sexta-feira, 18 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 25 - Tempo Corrosivo


AURORA
CAPÍTULO 25 - TEMPO CORROSIVO

 A floresta de Hyannien estava brilhante e animada naquele sol de meio-dia. O verde das árvores radiava de energia, e pequenos animais silvestres corriam pelos galhos e faziam sons agudos que se misturavam à ópera silvestre de tantos outros seres vivos. Um riacho corria translúcido pela encosta da montanha, trazendo consigo peixes fracos demais para lutarem contra a corrente. A própria temperatura estava bastante amena, tornando aquela floresta um excelente lugar para uma caminhada animada ou até mesmo um piquenique. O que contrastava terrivelmente com as duas únicas pessoas que subiam a encosta da Montanha Branca.

 Wieder e Dominic haviam passado quase dois dias praticamente sem trocar uma palavra. Desde que saíram de uma chuvosa Helleon e arrumado um transporte para o sul, até a trilha forçada que haviam percorrido no caminho até a Torre de Marfim, tudo que haviam conversado era sobre onde iriam dormir e como iriam seguir adiante. A memória de Sasha às portas da morte no saguão da Aurora havia os marcado profundamente, principalmente Dom. Ele se mantinha enfurnado em seus próprios pensamentos, distraído com o mundo exterior, e não havia iniciado sequer uma das poucas conversas que teve com o companheiro. 

 Assim, calada, a dupla continuou subindo a elevação por uma trilha serpentinosa, desviando das inúmeras e gigantescas rochas nuas que pontuavam a encosta. O anão olhou para trás, percebendo o belo mar que brilhava em azul escuro se agitando na baía circular que o terreno formava. Um grupo de pássaros saiu das árvores e passou por cima deles, voando barulhentos na direção do topo da Montanha Branca. Wieder os seguiu distraído, e notou que a Torre de Marfim já conseguia ser vista, se destacando entre a cordilheira que os cercava.

 - Acho melhor descansarmos. - Sugeriu ele, suspirando fundo e pondo as mãos na cintura. - Estamos perto da torre. Seja o que quer que esteja nos esperando lá, precisaremos estar cem por cento para encarar. - O homem barbudo concordou com a cabeça, e os dois saíram da trilha na direção do córrego que corria ali perto. Quando chegaram na clareira que rodeava o corpo d'água, sentaram na grama procurando recompor as forças. O anão conseguiu facilmente, massageando as pernas cansadas, mas Dom estava muito agitado para isso. Se levantou novamente e ficou em pé ao lado do riacho, observando a natureza animada que os cobria. Depois do que pareceram minutos de silêncio por parte dos membros da Aurora, ele finalmente voltou a falar.

 - Ela não merecia. - Disse o homem, melancólico. Wieder franziu a testa, se levantando. O amigo era geralmente uma pessoa animada e falante, e o anão esperava que aquele pouco característico clima ruim de desanuviasse conforme estivessem próximos de seu objetivo. Não parecia ser o caso.

 - Está falando de Sasha? - Perguntou ele, sentando ao seu lado. O contraste dos tamanhos se acentuou um pouco, parecendo um gigante e um banquinho. - Realmente, ninguém merecia apanhar como ela apanhou...

 - Não, não... - Interrompeu Dominic, pondo as mãos no bolso. Suspirou, como se algo estivesse preso em seu peito. - Quer dizer, também. Ela e a mãe. Stella queria apenas ajudar a guilda, e Sasha foi espancada por causa de suas ações. Ela ainda são jovens, Wieder. Com tanto tempo pela frente e coisas para fazer, um mundo inteiro as aguardando. - Parou um pouco, observando os peixes se agitarem no córrego. - Se alguém deveria sofrer, deveria ser um velho que nem eu, que já teve sua cota nesse mundo.

 O anão ficou calado por alguns segundos, sentindo que estavam tocando em um assunto um tanto quanto delicado para ele. - Perdão. Não entendi. - Disse, sem transpirar emoção.

 - Estou falando que já vivi o suficiente para dar a vida como completa. Quer dizer, às vezes me considero um homem afortunado. - Proclamou o homem, com os olhos distantes. - Fiz tudo que queria ter feito em minha juventude. Realizei sonhos loucos, vi lugares distantes, batalhei na guerra... - Ele se manteve alguns segundos em silêncio, como se suas memórias estivessem se manifestando em sua visão. - Teria me retirado para uma vida tranquila se Adam não tivesse me convocado para a Aurora. Um novo conjunto de sonhos te espera, disse ele. Heh. Quem dera que fosse verdade.

 - Ainda há tempo para isso. Você sabe, não? - Perguntou o menor, sentindo o incômodo crescer dentro de si. Alargou o colarinho com os dedos, como se a camisa fosse a culpada.

 - Não acho. - Admitiu Dominic. - Quando estávamos na Estrada Verde, disse a Koga que iria treinar com ele para nos sentirmos úteis na Aurora. Desde então eu empurrei isso com a barriga até perceber que não tinha mais energia para isso. Diferente de todos aqueles garotos, eu não tinha mais forças para me aprimorar e seguir em frente. Me senti uma figura parada no tempo. - Ele parou, mordendo a bochecha por dentro. - Logo, não adianta fingir que ainda sou um jovem e que tenho todo o tempo do mundo para seguir atrás de novas aventuras. Deveria deixar isso para as crianças. De quê adiantaria gastar meus últimos anos em uma busca infrutífera?

 - Dom... - Começou o outro, começando ficar realmente com raiva. Aquilo tudo era muito familiar. Estava ligeiramente trêmulo, e fechava as mãos em punhos tão apertados que as unhas cortavam a pele da palma. O companheiro se virou para ele, com uma expressão de profunda melancolia que era incapaz de se associar com o rosto sorridente que ele mantinha na Aurora.

 - Há um limite de idade para ter novos sonhos, Wieder. E já passamos dele faz algum tempo. - Para o anão, era como se o rosto do homem tivesse se transfigurado na face de seu próprio irmão. A memória preencheu o ambiente, o levando de volta para sua própria casa em Vertreit. As mesmas palavras foram ditas naquela lembrança, e isso o enfureceu de vez.

 Wieder não percebeu, mas já havia ativado sua pulseira. Um brilho amarelo tomou conta daquela clareira, e uma fumaça cinzenta trouxe um cheiro forte consigo. Quando Dominic voltou a abrir os olhos, percebeu o enorme sujeito de pedra à sua frente, inclinando em sua direção.

 - Não ouse vir com esse papo para cima de mim. - Disse o golem, com sua voz gutural saindo da fresta que era a boca. Estendeu um dedo e cutucou o homem em seu peito. - Não me venha desistir por causa de sua idade. É a saída dos covardes.

 - Ah, deve ser muito fácil para você, não é senhor rebelde? - Disparou o homem, também se enraivando. - Ficar propagando pensamentos revoltosos e exagerados para combater sua crise existencial e se sentir mais jovem. Sabe o que eu faço eu faço para pelo menos agir de forma despreocupada e animada com aqueles garotos? - Perguntou, afastando o dedo do anão com um safanão. - Eu bebo. Bebo para esquecer que já vivi mais do que deveria ter vivido, e muito mais do que tantas outras pessoas que mereciam no mínimo o dobro do que eu tenho hoje. Não é tão simples para o resto de nós.

 Os dois ficaram em silêncio, encarando um ao outro com olhares de reprovação. - Se quer tanto morrer antes de seu corpo, sinta-se à vontade. - Disse finalmente Wieder. - Fique aqui e procure chamar a atenção dos deuses para acabar com sua vida. Enquanto isso, eu vou tentar, não, vou conseguir realizar o que me resta de sonhos. - Completou, aproximando sua face de pedra perto da do companheiro. - Vou derrotar o que quer que tenha atacado Sasha, resgatar Stella e depois vou ajudar a Aurora a se tornar uma guilda de respeito, para o que meu nome não seja esquecido como tantos outros milhões de anões que faleceram no anonimato. - Parou de falar por alguns instantes, fitando aquele rosto triste e irritado. - Você não é assim, Dom. É melhor do que isso. Deixe de pensar na sua maldita idade e comece a olhar para a frente. - Ao dizer isso ele seguiu adiante, trombando com o ombro no de Dominic, e voltou à trilha. O homem apenas o encarou se afastar mas não se moveu, ficando sozinho com os animais silvestres.

 Quando voltou à trilha, o anão reativou a pulseira e voltou ao normal. Deu algumas pisadas na grama, procurando se readaptar aos membros menores. Tentou pensar no avanço que havia feito com os movimentos desde que se transformou pela primeira vez, mas estava muito irritado para isso. Olhou para trás, meio que esperando que Dominic aparecesse do meio das árvores para acompanhá-lo. Ele continuava, no entanto, fora de vista. Wieder suspirou, voltando a andar. A falta do companheiro, mesmo que silencioso, se notava em sua caminhada em direção ao topo da Montanha Branca. Se pegou pensando sobre o homem que havia confrontado na clareira do córrego. Aquele não eram Dom, o alegre bêbado que havia lhe dado as boas-vindas na chegada à Aurora, e que sempre parecia de bem com a vida. Só precisava de um tempo, concluiu ele. Sua conversa provavelmente havia lhe dado razão para refletir, o que era bom. A idade não poderia ser empecilho para pessoas que nem eles.

 No meio desses pensamentos, reparou que havia chegado ao cume da montanha quando seus pés encontraram uma superfície nivelada. Parou e encarou o ambiente à sua volta, esperando alguma diferença desde que havia estado ali há alguns dias. A floresta densa se abria em uma clareira grande e circular, cuja extremidade sul era tomada pela enorme construção. A Torre de Marfim se erguia imponente, no entanto era apenas uma das duas coisas naquela área que chamavam a atenção pelo grande tamanho. A outra era o gigantesco ente que aguardava à frente das portas do edifício.

 O ser chegava perto dos dois metros e cinquenta, com o rosto quadrado, membros compridos e uma camada de musgo verde cobrindo partes da pele cheia de raminhos. Estava muito perto de estar completamente nu, como todo ente, mas vestia uma capa roxa e prata que alcançava sua cintura. Ele tinha o capuz recolhido, deixando o topo de sua cabeça rachada desprotegida ao ar silvestre. Wieder se aproximou, de olhos bem atentos aos arredores. À primeira vista, não havia nada ameaçador.

 - Olá. - Disse o gigante, com a voz gutural que era natural à sua espécie. - Meu nome é Rohr. As árvores me disseram que você estava chegando. - Os entes conseguiam se comunicar com a natureza, mas isso não importava muito agora, pensou o anão. Não fora atacado no caminho, mesmo com a desvantagem do terreno. - Imagino que vocês tenham vindo aqui em busca da sua líder, mas peço que saia, por favor. Não desejo lutar.

 - Ah, sério? - Perguntou Wieder. - Não pareceu. Que eu saiba, sequestro e aquela nossa companheira quase morta onde eu almoço me soava como um convite. - O ente balançou a cabeça de forma negativa.

 - Realmente, foi um ato exagerado. Eu --

 - Ato exagerado? - Perguntou o membro da Aurora, dando alguns passos à frente. - Vocês a espancaram. Deixaram-na no nosso saguão como um maldito aviso, e ainda fugiram com nossa líder. - Ele parou a cinco passos do ente, tão alto que precisava levantar a cabeça dali mesmo. - Não descansaremos até acabarmos com vocês e salvarmos a senhora Stella.

 - Não deseja apenas... procurar uma forma não-violenta de resolver isso? - Rohr parecia implorar, levando as mãos à frente do rosto. - Não há como nos combater! Irão apenas sofrer nessa busca!

 - Sinto muito, mas irei me repetir. - Rosnou o anão. - Até que tenhamos a nossa líder de volta à nossa sede e você estejam presos em alguma prisão esquecida, não iremos desistir. - Ele olhou ao redor, procurando alguma armadilha. - Agora, onde está ela? Onde está Stella?

 - Você não encontrará ninguém aqui além de mim. - Disse o ente, mostrando o lugar ao redor.

 - Então qual o motivo de você estar aqui? - Perguntou Wieder. - Qual o motivo de nos mandarem limpar esses lugares? E onde está nossa líder? - Grunhiu ele no final.

 - Sinto muito, mas eu não posso te responder isso. - Foi o suficiente para que o anão estalasse os dedos das mãos, preparado para avançar.

 - Bem, então as coisas ficaram um pouco simples. Eu vou te derrotar por Sasha e depois arrancar respostas de você. O que acha?

 Rohr suspirou fundo, e os raminhos em seus ombros tremelicaram. - Bem, infelizmente acho que não há mais o que discutir. Você irá defender os seus companheiros, e eu farei o mesmo com os meus. - Ele o encarou de forma fria, com seus olhos amarelos em órbitas negras brilhando. - Apenas peço perdão que não ter conseguido te convencer.

 - Acredite, me sinto melhor assim. - Wieder ativou a pulseira, se envolvendo em um mar de luz. A miríade de sentimentos dentro dele pareciam querer explodir para fora, e aproveitar para esmurrar o adversário no caminho. E foi isso que o anão fez. Assim que se transfigurou em sua forma de golem, ele se adiantou e desferiu um potente soco no ente.

 Desorientado pelo brilho amarelo e pela fumaça, Rohr só viu Wieder se aproximar dele quando o contato já era inevitável. O punho de ronatto se chocou com seu rosto, o levando para trás. O membro da Aurora se reajustou desajeitadamente, preparando um novo golpe. Desta vez o ente conseguiu se proteger, segurando o punho que vinha em sua direção. O golem aplicou mais força, forçando a mão de madeira para baixo. Sabia que tinha, por enquanto, pouca mobilidade naquele corpo, portanto só lhe restava era o poder bruto.

 Seu punho forçou o caminho até o rosto do adversário, pressionando-o contra o chão. O anão sentiu um jorro de confiança crescer dentro de si. Era, sem dúvida, o mais forte da guilda. Tudo o que precisava era controle sobre seus poderes. E pelo visto estava dominando essa parte.

 Ainda pensava nisso quando Rohr lhe deu uma tesourada com as pernas, fazendo-o cair para trás. Seu corpo de pedra se chocou com um baque surdo na grama, e antes que percebesse o ente se pôs em cima dele e começou a socá-lo. Ele parecia ter percebido o problema de pouca mobilidade do golem, pois socava rapidamente em lugares diferentes. Cada golpe rachava um pouco do ronatto, desferindo uma dor forte para o membro da Aurora. Tentava se defender, mas era difícil acompanhar a velocidade do adversário. Se arriscasse, provavelmente teria o braço imobilizado e a situação ficaria pior. Enquanto isso, os socos continuavam.

 - EI! - Gritou uma voz à beira da clareira. O ente olhou para o lado, bem a tempo de ser derrubado por uma pedra do tamanho de sua cabeça. Ele tombou, e Wieder aproveitou o momento para se desvencilhar. Rolou para o lado voltando à forma de anão, desta vez lanhado e ensanguentado, e fitou ofegante o companheiro que havia chegado. Dominic estava ao seu lado, olhando para o gigante de madeira.

 - Mais gente desejando lutar quando não precisa... - Começou Rohr, se levantando com uma das mãos no joelho e arregalando o rosto. - Vocês não entendem! Nós somos os mocinhos!

 - Rapazinho, você vai precisar me explicar direito essa história. - Pediu o homem dando um passo à frente e suspirando fundo. Wieder olhou de novo para o ente, tentando entender como Dom havia notado que ele era um jovem. Talvez fossem pelos olhos muito brilhantes ainda, já que aquela espécie costumava ter a visão leitosa com o passar do tempo, ou sua agitação incomum. - Tudo que eu vi foram invasores que espancaram nossa companheira e sequestraram nossa líder.

 - Escute, eu sei que os métodos de Desaad são... controversos, mas vocês precisam entender! - Disse o ente com a voz chorosa. - Nós estamos nessa por um bem maior. Veja! - Ele mostrou a mão, a enorme palma coberta de musgo. - Eu não era desse jeito! Não era forte assim! O Culto Púrpura me abraçou e me deu o poder que eu precisava, e agora meus companheiros querem realizar os sonhos deles! Eu sei que eles estiveram errados ao atacar a sua guilda, eu sei! Mas--

 - E você vai deixá-los simplesmente agir dessa forma? - Interrompeu Dominic, indignado. - Se sabe que eles estão errados, faça algo! Se é tão grato à eles, tente impor limites à eles! Não fique apenas de braços cruzados! Se é realmente um companheiro, faça-os se tornarem pessoas melhores ao invés de ser um cúmplice em seus crimes! - O membro da Aurora deu mais um passo à frente, ficando cara a cara com o adversário, que recuou trôpego. Dom era alto, mas ainda assim precisava olhar para cima para encará-lo. - Ou acha que sonhos são tão importantes assim para se corromper?

 Por um breve instante, um traço de dúvida se manifestou nos olhos amarelos do ente. No entanto, ele de repente rugiu e desferiu um soco no homem, que foi arremessado de encontro às árvores da beira da clareira. - Cale a boca! Cale a boca!

 - Estou vendo o motivo de ter sonhado tanto com força, garoto. - Disse Wieder, se transfigurando rapidamente. - Dá pra ver que quando você não tem o que dizer, decide apelar para violência. - Rohr rugiu e tentou atacá-lo com um outro soco. O anão por sua vez se viu com uma ideia maluca. Ativou novamente a pulseira e voltou à sua forma diminuta em um instante. O golpe do outro varou os ares, tão forte que deslocou o ar. Só que não tinha ninguém ali.

 O membro da Aurora aproveitou e se transformou mais uma vez para desferir um gancho no queixo do adversário, jogando-o para longe com a força estrondosa do ataque. O ente caiu para trás, cuspindo um fluido verde e pastoso. Antes que pudesse se levantar, no entanto, uma sombra o cobriu. Olhou para cima e viu que Dominic estava saltando em sua direção, com uma moeda expandida em mãos. Ele esmagou o pescoço de madeira do adversário com o objeto, mantendo-o firme onde parou. Rohr grunhiu embolado, tentando se livrar. O homem se esforçava para detê-lo, mas já vira cenas assim antes. Não seria só com isso que deteriam aquele ser.

 Olhou para os lados, percebendo a enorme construção branca que se mantinha imponente e se viu com um plano. - WIEDER, VÁ PARA O TOPO DA TORRE. JÁ! - O anão ficou momentaneamente confuso, mas logo entendeu o que o outro queria. Demorou um pouco por causa da dúvida de deixar o companheiro sozinho, mas percebeu que era a única chance deles. Assim, correu para a Torre de Marfim, virando rapidamente um golem para abrir as ornamentadas portas de bronze.

 Enquanto isso, Rohr conseguia se livrar da moeda gigante. Ele jogou o objeto para o lado e na volta do movimento arremessou Dominic na direção da torre, onde se chocou com a parede branca. O impacto causou uma pequena fissura na construção, e a grama ao seu redor se manchou de vermelho pelo sangue que vazou. Ele era bem forte, pensou o homem. Aquilo definitivamente não era natural, nem mesmo para um ente.

 Não teve tempo para pensar em mais alguma coisa, pois Rohr já havia chegado até onde ele estava. Ele começou a desferir uma série de golpes, todos praticamente mortais para uma pessoa comum. No entanto, até mesmo um Yulliano não conseguia reagir. Os socos quebravam ossos, arrancavam dentes e deixavam o homem numa condição deplorável. Quando já era uma massa de sangue, o ente imprimiu sua cabeça contra a parede, quebrando-a e o jogando no interior da Torre de Marfim.

 O gigante ficou alguns segundos recuperando o controle, inspirando com força. Se lembrou do anão, e olhou ao redor para ver se o encontrava. - Ei, imbecil! - Disse uma voz gutural, vinda do alto. Quando olhou para cima, viu o enorme golem de ronatto o encarando do teto da torre. - Sua mãe nunca te disse que se deve respeitar monumentos históricos? - E com isso Wieder deu um passo à frente, flexionando os joelhos e caindo em direção ao adversário. O ente nem sequer teve tempo de reagir. O anão o acertou com os pés, esmagando seus ombros

 Rohr urrou, com a cobertura de madeira esmigalhada. Sofreu um poderoso soco no rosto, quase lhe retirando os sentidos. Tomou mais, e outro, todos tão fortes que se aproximavam de deformar sua face. Os pés dele se agitaram, derrubando o golem no chão. Virou o corpo para lhe dar uma cotovelada, mas Wieder havia voltado ao corpo de um anão.

 - Aqui! - Exclamou Dominic, ainda consciente. Ele apontou para as pedras quebradas da Torre de Marfim, esparramadas ao redor do buraco. O companheiro ficou de pé e correu até elas, enquanto que o ente tentava se levantar com dificuldades. Quando Rohr conseguiu se apoiar no joelho, no entanto, tomou um golpe no queixo que o fez cair novamente.

 - Bem resistente você, não? - Perguntou o golem com uma pedra gigante nas mãos enquanto que o adversário se remexia no chão. Levantou os braços e jogou o destroço no peito de Rohr, que urrou novamente. Ele tentou se remexer, mas Wieder o pisoteou, quebrando a rocha branca e a cobertura de madeira abaixo. O ente tentou mais uma vez reagir, mas havia chegado ao seu limite. Tombou a cabeça para trás, desacordado.

 - Ah, você não vai. - Exclamou o anão. Ele se ajoelhou ao lado do adversário, segurando seu rosto nas mãos. - Antes de desmaiar, me diga onde está Stella. Entendeu? - Ele virou a face do outro, tentando fitar aqueles olhos amarelos e rodopiantes. - Onde ela está!? - Rohr cuspiu a seiva verde, grunhindo algumas palavras inteligíveis. Wieder se aproximou, tentando escutar.

 - Aoena Ortaris. - No segundo em que ele disse aquilo, sua capa se moveu. O golem se afastou, alarmado, e viu que o ente foi envolvido em um redemoinho de tecido. Pensou em reagir, mas o espanto era mais forte. Aquilo era magia.

 De repente a agitação cessou, e a capa roxa e prata se engoliu, levando junto consigo Rohr. Wieder esperou alguns segundos para se recompor daquilo. Olhou para os lados, como se esperasse uma nova surpresa. Nada. Se levantou para olhar melhor, mas a floresta parecia ignorá-lo. Desconfortável, ele se virou para ver como estava o companheiro.

 O anão se aproximou de Dominic, voltando à sua forma natural. O homem estava de costas no chão, meio que escondido no interior escuro e vazio da Torre de Marfim. Ele riu quando o companheiro se aproximou, cuspindo um pouco de sangue. - Estou realmente velho. - Disse ele com dificuldades. - Nos meus tempos no exército, conseguia pelo menos levantar depois de uma porrada dessas. Era normal... fazer isso. Sorte que eu continuei me mantendo em forma, mas acho que meus limites diminuíram um pouco desde então.

 - Ah, cale a boca. - Disse Wieder, se sentando em uma pedra caída. - Ainda está vivo, não? Portanto, vamos nos lamentar pela destruição da fachada dessa magnífica torre. - Ele olhou o buraco na parede, uma mácula em uma construção tão antiga e histórica.

 - Heh. - Tossiu o homem, adotando uma postura séria. - Conseguiu alguma informação sobre Stella?

 - Não. - Admitiu o companheiro, desviando o olhar. - Ele se materializou para longe antes que pudesse me responder. Espero que os outros tenham melhor sorte.

 - Materializar para longe? O que aconteceu? - Perguntou o homem, arregalando os olhos.

 - Pelo visto estamos lidando com magia. - Respondeu Wieder, sentindo falta de algo para fumar.

 - Hm. - Dominic encarou o teto, ficando alguns segundos perdido em seus pensamentos. - Isso não é bom. Péssimo, na verdade. - Ele ficou mais algum tempo em silêncio. - Aquele ente era apenas um garoto, e se viu metido nesse mundo traiçoeiro de magia. Alguém o enganou direitinho e o levou para esse caminho. Não posso deixar que algo assim aconteça, pelo menos com os meninos da Aurora.

 - Ah, então arranjou um motivo para viver? - Perguntou o anão, sorrindo. O companheiro virou sua cabeça para encará-lo.

 - Ainda não concordo com você. Ainda acho que sonhos são para os jovens. Só que por causa disso que eles precisam de conselhos. - Ele parou, voltando a fitar o teto. - E se eu puder pelo menos ajudar os nossos garotos, terei um bom final de vida.

 - Ah, deixe de melancolia e derrotismo. - Avisou Wieder, saltando para o chão cheio de reboco. - Apenas trate de descansar um pouco. Vai ser um pouco difícil te levar de volta à Aurora, portanto trate de se preparar. - Ele deixou o amigo e saiu da Torre de Marfim, observando a floresta à sua volta. A natureza continuava alegre e barulhenta, alheia à batalha que havia acontecido em seu próprio seio.

 O anão saiu da torre, passando perto do lugar onde Rohr havia desaparecido. Estavam lidando com algo um pouco acima do nível deles. Mais do que as habilidades físicas daquele grupo, o problema principal era de onde eles haviam conseguido tal poder. Havia magia ali. E isso nunca significava algo bom, mesmo com os magos membros da Aliança. A maioria era independente, e havia alguns que estavam definitivamente ligados com os inimigos do outro lado da Fronteira. Precisavam descobrir mais sobre o tal Culto Púrpura.

 Uma lufada de vento balançou sua barba, rodopiando em direção às árvores. Wieder olhou para os céus, pensando nos desafios à frente. Adversários fortes haviam sequestrado sua líder, e parecia haver algo a mais por trás deles. Precisavam ficar mais poderosos, isso era uma urgência. Ele próprio havia se acomodado quando entrou na Aurora, achando que estava preparado. Mentira. Quase perdeu para o ente. E, por mais forte que fosse Rohr, ele não era nada comparado às guildas mais famosas, ocupada por pessoas tão extraordinárias que nem precisariam suar para derrotar aquele ente. Dominic pelo visto havia sido alguém nesse naipe, mas um humano não conseguiria manter esse nível tão alto a menos que treinasse arduamente por toda a vida, e recuperar era uma tarefa quase impossível.

 Fechou seu punho, observando sua pulseira. Entre todos os membros da Aurora, ele era quem estava mais perto de se tornar verdadeiramente forte. O ronatto, por mais que não fosse um material tão resistente assim, lhe dava uma tremenda vantagem. Diferente dos outros, ele não precisava se esforçar para adquirir um poder grande. Ele já estava ali no golem, só precisaria ter controle. E, se possível, descobrir alguns segredos daquele artefato que havia obtido.

 Precisava se tornar mais forte. Precisava ajudar a guilda a crescer. Seus sonhos dependiam disso, e não os deixaria escapar tão fácil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário