sexta-feira, 4 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 21 - Desconfiança


AURORA
CAPÍTULO 21: DESCONFIANÇA

Stella Alba apoiou o cotovelo no balcão, passando os dedos nos olhos para afastar o sono. Estava no saguão do Conselho Local, esperando ser atendida. Era um aposento redondo, com portas de vidro cobrindo todo perímetro sul. Havia uma mesa também circular de madeira nobre no centro, cercada de poltronas e coberta por uma série de jornais e relatórios de guildas famosas. Uma parede cortava a sala na ponta norte, com um grande quadro de missões disponíveis à esquerda e vários balcões de atendimento na direita. A líder da Aurora era uma das únicas almas vivas no recinto, apoiando levemente a cabeça no vidro para descansar os olhos. O sono a tomaria de imediato, se não tivesse sido chamada.

 - Senhora Stella. - Disse uma voz aguda e rouca. A mulher acordou de sobressalto, piscando com força. À sua frente, vinha um dos vários elfos que trabalhavam ali, este recurvado e enrugado, vestido com um longo manto verde. Seu nome era Mahalyn, um dos funcionários mais antigos do Conselho Local e amigo de longa data da Aurora. Deveria ter quase quinhentos anos, demonstrados por seu cabelo branco e quebradiço e o cajado de prata que carregava para se apoiar. Ele era tão encurvado que sua corcunda era mais alta que sua cabeça, e tal posição da coluna o deixava bem lento. Assim, demorou tanto tempo para chegar ao balcão de atendimento que a outra teve tempo de espantar completamente o sono, ajeitando o rabo-de-cavalo em seguida. - Vejo que está exausta.

 - Nem me fale. - Disse ela, sorrindo sem mostrar os dentes. - Como se não bastasse a cachoeira de missões perigosas que tive de fazer meus garotos passarem, dois deles me vieram ontem à noite com Recons adultos, pedindo pra ficarmos com os animais. - Stella se ajeitou na cadeira. - Eles quase morderam o dedo de Lyra. Ela está lá na guilda, tentando domesticá-los.

 - Por todos os deuses. - Se assustou Mahalyn, puxando uns papéis da bolsa que trazia. - São criaturas perigosas, senhora Stella. Tem certeza de que vai mantê-las em sua sede?

 - Bem, pelo menos os meninos que os trouxeram disseram que iam arcar os custos. - O que era meia-verdade. Amanda tinha feito essa promessa, puxando um esperneante Dalan consigo. - Isso inclui o rapaz que vamos ter que contratar para cuidar dos bichos.

 - Bem, espero que tenha cuidado. - Disse o velho elfo, levantando o braço para entregar os documentos que carregava. - Pelo menos, lhe trago boas notícias. Aqui estão os recibos e pagamentos de suas últimas missões.

- Ah, obrigada. - Suspirou aliviada a mulher, finalmente com a recompensa nas mãos. Agora tinham a prova no Conselho de que haviam cumprido as famigeradas missões encaminhadas, além de receber os polpudos honorários. Um excelente começo para a reconstrução da guilda. Mahalyn, por sua vez, hesitou.

 - Tem certeza de que não vai pedir nenhuma missão por essa semana? - Perguntou ele, indicando com a cabeça o quadro do outro lado da parede. Se arrastou para uma mesinha de pinho, onde guardaria os recibos que ficariam no Conselho Local.

 - Vou dar uma semana de descanso para os garotos. - Declarou Stella, recolhendo os documentos em sua bolsa. - De qualquer jeito, espero algo novo da próxima vez que vier aqui. Se tudo der certo, avançaremos de nível! - O elfo sorriu em concordância, também esperançoso. A Aurora havia sido rebaixada de forma constante desde que Adam faleceu, e essas missões poderiam significar um novo sopro para a retomada da guilda. Sua líder acreditava piamente nisso e sorria tranquilamente enquanto saía, olhando de relance para a mesa repleta de jornais.

 Passou os olhos pelas manchetes, distraída, e teria seguido adiante se uma matéria sobre o fim dos Cruzados, uma pequena guilda de Wildest, não tivesse lhe chamado a atenção. Pegou o jornal e sentou em uma poltrona, acomodando-se para ler. Ali dizia que os Cruzados haviam entrado em falência, devido à grande competição que tinham das milícias em sua cidade. Stella se entristeceu, embora não estivesse surpresa. Milícias e mercenários estavam em ascensão, oferecendo preços mais acessíveis e dispensando a burocracia que as guildas oficiais exigiam. Era uma questão de tempo até que essa nova moda chegasse em Helleon. A líder da Aurora folheou o jornal em busca de alguma informação sobre esta possibilidade, mas se deparou com uma outra matéria.

 Expedicionários se encontram desaparecidos na Floresta de Hyannien. Estranho, pensou a mulher. Haviam realizado uma missão ali havia pouco tempo. Continuou a ler o artigo, que dizia que um grupo de oficiais da Aliança perdeu o contato quando se aproximaram da Torre de Marfim, o mesmo lugar em que Wieder, Marcus e Dominic haviam derrotado alguns bandidos.

 Stella estreitou os olhos e sentiu uma pontada fria no estômago, como se o corpo já antecipasse o que a mente ainda viria a descobrir. Terminou de vasculhar aquele jornal, puxando um próximo, desta vez um dedicado às cidades costeiras. Mais um texto ali chamou sua atenção de forma agourenta. Navio não identificado encontrado à deriva perto de Thomas Galvan. Também haviam feito uma missão para o prefeito ali. O que estava acontecendo?

 A líder da Aurora olhou para trás, como se os funcionários elfos estivessem a encarando suspeitos. Não encontrou ninguém, mas isso não a deixou mais calma. Mais jornais, desta vez de Wildest e um próprio de Vertreit, com textos na Língua Comum e no dialeto anão. A milícia do Sol Dançante estava comercializando com um grupo desconhecido e mineradores humanos foram encontrados mortos no rio Velunis. O que significaria tudo aquilo?

 Stella apertou as mãos, sentindo o nervosismo aflorar. Aqueles acontecimentos pareciam desconexos uns dos outros, mas não para ela. Haviam realizado missões em cada um daqueles lugares, todos em ordens do prefeito. Estaria acontecendo algo ali? Seria tudo uma coincidência? Não parecia, dizia o frio em seu estômago. Era como se já estivesse esperando algo assim desde após o jantar com Visandre. Nunca souberam exatamente o motivo pelo qual ele pedira aquelas missões. Seriam apenas favores políticos, ou algo a mais estaria ocorrendo, com a Aurora de cúmplice?

 A mulher se levantou, caminhando apressada até a saída. De qualquer jeito, tinha que se livrar dessas dúvidas. E só havia um lugar e pessoa que poderiam solucioná-las.

 Enquanto isso, na sede da Aurora, havia um sentimento geral de alívio pelo cumprimento das missões recentes. Só que isso não significava descanso. A maior parte da guilda estava na grande área gramada na parte de trás do edifício, entretidos na construção dos estábulos para os recém-chegados. Dalan e Amanda, por sua vez, estavam bem afastados do prédio, bem no fundo do quintal. Suados e sujos com o sangue das carnes que haviam trazido, os dois alimentavam os Recons, mantendo-os longe de qualquer confusão.

 - Eu não acredito que você me convenceu a financiar tudo isso. - Disse o rapaz com a voz sofrida, recolhendo um bife do balde que carregava. Haviam pago pela comida, pela obra e qualquer custo adicional naquelas tarefas, como tinha ordenado Stella. Seu Recon acompanhou o alimento com os olhos brilhantes, esperando ansiosamente a vez de comer. - Você some com o dinheiro de todo mundo ou é só comigo mesmo? - Perguntou ele, tentando limpar um pouco do sangue que se espalhava na camisa branca.

 - Você reclama demais. - Declarou a garota de bate-pronto. Estava sentada na grama com as pernas cruzadas, vestida com um macacão azul, uma camisa vermelha e o cabelo preso em um rabo-de-cavalo. Seu animal se mantinha sonolento à sua frente, aproveitando o sol fraco do dia. - É só dinheiro.

 - É fácil para você dizer! - Soltou o garoto, jogando a carne para seu Recon, que a abocanhou em pleno ar. - Eu não tinha nem duas moedas para esfregar uma na outra! E agora não vou tê-las por um bom tempo!

 - Ei, você só precisa me pagar quando puder. - Disse a companheira, encolhendo os ombros. Para Dalan, isso era pior do que ficar sem dinheiro. Como não tinha nada na carteira, Amanda havia se voluntariado a pagar o total, desde que o rapaz ficasse lhe devendo sua parte. Isso contrariava um pouco com o discurso dela de que dinheiro era apenas um bem material, concluiu ele irritado, mas não havia muito o que fazer. O Recon da companheira se agitou, e ela segurou seu arreio. - Calma aí, Dalila. Você tem que ficar aqui até terminarmos o seu estábulo.

 - Dalila? - Riu o garoto, se ajoelhando para conferir as cordas que prendiam as criaturas ao chão. - Como você sabe que é uma fêmea? Virou veterinária por acaso? - Amanda lhe deu a língua.

 - Tenho cinquenta por cento de chances de acertar. - Disse ela. O Recon de Dalan por sua vez empurrou o garoto com sua cabeça, pedindo por mais comida. O rapaz olhou para seu balde, percebendo que estava vazio.

 - Espera aí, Sabre. Já vou pegar mais. - A companheira sorriu abertamente, e ele corou de imediato, percebendo a besteira que havia falado.

 - Sabre? - Zombou ela, soltando uma risada alta. - O quê, escolheu o nome em uma reunião de crianças de cinco anos?

 - É um nome maneiro. - Murmurou o garoto, desviando o olhar.  Ele confirmou que as cordas de seu animal estavam bem presas ao chão e se levantou para voltar ao prédio, pegando o balde de comida.

 - Aproveita e vê se encontra Sophie. - Pediu Amanda enquanto que o garoto se afastava. - Ela sabe cuidar de animais. Talvez possa revesar com a gente. - Até então, os Recons se mantinham amigáveis apenas com seus donos, sendo uma ameaça para o restante da Aurora. Dalan concordou com a cabeça, mas sentiu que seria uma tarefa difícil. Não via Sophie desde que voltou à guilda. Se perguntou se alguém a havia ajudado com seus problemas, mesmo com os apelos de Dominic.

 Atravessou o gramado com o balde na mão, se aproximando do restante dos companheiros. Eles estavam divididos em grupos pequenos, lixando tábuas de madeira e pregando umas nas outras. Wieder estava sentado na mesa que ficava perto da antiga oficina, com uma planta desenhada por ele mesmo estendida na superfície. Julie o olhava por cima do ombro, com uma expressão pensativa e a mão no queixo.

 - Talvez precisemos serrar nossa própria madeira. - Disse o anão, coçando a barba. - Não adianta ficar indo e voltando à marcenaria toda hora.

 - Pode ser, mas não temos ferramentas para isso. - Retrucou a garota, olhando para um armário velho, construído bem ao lado da parede. - Além do mais, tudo o que temos está bem quebrado. Dominic me disse que só temos dois martelos, e um deles está com a cabeça frouxa.

 - Bem, isso não pode ficar assim. - Disse distraidamente Wieder, levantando a cabeça para ver Dalan se aproximando. - Dalan, meu rapaz! Precisava falar com você! - Disse ele animadamente, recolhendo sua planta. - Estou indo renovar nossas ferramentas. Como sou uma boa pessoa, vou pagar a metade, tudo bem?

 - Ótimo... - Respondeu o garoto, suspirando pesadamente. Mais gastos. Julie andou até ele, parecendo preocupada.

 - Dalan, você viu Sophie em algum lugar? - Perguntou ela, coçando o pescoço e olhando ao redor, como se esperasse que a irmã estivesse ali.

 - Não, eu até iria perguntar isso para você. - Disse o rapaz, ficando um pouco preocupado. Tal sentimento parecia ser compartilhado pela companheira, que contorceu o rosto. - Ela não dorme no seu quarto?

 - Sim, mas tem voltado tarde e acordado muito cedo, eu acho. - Confessou Julie, pensativa. - Lyra disse que a viu hoje de manhã, mas desde então ela sumiu. - Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, tentando imaginar onde a garota estaria. - Bem, vou ver se Koga precisa de ajuda com as tábuas. Até mais tarde, Dalan. - Disse ela, colocando a mão no ombro do companheiro enquanto saía. Ele por sua vez se dirigiu até a porta do prédio, adentrando o edifício.

 Enquanto andava pelos corredores, viu Sasha e Marcus saírem do quarto da garota. Eles olhavam um para o outro, aparentemente no fim de uma conversa. - Entendo. Foi besteira minha pensar que ele estaria deste lado da Fronteira sem algum estardalhaço. - Disse ela.

 - Eu te avisei, não? Minhas fontes só me alertaram sobre alguns soldados por aqui, mas nada que preocupasse. - Conversou o rapaz, despreocupado. Eles viram o companheiro se aproximando, que corou envergonhado.

 - Dalan. - Disse prontamente Sasha, e os dois se encaminharam até o quintal. O garoto por sua vez desviou o olhar, constrangido. Parte dele se perguntou o que estavam fazendo no mesmo quarto. Estaria acontecendo algo ali? Os dois estariam tendo um caso? Seu rosto ficou vermelho enquanto pensava nisso, tão absorto que nem mesmo reparou que estavam falando sobre Zemopheus, algo que só repararia naquela noite, deitado em sua cama.

 Caminhou até a cozinha para em seguida encher seu balde com a carne que descansava ao sal. Quando terminou de recolher os bifes, a porta do saguão se abriu.

 - MARCUS! - Gritou Stella, adentrando a sede com pisadas fortes. Dalan se assustou com o estrondo da porta, e a líder se aproximou dele. - Viu Marcus por aí? - Perguntou, com a voz alguns decibéis mais baixa.

 - Ele e-está lá fora. - Responde um Dalan nervoso, dando um passo para trás. A mulher ofegou, colocando as mãos na cintura. - Algum problema?

 Ela ficou calada por alguns segundos, recobrando a respiração. Pensou novamente no que ia fazer, sabendo de todas as consequências que aquilo traria caso as coisas dessem errado. No entanto, não havia opção. Era isso ou deixar com que a Aurora fosse tratada como idiota. - O prefeito está escondendo alguma coisa da gente. - Disse ela finalmente. - Tentei falar com ele agora, mas ele decidiu não me receber mais. Só nos resta uma alternativa.

 - O quê? - Perguntou o rapaz, mas Stella se afastou, saindo da cozinha. Ela parou na porta, colocando a mão no batente e girando um pouco a cabeça, encarando o rapaz por trás do ombro.

 - Vamos invadir a prefeitura.

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