar. - Disse Desaad, caminhando até as escadas enquanto Alana contornava o saguão, fechando todas as janelas. O enorme ente e o mascarado o acompanharam, enquanto que as mulheres garantiam que as pessoas que a guilda estivesse velada.
A líder da Aurora, por sua vez, estava alheia à tomada de sua própria morada. Iluminada por duas velas fortes, estava com o caderno que Sophie havia recolhido do escritório do prefeito, com as mãos na cabeça enquanto pensava em uma forma de abri-lo. Tão concentrada que se encontrava, só percebeu as batidas na porta quando se repetiram pela terceira vez. - Pode entrar. - Disse ela distraída, ainda encarando a medalha.
Percebeu que havia algo de estranho quando o ente gigante entrou em seu campo de visão, se agachando para passar da porta. Antes que Stella pudesse dizer algo, sentiu uma mão fina segurá-la pela garganta. Tentou se desvencilhar, mas quem quer que estivesse a prendendo, era muito forte. Enquanto tentava se desvencilhar de todos os jeitos, Desaad foi calmamente até as cadeiras na frente da mulher, se sentando e levantando o capuz, mostrando seu rosto fino e cabelos loiros penteados para trás. - Boa noite, senhora... Stella? - Perguntou, mas não houve resposta. - Zaulin, deixe-a em paz. Não é como se fosse escapar desta sala.
O mascarado soltou o aperto, e a líder da Aurora conseguiu respirar novamente. Olhou em volta, vendo que o ente permanecia ao lado da porta. Realmente, não havia um bom método para sair dali. Inspirou profundamente, tentando não perder a calma. Seja o que quer que estivesse acontecendo, ela precisava ao menos ter a cabeça fria. - Esperava que marcassem reunião. - Soltou com escárnio.
O invasor soltou um sorrisinho antes de continuar. - Meu nome é Desaad. - Respondeu o homem, juntando as palmas das mãos e colocando-as embaixo do queixo. - Estou aqui para falar sobre um certo caderno que acredito estar em suas mãos. - Stella olhou de relance para a agenda, mas antes que fizesse algo o mascarado se adiantou, recolhendo o objeto. Ele o atirou para Desaad, que não mudou de expressão. - Bem, um mistério a menos.
- Se veio apenas por isso, pode ir embora. - Disse a mulher, corando. - Eu não consegui abri-lo.
- Não esperava que conseguisse. - Comentou o invasor descompromissadamente, rodando a agenda nas mãos. - Deixamos este selo para que o nosso estimado prefeito não conseguisse ter provas de nosso envolvimento. E como uma isca para que ele mostrasse seus verdadeiros parceiros.
- O que quer dizer com isso? - Perguntou Stella. O homem afastou um pouco da bagunça da mesa antes de apoiar seus cotovelos na superfície.
- Quero dizer que estávamos esperando que o prefeito se sentisse ameaçado, e que corresse para entregar o caderno nas mãos de seus aliados. - Ele puxou a cadeira para frente, encarando a outra nos olhos com uma expressão fria. - Ou seja, a guilda que esteve trabalhando com ele.
Stella pensou em suas opções. Claramente os invasores estavam errados, mas isso não adiantaria de nada no momento. Eles estavam no controle, e poderiam matá-la rapidamente se quisessem. Precisava saber de seus objetivos, e considerar dar o que quisessem. - Bem, vocês conseguiram. Entraram aqui e recuperaram seu caderno. Poderiam sair agora?
- Ah, não. - Disse Desaad, manifestando um breve sorriso. - Veja, nós até que gostamos do trabalho da Aurora. Gostaríamos de... estender esse contrato. - Stella voltou a corar, percebendo o buraco que estavam se metendo. - Só que há uma condição, para que a guilda não venha a se rebelar no futuro. - Ele apontou para a mulher. - Você vem conosco.
A líder da Aurora rangeu os dentes. - Só irão me tirar daqui como um corpo.
- Não desejo isso. - Respondeu o homem com os olhos arregalados, como se tivesse ficado genuinamente assustado. - Por favor, encaro o assassinato como a última opção. Enquanto viva, você pode nos servir como um meio de garantir que a Aurora não reaja. - Ele se permitiu novamente um sorriso miúdo, enfurecendo a líder da guilda.
- Irei me repetir. - Declarou ela, esfregando com força os dedos na superfície da mesa. - Só sairei da minha casa morta.
- Assim como esses dois. - Disse uma voz nova na conversa. Todos ali se viraram para a porta, onde Sasha aguardava com uma das mãos no batente. Ela estava encharcada de suor, vestida com uma camisa azul folgada e uma calça negra e colada. Havia fúria em seus olhos, uma ira fria e brilhante. Ao invés de se sentir aliviada, Stella sentiu um peso gélido descer pelo estômago.
- Sasha, são os homens que estavam comandando o prefeito. Vá procurar ajuda agora. - Implorou, mas sua filha não pareceu ouvir.
- Apenas depois que eu acabar com esses idiotas. - Disse, adentrando o escritório enquanto que estalava os dedos de uma mão. - Se acham que podem invadir nossa guilda e fazer o que bem quiserem, só me resta--
- Rohr. - A interrompeu Desaad, estreitando os olhos. O ente, escondido sem querer ao lado da porta, saiu das sombras. Ele girou o braço, agarrando o rosto da garota e a jogando para fora do aposento em um único movimento. Sasha só teve tempo de arregalar os olhos enquanto era envolvida pelos dedos de madeira do adversário, antes que fosse impelida com tanta força para trás que quebrou o corrimão do segundo andar no choque, batendo na parede do outro lado do saguão antes de cair no chão.
- SASHA! - Gritou Stella, se levantando imediatamente. Zaulin a segurou pelos ombros, forçando-a para baixo, enquanto que o outro homem se punha em pé, caminhando tranquilamente para fora.
- Acho que esse é um bom momento para mim, senhora Stella. - Disse ele, retirando a capa e a jogando para o ente. - Além de convencê-la a se entregar sem luta, irei ensinar à sua guilda o que acontecerá caso ousem nos enfrentar.
- NÃO! SASHAAA! - Berrou Stella, tentando segui-lo. O mascarado agarrou seu rosto e o esmurrou contra a mesa. O nariz da mulher se partiu, esparramando sangue pelos papéis desarrumados. Zaulin em seguida a agarrou pelo pescoço, prendendo-a enquanto que seu líder descia tranquilamente as escadas.
- Irei lhe dizer uma coisa muito importante, garota. - Disse o homem, chegando ao térreo enquanto que ela ainda tentava se levantar. A energia verde brilhava das janelas e da porta, contribuindo para um clima espectral. - Eu normalmente não entro em lutas deste porte. No entanto, é necessário que vocês conheçam o medo. A humilhação. Afinal... - Ele parou, desta vem sem sorrisos. - Irão trabalhar a partir de hoje para mim.
- Vá pro inferno. - Soltou a garota, limpando o sangue da boca com as costas da mão. Desaad balançou a cabeça em resposta.
- Bem, acho que isso só prova que o diálogo não nos servirá para nada. - Ele esticou o pé direito um pouco para trás, levantando os antebraços. - Você poderá me atacar primeiro.
Sasha nem sequer pensou, apenas disparou de encontro ao adversário. Desferiu um soco com a mão esquerda, que foi rapidamente bloqueado pelo antebraço direito do inimigo. Se surpreendeu um pouco, mas girou o corpo e tentou chutá-lo com a perna direita. Novamente bloqueada, desta vez pela outra mão de Desaad, que a jogou no chão. A garota imediatamente se levantou, preparando um soco no rosto do homem. Ele por sua vez agarrou sua mão com facilidade, puxando-a para baixo. Sasha se viu impelida para o chão, apenas para ver um joelho se aproximar rapidamente da sua face. Foi golpeada com força na boca, caindo para trás. O sangue se derramava em cascatas, e a garota se apoiou com uma das mãos enquanto segurava a região ferida com a outra. No canto de seu campo de visão embaçado, percebeu dois pés ficando mais próximos.
- Super-velocidade, não? - Perguntou o inimigo, parando ao seu lado. - É um poder bastante interessante. No entanto, sem treinamento isso não servirá para nada contra alguém com boa reação. Todos os seus golpes são previsíveis, seu corpo já confessa o que irá fazer antes mesmo de você disparar. - A garota rangeu os dentes, flexionando os dedos no chão. Se levantou para golpear Desaad, mas o homem agarrou seu pescoço antes que atacasse. - Sinto lhe dizer, mas infelizmente você perdeu suas chances. - Disse ele, apertando a traquéia de Sasha, que tentava debilmente se livrar. - Tente por favor não morrer.
Ele desferiu uma nova joelhada no estômago da garota, retirando o ar que lhe restava. Ela arfou, cuspindo sangue, e o homem a jogou para longe. Seu corpo bateu com força na parede, rachando um pouco da madeira. Caiu sem controle, mas Desaad a impediu de atingir o chão. Segurou seu ombro e lhe deu um monstruoso soco no estômago. Antes que Sasha conseguisse sequer entender o que estava acontecendo, veio mais um. E outro. E outro. E outro. Um deles atingiu as costelas, acertando-as com tanta força que pareceram trincar. A garota perdeu completamente a noção do que estava acontecendo. O adversário continuava a golpeá-la na mesma região, e parecia que só existia aquilo na realidade.
Finalmente, os golpes pararam. Sasha finalmente atingiu o chão, tentando respirar através do sangue na boca e nas narinas um ar que não vinha de jeito nenhum. No entanto, não havia acabado. Sentiu uma de suas marias-chiquinhas sendo puxada para cima, e foi levantada até conseguir olhar o rosto do homem. Percebeu em sua expressão uma loucura bastante escondida em seus olhos, emergindo de uma escuridão profunda. Aquilo lhe deu um sentimento que não sentia havia muito tempo. Medo de morrer.
Desaad usou a testa para golpeá-la na face, explodindo seu nariz. O sangue espirrou para todos os lados, e a garota cambaleou para trás. Tentou inutilmente socar o ar, mas seu punho foi agarrado. Não conseguiu ver o que estava acontecendo, cega pela dor. O adversário estendeu seu braço e o cotovelou no meio, quebrando-o. Sasha gritou, sentindo seu mundo girar. O homem a jogou para longe, até que sua cabeça bateu no balcão.
No andar de cima, Zaulin conseguiu arrastar Stella para que conseguisse ter uma noção do que estava acontecendo. A mulher foi posta em cima do corrimão, agarrada pelo pescoço, sem escolhas exceto observar o saguão abaixo. Viu o homem se aproximar da filha, que jazia ensanguentada. - SASHA! SASHA! - Gritou ela, mas não fez surtir nenhum efeito. Desaad segurou a cabeça da garota em suas mãos e a jogou no balcão, prendendo-a na superfície. Largou-a e socou seu rosto, levando-a ao chão novamente. - Não... não... - Stella sentiu uma lembrança voltar a atormentá-la. Seu marido a encarava, um pouco antes de morrer. E à sua frente, mais um membro de sua família parecia prestes a encarar o mesmo destino. O invasor não levantou Sasha desta vez, preferindo-a chutá-la no estômago. Sangue novamente foi cuspido, e a líder da Aurora se viu com apenas uma alternativa. - EU ME RENDO! EU ME RENDO!
Desaad, no entanto, não pareceu escutar. Voltou a levantar a garota, desta vez pela gola da camisa, e socou-a novamente no rosto com a mão livre. - EU JÁ DISSE QUE ME RENDO! - Gritava a mulher acima, inutilmente. O homem jogou sua presa para longe, derrubando várias mesas no caminho. - POR FAVOR, PARE! - Ele continuou, se aproximando da garota que jazia no chão. - SASHAAAA! - A agarrou pelo pescoço, fechando seus dedos. Sasha nem sequer conseguia juntar energia para impedi-lo, parecendo apenas aguardar a morte que chegava. Os dedos do homem se apertavam em sua traqueia, cada vez mais forte, mais forte, até que...
- Desaad. - Disse finalmente Zaulin, e sua voz pareceu chegar à percepção do homem. Ele parou, arregalando os olhos como se tivesse acabado de sair de um transe. Soltou Sasha, que caiu sem forças. O homem aguardou alguns instantes para se recuperar, parecendo tonto. Após isso, olhou para cima. A face de Stella estava inchada de lágrimas e sangue, enquanto tinha olhos apenas para a filha caída. O líder dos invasores pigarreou, tentando se recompor.
- Bem, conseguimos arranjar um meio de negociar, então. - Ele sorriu, ainda com o sangue quente de Sasha no rosto. - Zaulin, por favor a leve para fora. Rohr, chame as garotas para cá. Está na hora de irmos para casa. - Ordenou para seus companheiros. Enquanto eles desciam as escadas do segundo andar, o homem se ajoelhou perto da garota em frangalhos, retirando os entulhos da frente. - Eu... peço perdão por meu descontrole. Temo que tenha sido excessivo de minha parte. Foi um erro que tentarei ao máximo não repetir. - Não houve resposta do outro lado. A membro da Aurora estava com a face virada para baixo em uma poça de sangue. Desaad se aproximou ainda mais, quase sussurrando. - De qualquer forma, acho que mostrei o meu ponto, não? Você irá nos obedecer. Você e toda a sua guilda. - Seus olhos se iluminaram com um brilho ameaçador, e sua voz abaixou mais alguns decibéis. - Caso contrário, eu irei matar a sua mãe. Da mesma forma que quase te matei. E depois, se ainda quiserem se rebelar, irei partir para seus companheiros. Um. Por. Um. E todos serão executados na sua frente, e a deixarei com o corpo deles para te lembrar de sua insensatez. Compreendeu?
Novamente, não houve resposta. O homem por sua vez se levantou para sair. Antes que desse um passo, no entanto, sentiu uma mão agarrá-lo pelo tornozelo. Se virou para trás, vendo que Sasha havia o agarrado, ainda com a face virada para baixo. Ela começou a falar, com a voz abafada pela poça de sangue. - Se acha... que vamos deixar você vir aqui... e fazer o que quiser... - A garota levantou o rosto, se apoiando no cotovelo do braço que agarrava o adversário. Rangia os dentes, com os olhos brilhantes de ira. - ... não conhece a Aurora...
Desaad observou aquilo sem reação aparente. Olhou para trás, conferindo a área. Estavam sozinhos. Rapidamente ele se agachou, abrindo a mão em uma palma e a enfiando nas costelas inferiores de Sasha. A garota pensou em gritar, mas o berro havia se perdido na garganta. Sentiu a mão quente do adversário se torcer no meio dos músculos, resvalando nos ossos, uma dor que não achava que era possível. O homem segurou o queixo dela com a mão livre, virando seu rosto para que se encarassem. Desaad se mantinha sem emoção, apenas com o brilho louco no olhar. Sasha por sua vez tremia, com os olhos arregalados pela agonia. - Então acho que a Aurora vai ter se adaptar aos novos tempos. - Ele retirou a mão, e a garota sentiu o frio mortal descer sua espinha. - Peço apenas que sobreviva o suficiente para que alerte seus companheiros. Senão terei que vir aqui por conta própria.
Ele se levantou, limpando o sangue na mesa mais próxima. Caminhou um pouco com os olhos fechados, tranquilo e cansado. O ente e as duas mulheres chegaram ao saguão, observando distraidamente a destruição caótica que os cercava. - Os outros já perceberam que a porta está trancada. Devemos sair agora. - Disse a elfa, tão calma que parecia estar falando do tempo.
O invasor soltou um sorrisinho antes de continuar. - Meu nome é Desaad. - Respondeu o homem, juntando as palmas das mãos e colocando-as embaixo do queixo. - Estou aqui para falar sobre um certo caderno que acredito estar em suas mãos. - Stella olhou de relance para a agenda, mas antes que fizesse algo o mascarado se adiantou, recolhendo o objeto. Ele o atirou para Desaad, que não mudou de expressão. - Bem, um mistério a menos.
- Se veio apenas por isso, pode ir embora. - Disse a mulher, corando. - Eu não consegui abri-lo.
- Não esperava que conseguisse. - Comentou o invasor descompromissadamente, rodando a agenda nas mãos. - Deixamos este selo para que o nosso estimado prefeito não conseguisse ter provas de nosso envolvimento. E como uma isca para que ele mostrasse seus verdadeiros parceiros.
- O que quer dizer com isso? - Perguntou Stella. O homem afastou um pouco da bagunça da mesa antes de apoiar seus cotovelos na superfície.
- Quero dizer que estávamos esperando que o prefeito se sentisse ameaçado, e que corresse para entregar o caderno nas mãos de seus aliados. - Ele puxou a cadeira para frente, encarando a outra nos olhos com uma expressão fria. - Ou seja, a guilda que esteve trabalhando com ele.
Stella pensou em suas opções. Claramente os invasores estavam errados, mas isso não adiantaria de nada no momento. Eles estavam no controle, e poderiam matá-la rapidamente se quisessem. Precisava saber de seus objetivos, e considerar dar o que quisessem. - Bem, vocês conseguiram. Entraram aqui e recuperaram seu caderno. Poderiam sair agora?
- Ah, não. - Disse Desaad, manifestando um breve sorriso. - Veja, nós até que gostamos do trabalho da Aurora. Gostaríamos de... estender esse contrato. - Stella voltou a corar, percebendo o buraco que estavam se metendo. - Só que há uma condição, para que a guilda não venha a se rebelar no futuro. - Ele apontou para a mulher. - Você vem conosco.
A líder da Aurora rangeu os dentes. - Só irão me tirar daqui como um corpo.
- Não desejo isso. - Respondeu o homem com os olhos arregalados, como se tivesse ficado genuinamente assustado. - Por favor, encaro o assassinato como a última opção. Enquanto viva, você pode nos servir como um meio de garantir que a Aurora não reaja. - Ele se permitiu novamente um sorriso miúdo, enfurecendo a líder da guilda.
- Irei me repetir. - Declarou ela, esfregando com força os dedos na superfície da mesa. - Só sairei da minha casa morta.
- Assim como esses dois. - Disse uma voz nova na conversa. Todos ali se viraram para a porta, onde Sasha aguardava com uma das mãos no batente. Ela estava encharcada de suor, vestida com uma camisa azul folgada e uma calça negra e colada. Havia fúria em seus olhos, uma ira fria e brilhante. Ao invés de se sentir aliviada, Stella sentiu um peso gélido descer pelo estômago.
- Sasha, são os homens que estavam comandando o prefeito. Vá procurar ajuda agora. - Implorou, mas sua filha não pareceu ouvir.
- Apenas depois que eu acabar com esses idiotas. - Disse, adentrando o escritório enquanto que estalava os dedos de uma mão. - Se acham que podem invadir nossa guilda e fazer o que bem quiserem, só me resta--
- Rohr. - A interrompeu Desaad, estreitando os olhos. O ente, escondido sem querer ao lado da porta, saiu das sombras. Ele girou o braço, agarrando o rosto da garota e a jogando para fora do aposento em um único movimento. Sasha só teve tempo de arregalar os olhos enquanto era envolvida pelos dedos de madeira do adversário, antes que fosse impelida com tanta força para trás que quebrou o corrimão do segundo andar no choque, batendo na parede do outro lado do saguão antes de cair no chão.
- SASHA! - Gritou Stella, se levantando imediatamente. Zaulin a segurou pelos ombros, forçando-a para baixo, enquanto que o outro homem se punha em pé, caminhando tranquilamente para fora.
- Acho que esse é um bom momento para mim, senhora Stella. - Disse ele, retirando a capa e a jogando para o ente. - Além de convencê-la a se entregar sem luta, irei ensinar à sua guilda o que acontecerá caso ousem nos enfrentar.
- NÃO! SASHAAA! - Berrou Stella, tentando segui-lo. O mascarado agarrou seu rosto e o esmurrou contra a mesa. O nariz da mulher se partiu, esparramando sangue pelos papéis desarrumados. Zaulin em seguida a agarrou pelo pescoço, prendendo-a enquanto que seu líder descia tranquilamente as escadas.
- Irei lhe dizer uma coisa muito importante, garota. - Disse o homem, chegando ao térreo enquanto que ela ainda tentava se levantar. A energia verde brilhava das janelas e da porta, contribuindo para um clima espectral. - Eu normalmente não entro em lutas deste porte. No entanto, é necessário que vocês conheçam o medo. A humilhação. Afinal... - Ele parou, desta vem sem sorrisos. - Irão trabalhar a partir de hoje para mim.
- Vá pro inferno. - Soltou a garota, limpando o sangue da boca com as costas da mão. Desaad balançou a cabeça em resposta.
- Bem, acho que isso só prova que o diálogo não nos servirá para nada. - Ele esticou o pé direito um pouco para trás, levantando os antebraços. - Você poderá me atacar primeiro.
Sasha nem sequer pensou, apenas disparou de encontro ao adversário. Desferiu um soco com a mão esquerda, que foi rapidamente bloqueado pelo antebraço direito do inimigo. Se surpreendeu um pouco, mas girou o corpo e tentou chutá-lo com a perna direita. Novamente bloqueada, desta vez pela outra mão de Desaad, que a jogou no chão. A garota imediatamente se levantou, preparando um soco no rosto do homem. Ele por sua vez agarrou sua mão com facilidade, puxando-a para baixo. Sasha se viu impelida para o chão, apenas para ver um joelho se aproximar rapidamente da sua face. Foi golpeada com força na boca, caindo para trás. O sangue se derramava em cascatas, e a garota se apoiou com uma das mãos enquanto segurava a região ferida com a outra. No canto de seu campo de visão embaçado, percebeu dois pés ficando mais próximos.
- Super-velocidade, não? - Perguntou o inimigo, parando ao seu lado. - É um poder bastante interessante. No entanto, sem treinamento isso não servirá para nada contra alguém com boa reação. Todos os seus golpes são previsíveis, seu corpo já confessa o que irá fazer antes mesmo de você disparar. - A garota rangeu os dentes, flexionando os dedos no chão. Se levantou para golpear Desaad, mas o homem agarrou seu pescoço antes que atacasse. - Sinto lhe dizer, mas infelizmente você perdeu suas chances. - Disse ele, apertando a traquéia de Sasha, que tentava debilmente se livrar. - Tente por favor não morrer.
Ele desferiu uma nova joelhada no estômago da garota, retirando o ar que lhe restava. Ela arfou, cuspindo sangue, e o homem a jogou para longe. Seu corpo bateu com força na parede, rachando um pouco da madeira. Caiu sem controle, mas Desaad a impediu de atingir o chão. Segurou seu ombro e lhe deu um monstruoso soco no estômago. Antes que Sasha conseguisse sequer entender o que estava acontecendo, veio mais um. E outro. E outro. E outro. Um deles atingiu as costelas, acertando-as com tanta força que pareceram trincar. A garota perdeu completamente a noção do que estava acontecendo. O adversário continuava a golpeá-la na mesma região, e parecia que só existia aquilo na realidade.
Finalmente, os golpes pararam. Sasha finalmente atingiu o chão, tentando respirar através do sangue na boca e nas narinas um ar que não vinha de jeito nenhum. No entanto, não havia acabado. Sentiu uma de suas marias-chiquinhas sendo puxada para cima, e foi levantada até conseguir olhar o rosto do homem. Percebeu em sua expressão uma loucura bastante escondida em seus olhos, emergindo de uma escuridão profunda. Aquilo lhe deu um sentimento que não sentia havia muito tempo. Medo de morrer.
Desaad usou a testa para golpeá-la na face, explodindo seu nariz. O sangue espirrou para todos os lados, e a garota cambaleou para trás. Tentou inutilmente socar o ar, mas seu punho foi agarrado. Não conseguiu ver o que estava acontecendo, cega pela dor. O adversário estendeu seu braço e o cotovelou no meio, quebrando-o. Sasha gritou, sentindo seu mundo girar. O homem a jogou para longe, até que sua cabeça bateu no balcão.
No andar de cima, Zaulin conseguiu arrastar Stella para que conseguisse ter uma noção do que estava acontecendo. A mulher foi posta em cima do corrimão, agarrada pelo pescoço, sem escolhas exceto observar o saguão abaixo. Viu o homem se aproximar da filha, que jazia ensanguentada. - SASHA! SASHA! - Gritou ela, mas não fez surtir nenhum efeito. Desaad segurou a cabeça da garota em suas mãos e a jogou no balcão, prendendo-a na superfície. Largou-a e socou seu rosto, levando-a ao chão novamente. - Não... não... - Stella sentiu uma lembrança voltar a atormentá-la. Seu marido a encarava, um pouco antes de morrer. E à sua frente, mais um membro de sua família parecia prestes a encarar o mesmo destino. O invasor não levantou Sasha desta vez, preferindo-a chutá-la no estômago. Sangue novamente foi cuspido, e a líder da Aurora se viu com apenas uma alternativa. - EU ME RENDO! EU ME RENDO!
Desaad, no entanto, não pareceu escutar. Voltou a levantar a garota, desta vez pela gola da camisa, e socou-a novamente no rosto com a mão livre. - EU JÁ DISSE QUE ME RENDO! - Gritava a mulher acima, inutilmente. O homem jogou sua presa para longe, derrubando várias mesas no caminho. - POR FAVOR, PARE! - Ele continuou, se aproximando da garota que jazia no chão. - SASHAAAA! - A agarrou pelo pescoço, fechando seus dedos. Sasha nem sequer conseguia juntar energia para impedi-lo, parecendo apenas aguardar a morte que chegava. Os dedos do homem se apertavam em sua traqueia, cada vez mais forte, mais forte, até que...
- Desaad. - Disse finalmente Zaulin, e sua voz pareceu chegar à percepção do homem. Ele parou, arregalando os olhos como se tivesse acabado de sair de um transe. Soltou Sasha, que caiu sem forças. O homem aguardou alguns instantes para se recuperar, parecendo tonto. Após isso, olhou para cima. A face de Stella estava inchada de lágrimas e sangue, enquanto tinha olhos apenas para a filha caída. O líder dos invasores pigarreou, tentando se recompor.
- Bem, conseguimos arranjar um meio de negociar, então. - Ele sorriu, ainda com o sangue quente de Sasha no rosto. - Zaulin, por favor a leve para fora. Rohr, chame as garotas para cá. Está na hora de irmos para casa. - Ordenou para seus companheiros. Enquanto eles desciam as escadas do segundo andar, o homem se ajoelhou perto da garota em frangalhos, retirando os entulhos da frente. - Eu... peço perdão por meu descontrole. Temo que tenha sido excessivo de minha parte. Foi um erro que tentarei ao máximo não repetir. - Não houve resposta do outro lado. A membro da Aurora estava com a face virada para baixo em uma poça de sangue. Desaad se aproximou ainda mais, quase sussurrando. - De qualquer forma, acho que mostrei o meu ponto, não? Você irá nos obedecer. Você e toda a sua guilda. - Seus olhos se iluminaram com um brilho ameaçador, e sua voz abaixou mais alguns decibéis. - Caso contrário, eu irei matar a sua mãe. Da mesma forma que quase te matei. E depois, se ainda quiserem se rebelar, irei partir para seus companheiros. Um. Por. Um. E todos serão executados na sua frente, e a deixarei com o corpo deles para te lembrar de sua insensatez. Compreendeu?
Novamente, não houve resposta. O homem por sua vez se levantou para sair. Antes que desse um passo, no entanto, sentiu uma mão agarrá-lo pelo tornozelo. Se virou para trás, vendo que Sasha havia o agarrado, ainda com a face virada para baixo. Ela começou a falar, com a voz abafada pela poça de sangue. - Se acha... que vamos deixar você vir aqui... e fazer o que quiser... - A garota levantou o rosto, se apoiando no cotovelo do braço que agarrava o adversário. Rangia os dentes, com os olhos brilhantes de ira. - ... não conhece a Aurora...
Desaad observou aquilo sem reação aparente. Olhou para trás, conferindo a área. Estavam sozinhos. Rapidamente ele se agachou, abrindo a mão em uma palma e a enfiando nas costelas inferiores de Sasha. A garota pensou em gritar, mas o berro havia se perdido na garganta. Sentiu a mão quente do adversário se torcer no meio dos músculos, resvalando nos ossos, uma dor que não achava que era possível. O homem segurou o queixo dela com a mão livre, virando seu rosto para que se encarassem. Desaad se mantinha sem emoção, apenas com o brilho louco no olhar. Sasha por sua vez tremia, com os olhos arregalados pela agonia. - Então acho que a Aurora vai ter se adaptar aos novos tempos. - Ele retirou a mão, e a garota sentiu o frio mortal descer sua espinha. - Peço apenas que sobreviva o suficiente para que alerte seus companheiros. Senão terei que vir aqui por conta própria.
Ele se levantou, limpando o sangue na mesa mais próxima. Caminhou um pouco com os olhos fechados, tranquilo e cansado. O ente e as duas mulheres chegaram ao saguão, observando distraidamente a destruição caótica que os cercava. - Os outros já perceberam que a porta está trancada. Devemos sair agora. - Disse a elfa, tão calma que parecia estar falando do tempo.
- Sim. - Disse Desaad, olhando para trás. A fada se aproximou das mesas, vendo a ensanguentada Sasha estirada no chão. - Jyll, chegou a nossa hora. Vamos.
- Qual era o poder dela? - Perguntou a mulher, se apoiando nos joelhos. O líder suspirou, aceitando a capa que o ente o entregava.
- Super-velocidade. Faça o que quiser, apenas seja rápida. - Disse Desaad, vestindo sua roupa. Jyll se ajoelhou perto da garota caída, segurando sua cabeça. Sasha não tinha como reagir, e um brilho multicolorido saiu de suas têmporas. A energia verde que cobria o saguão cessou, mergulhando-o na escuridão. Quando a fada se levantou, olhava para as mãos com alegria.
- Isso pode ser interessante. - Disse ela, sorrindo para os companheiros. Os quatro colocaram suas capas, caminhando para a porta. Sasha ouviu seus passos, tentando se levantar. Não possuía mais forças e a dor a abraçava com empenho, mas ela ainda assim manifestou sua última grama de vontade. As portas da Aurora se abriram, jogando um pouco do brilho noturno no saguão. A garota apoiou a mão trêmula no chão, procurando se levantar. Precisava salvar sua mãe. Precisava salvar a Aurora. Era tudo que lhe restava. Seu pai havia lhe confiado aquelas duas. Era tudo que restava dele. Não podia deixar que viessem ali e destruíssem o que havia lutado tanto para manter. Tinha que se levantar. Tinha que ter forças. A mão tremia, perdendo o apoio. Era sua responsabilidade. Seu dever. Sua aurora, o brilho que iluminava a noite sombria. Sua única razão de ser.
As portas se fecharam e a mão de Sasha escorregou no próprio sangue. Ela caiu, e a escuridão finalmente abraçou o saguão e a garota que jazia no meio dele.
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