sábado, 26 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 26 - A sombra de cabelos azuis


AURORA
CAPÍTULO 26 - A SOMBRA DE CABELOS AZUIS

 O mesmo sol que iluminava imponentemente a floresta de Hyannien também brilhava em cima do vale rochoso que separava as regiões montanhosas de Felinyr e Gargabear, divididas pelo pálido rio Venulis. A vista aérea do Vale das Cachoeiras era quase homogênea, com milhares de rochas cinzas se esparramando pela névoa das quedas d'água. Essa visão se seguia por vários quilômetros, acompanhando a natureza errática do córrego lá embaixo, abastecido pelas diversas cataratas que o enchiam em seu caminho.

 Neste cenário desolado e praticamente estático, era difícil ver alguma coisa diferente do cinza e imóvel natural. No entanto, dois vultos escuros andavam no horizonte, subindo uma encosta através da estrada de terra batida que acompanhava o lado norte do vale, quase uma centena de metros acima do Venulis. Eles chegaram ao ápice daquela elevação, e a névoa se agitou um pouco para que fossem identificados. Eram dois jovens membros da Aurora, caminhando lado a lado naquele ambiente mórbido. A garota usava um casaco grená de grandes botões brancos na cintura, que chegava quase aos seus joelhos, completando com uma meia-calça também branca. Já o rapaz com o tapa-olho na órbita esquerda ao seu lado vestia uma camisa vermelha por baixo de um casaco preto e aberto no peito, junto com uma calça também negra. Eram Julie e Marcus, que caminhavam sem trocar uma palavra.

  Os dois mantinham o silêncio firmemente e, de fato, sequer chegavam a se olhar. A garota estava com a cabeça virada para o outro lado, com o rosto fechado e mordendo o interior da bochecha. O companheiro por sua vez apenas olhava para frente, e sua irritação era manifestada apenas por um leve franzir das sobrancelhas. Eles não haviam conversado desde que chegaram ao Vale das Cachoeiras, tudo devido a um incidente há menos de dois dias.

 Os membros da Aurora haviam acabado de sair de Helleon, atravessando a noite chuvosa em uma carruagem que os levaria até Vertreit, onde descansariam para seguir viagem. Dividiam um aposento no Requianno pelo dinheiro curto, um quarto de madeira com duas camas. Marcus se preparava para dormir, mas uma agitada Julie andando pelo quarto atrapalhava seus planos. - Droga, droga... - Repetia ela por entre os dentes, às vezes parando para socar a parede.

 - Se continuar assim, estará exausta quando chegarmos ao nosso objetivo. - Alertou o rapaz, se sentando na cama. A companheira se apoiou em uma escrivaninha, apertando com força as bordas do móvel. Ela ficou em silêncio, com o rosto retorcido e nervoso.

 - É tudo culpa de Sasha. - Proclamou ela em voz baixa, se afastando com truculência. Começou a remexer em sua mala, enquanto que Marcus juntava as mãos em cima das coxas.

 - Perdão. Não entendi como isso poderia ser culpa da pessoa que quase foi morta em nosso próprio saguão. - A cena voltou aos olhos de Julie, que os fechou com raiva.

 - É essa mania dela de sempre procurar confusão. - Confessou a garota se levantando novamente, bastante agitada. - Se tivesse nos chamado, talvez as coisas não estariam tão ruins. Talvez a senhora Stella não tivesse sido sequestrada. Só que não, ela precisou mostrar que era forte... - Ela chutou a mala, suspirando fundo e colocando as mãos na cintura.

 - É o que ela faz. - Disse o rapaz, ainda sem demonstrar nenhuma emoção. - Sasha tem feito mais missões do que qualquer um de nós da Aurora há anos. Se tinha alguém que poderia resolver o problema, era ela. 

 - Só que isso não deu certo, não? - Soltou Julie, abrindo os braços. - Acabamos provocando o que quer que tenha atacado ela. Se tivéssemos sido um pouco mais cautelosos, estaríamos todos seguros.

 - E pobres. - Acrescentou o companheiro, estreitando minimamente os olhos. - Essa sua forma não ajudou nada nos últimos anos. Ficamos olhando sem reação as pessoas saírem da guilda e os nossos cofres esvaziando, até que chegamos a esse beco sem saída. - Ele se remexeu na cama, ficando de frente à garota. 

 - Desculpa se a minha forma não foi a mais perfeita. - Disse ela, dando um passo à frente. - Só que todos esses problemas na Aurora começaram a surgir quando o senhor Adam morreu. Precisávamos nos recompor e garantir que não perdêssemos mais ninguém! Como está quase acontecendo!

 - Só que, além de não termos nos recompondo, metade da guilda está fora de forma para uma missão de verdade. - Marcus levou as mãos cruzadas à boca, como se evitasse mostrar sua expressão. - Nós nos acomodamos quando não podíamos. E podemos pagar muito caro por isso agora.

 - E agora isso virou completamente culpa minha? - Julie voltou a abrir os braços, e sua voz ficou um pouco mais aguda. - Tudo que fiz foi pensar em nossos companheiros. Em Koga, Sophie e todos os outros que precisavam de ajuda!

 - Não disse que era culpa sua. - Se apressou a dizer o rapaz. - Só que, querendo ou não, você simboliza esse sentimento de--

 - Covardia? - Perguntou a garota, engolindo em seco. - Eu sei o que Sasha acha de mim. - Continuou com a voz mais baixa. - E sei que ela deve ter te contado.

 - Ela não me falou disso. Eu concluí sozinho. - Julie imediatamente ficou com o rosto corado, para em seguida encarar enfurecidamente o companheiro. Pensou seriamente em bater nele, mas continuou parada onde estava. Inspirou profundamente antes de virar as costas, puxando com violência seus pijamas. Marcus arrumou as cobertas e se deitou na cama, sem olhar novamente para a garota. 

 Os dois depois dessa cena seguiriam a viagem em silêncio, procurando não se encararem. A primeira vez que fizeram isso no próprio Vale da Cachoeira, quando Sophie parou e olhou para a encosta montanhosa que subia à esquerda da estrada.

 - É aqui. - Disse ela, puxando um sopro de ar. O companheiro também cessou seu movimento, tirando as mãos do bolso. Os pedregulhos cinzentos que os cercavam pareciam iguais aos tantos outros que haviam passado, mas acreditou nela. - A Caverna da Garganta Cortada é mais à frente. 

 - Então acho que devemos começar a pensar em algum plano. - Sugeriu ele, se esticando na ponta dos pés para tentar olhar melhor através da névoa. - Você que conhece o lugar, tem algo em mente?

 - Eu tenho. - Disse uma voz nova atrás deles, na direção do Venulis. - Eu derrubo vocês e os sequestro. - Os garotos da Aurora se viraram assustados para ver uma fada voando um pouco acima da descida íngreme das rochas. Ela tinha o cabelo curto e azul-escuro, coberto pelo capuz de uma capa roxa e de adornos prateados. A roupa cobria uma veste complicada, composta por um top decotado de linho roxo-escuro que terminava bem abaixo dos seios, de onde saía uma traje colado, marrom e transparente, com uma longa tanga ornamentada das cores da capa no quadril. A encapuzada estava com os braços cruzados, e sorria com a boca fechada de modo ameaçadoramente, efeito ampliado pelos olhos semi-fechados.

 Antes que os garotos pudessem fazer alguma coisa ela mergulhou para frente, dando tempo apenas para que Marcus notasse que ela era muito mais rápida do que o possível. Após concluir mentalmente essa frase a mulher girou no ar e pisou com os dois pés em seu peito, jogando-o para longe. - Ei! - Gritou Julie antes que a fada surgisse à sua frente.

 - Um de cada vez. - Ao dizer isso ela socou a outra na boca, fazendo com que a membra da Aurora caísse na névoa do precipício à beira da estrada. A garota se agarrou desesperadamente às rochas, mas elas se soltavam ao menor toque. Julie rolou alguns metros em puro terror, mas conseguiu segurar com os dois braços um pedregulho particularmente grande. Respirou um pouco para se recompor e olhou para cima, dezenas de metros afastada da estrada e com a visão completamente encoberta pela neblina. Imediatamente ergueu a mão, segurando uma pedra acima de sua cabeça. Tinha um longo caminho a subir, e precisava fazer isso no menor tempo possível.

 Enquanto isso, Marcus lutava. Ele havia se levantado rapidamente depois do golpe, mas na sequência fora atacado novamente. A fada tentou socá-lo em alta velocidade pela direita, mas ele bloqueou o golpe com o antebraço instintivamente. O chute esquerdo mal se formou e o rapaz já havia dado um passo para o lado, desviando o golpe por um triz. Naquele momento viu o soco canhoto vindo e levantou a mão para bloqueá-lo, mas quando piscou ele não estava mais lá. Ao invés disso uma cotovelada foi desferida em seu ombro, fazendo-o tropeçar para trás.

 O que era aquilo, perguntou o garoto para si mesmo enquanto se equilibrava. Levantou a cabeça e conseguiu se abaixar bem a tempo, esquivando de um gancho. Ajeitou o corpo para se defender do chute que vinha se aproximando, mas ele novamente sumiu. Enquanto Marcus arregalava os olhos tentando entender o que estava acontecendo, a fada se adiantou e segurou sua cabeça com a pequena mão, afundando-a nas pedras. Sentiu o sangue manchar o cinza abaixo de si e rangeu os dentes, afastando a adversária com um safanão.

 - Você parece ter alguns problemas. - Riu ela voltando aos céus, fazendo suas asas vibrarem. O membro da Aurora confundiu aquela voz por alguns instantes, parecendo não-natural em seus ouvidos. Era como se estivesse um pouco mais aguda e rápida do que o esperado, o que era bem estranho. Nunca havia visto aquela fada.

 No entanto, em uma fração de segundo iluminado seu cérebro conseguiu entender o que estava acontecendo. A questão era que os movimentos e habilidades da fada eram extremamente parecidos com os de Sasha. Marcus havia treinado tanto tempo ao lado da companheira que os dois conseguiam até mesmo prever suas ações, e a semelhança que a adversária compartilhava com a amiga estava enganando seu cérebro, fazendo-o reagir a ataques que não chegavam nem mesmo a serem formulados. Cuspiu com raiva no chão, irritado com sua atitude de iniciante.

 - Bem, acho que ainda não me apresentei. - Disse a encapuzada, subindo e se misturando à névoa forte que cobria o Vale das Cachoeiras. Sua voz ecoava pela região, se destoando da memória de Sasha que continuava fixa na mente do rapaz. - Meu nome é Jyll, e sou uma membra do Culto Púrpura. - Proclamou ela, colocando a mão no peito. Não houve resposta por parte do garoto, o que a fez continuar. - Você não nos conhece? Somos aqueles que invadiram sua guilda, mataram sua amiga e sequestraram sua líder. - Marcus novamente não respondeu, mas franziu as sobrancelhas. A fada não conseguiu ver aquilo à distância, mas riu de qualquer jeito. - Ela morreu, não foi? Estávamos nos perguntando se nosso líder tinha se descontrolado um pouco.

 - Não ache que irei te responder. - Avisou o rapaz para ganhar tempo, freando sua vontade de olhar para o lado em busca da companheira que havia caído no precipício. O sangue pingava de sua nuca, tornando mais difícil sua concentração. Jyll, do outro lado, abriu ainda mais o sorriso.

 - Bem, acho que é melhor irmos aos negócios, não? - Ela balançou as asas, descendo lentamente alguns palmos. - Nós gostaríamos de fazer um acordo com sua guilda. Vocês realizam umas missões para a gente, e nós não matamos sua líder. - Jyll tombou a cabeça para o lado, estreitando os olhos de forma ameaçadora enquanto que sorria diabolicamente. - Que tal?

 - Eu tive uma ideia melhor. - Disse a voz de Julie, finalmente terminando de subir a encosta. Ela inspirou uma bela porção de ar assim que chegou na estrada, fitando a encapuzada com uma expressão séria e irritada. - A gente acaba com você aqui e pegamos nossa líder de volta. O que acha desse plano?

 - Oooh... - Zombou a fada, colocando a palma da mão na boca enquanto sorria maleficamente. - Acho que vai ser um pouco difícil. Eu copiei os poderes de sua amiga de cabelos azuis, sabia? É o que eu faço. - Ela vibrou a mão em supervelocidade, para demonstrar seu ponto. - Não seria um... insulto à memória de sua companheira?

 - Olha... - Começou a garota, sorrindo com o canto da boca enquanto que estalava os dedos. - Eu sempre quis uma chance de enfiar alguns argumentos à força na cabeça de Sasha. - Ela terminou e flexionou minimamente os joelhos, pondo as mãos à frente do rosto. - E você vai ter que servir.

 Marcus aproveitou e invocou seus poderes um pouco acima da adversária, conjurando uma pequena e momentânea esfera negra que explodiu para todos os lados. Jyll foi atingida pelo impacto e caiu de costas na estrada, dando chance para que Julie se adiantasse. A garota pulou em cima dela, prendendo seus braços com as pernas e agarrando sua cabeça com as duas mãos, impelindo-a contra a terra batida. A fada libertou os membros superiores com sua super velocidade e socou violentamente as costelas da membra da Aurora com os dois punhos. O sangue espirrou pelos dentes rangidos da outra, que desafrouxou o aperto.

 - Julie! - Alertou o rapaz enquanto que a companheira era atirada para o lado pela fada. Jyll virou com as costas para a cima e disparou contra Marcus, agarrando suas canelas. Ele tentou se desvencilhar, mas quando percebeu já estava no ar, sem controle. O chão se afastava em velocidade, e o garoto teve apenas alguns segundos para decidir o que faria. Sua posição era extremamente desfavorável, pois se a fada o largasse ele não poderia fazer nada. Não podia permitir que ficassem a uma altura muito alta, e só havia um meio de se livrar daquela armadilha.

 O garoto apoiou o queixo em seu peito, observando a fada voar para os céus enevoados. Esticou a mão e conjurou uma nova esfera negra, desta vez bem perto da cabeça da adversária. Ela estourou, fazendo com que Jyll gritasse e segurasse a cabeça, largando-o no processo. O rapaz se viu em queda livre, e teve tempo apenas para tentar ajeitar o corpo. Reparou que estava mais distante do chão do que pensava. Seriam quinze, vinte metros? Não chegou a chutar algum valor pois logo se chocou violentamente contra as pedras, e a escuridão tomou conta de seus pensamentos.

 - MARCUS! - Gritou Julie, se levantando enquanto segurava a costela. Iria correr até o companheiro quando a fada pousou à sua frente, lívida. O capuz estava rasgado pela metade e o lado direito de sua cabeça estava descoberto, mostrando um rosto mergulhado em sangue, oriundo de um ferimento perto da têmpora. Ela limpou o líquido que se derramava pela bochecha, com os olhos arregalados e furiosos.

 - É uma pena que ele tenha morrido antes de brincarmos mais um pouco - Disse a adversária, trêmula. - Então você vai ter que servir. - A membra da Aurora pensou em se mover, mas quando percebeu estava no chão, com a fada em cima dela desta vez. O que se seguiu foi uma profusão de socos rápidos e pesados, mirando cada pedaço do tórax superior que estava exposto. Julie pensou em revidar, mas não conseguia libertar seus braços. Se viu à mercê de Jyll, que a espancava sem trégua. Cada golpe a deixava cada vez mais  perto do desmaio, trincando ossos e cortando a pele. Com o tempo, pareceu que toda a eternidade se concentrava naqueles segundos de tortura. Não havia um começo para aquela dor, pois ela parecia estar com a garota desde sempre. Era uma parte de si, que existia desde o início e a acompanharia até o cúmulo.

 De repente, os golpes pararam. A garota abriu um dos olhos, sentindo que um inchaço no rosto a impedia de abrir o esquerdo. A dor a deixava praticamente cega, vendo apenas um vulto através da névoa. Foi levantada pelo colarinho, deixando a face ensanguentada da fada a encará-la, tão próxima que podia contar seus cílios. - Eu estou surpresa que vocês tenham achado que iriam conseguir alguma coisa vindo aqui. Quer dizer, nós do Culto Púrpura não somos os arruaceiros que devem enfrentar todo dia. Estamos lutando por algo maior. - Ela trouxe o rosto de Julie mais perto, ficando lado a lado com sua bochecha. - Todos nós queremos alguma coisa. Alana quer ressuscitar a família. Rohr esperava ficar mais forte, algo que conseguiu. Já eu... - Jyll sorriu, levando a mão ao pescoço da adversária e agarrando um tufo de cabelos. - Eu quero aprender. Quero ter todo o conhecimento desse mundo, ser capaz de responder a qualquer pergunta. Como por exemplo, qual é a exata relação entre a resistência oriunda da Yullian e o treinamento físico de uma pessoa? - Ela puxou o tufo, fazendo com que a garota rangesse os dentes. - Você quer me ajudar nisso?

 - JULIE! - Gritou uma voz no meio das pedras. A fada se assustou, largando a membra da Aurora no chão. Marcus havia se arrastado para fora das pedras em que havia caído, completamente ensanguentado. Curioso, pensou ela. Esperava que o rapaz tivesse morrido. - USE SEU PODER, JULIE! AGORA!

 A garota por sua vez continuava no chão, ainda sofrendo com os ferimentos que havia recebido. Pensou em obedecer ao companheiro, mas logo viu que seria um ato inútil. Por mais enevoado que estivesse o ambiente, seu brilho não iria fazer nada. Era como se acendesse uma vela em um dia ensolarado. Precisava de escuridão para provocar uma consequência drástica para a adversária, e a noite estava horas distante deles. - Não dá! - Berrou a loira para o garoto, com uma Jyll em pé e curiosa entre eles. - Isso só--

 - EU VOU FICAR BEM, APENAS FAÇA LOGO! - Não é possível, pensou Julie. Ele deve ter batido a cabeça. Não conseguia compreender o que suas palavras tentavam clamar. Se iluminasse sua mão, nada iria acontecer. Cerrou os dentes e pensou em descontar a frustração que sentia no rapaz, mas foi levantada por Jyll, que a apoiou nos braços para que ficasse em pé.

 - Tem alguma surpresa a mais para me mostrar, querida? - Perguntou a fada, sorridente. - Será que eu devia experimentar esse tal poder? A supervelocidade estava me animando tanto...

 Pelos deuses, sua vaca burra. Seu cérebro deve ter vazado junto com o sangue que encharcava sua cabeça. Marcus havia apenas ficado maluco, porque sabia que seus poderes não serviriam de...

 Oh.

 - SE PROTEJA, MARCUS! - Gritou ela, fazendo um esforço para levantar a mão à frente de seu rosto. - EU VOU ACABAR COM ELA AGORA! Grunhiu os dentes, procurando encarar a adversária bem nos olhos, o que foi atingido com louvor.

 - Vocês me divertem, sabiam? - Admitiu Jyll, tombando a cabeça para o lado. A encapuzada segurou os dedos da mão estendida da garota e os torceu para trás, quebrando-os com alguma dificuldade. Julie gritou e caiu de joelhos, ainda com o braço contido pela fada. - Sabe de uma coisa? Vou matar vocês com seu tal poder salvador. - Ela se ajoelhou ao lado da membra da Aurora e colocou as duas mãos ao redor de sua cabeça. Um brilho multicolorido se dispersou na névoa, e a loira caiu nas pedras cinzas. A adversária se levantou, olhando para a própria mão. - Bem, eu realmente sinto alguma coisa. O que me acha de--

 O que ela achava jamais seria conhecido pelos outros, pois Marcus havia se levantado e a agarrado por trás, segurando-a pelos ombros. - Agora já chega. - Grunhiu ele, esmagando as asas translúcidas que saíam das costas da capa com seu corpo. - Hora de terminar com isso.

 - Ora. Então sabemos por onde começar. - Ela estendeu a mão por trás da cabeça pelo lado direito, apontando a palma para o rosto do adversário. Ele por sua vez apenas fechou os olhos e virou o rosto, fazendo com que o brilho branco se tornasse inútil. Jyll ficou imediatamente desconcertada, pois havia visto a luz e o aperto continuava. Levou a mão à face, procurando alguma mudança na pele. O garoto aproveitou para girar em torno de seu eixo, fazendo com que a outra ficasse de frente ao precipício.

 Na frente deles, uma pequena esfera negra e instável se agitava. - Normalmente alguém diria alguma frase engraçadinha ou algo do tipo, mas eu não sou assim. - Disse Marcus, apoiando o queixo na capa adornada da fada, mantendo pressão. - Só que eu tenho uma coisa a dizer no lugar. - O redemoinho circular de energia escura começava a perder o controle. Pequenas pedras chacoalhavam no chão, e tiras da roupa transparente e colada de Jyll se rasgavam e voavam para o centro negro. - Você não é Sasha.

 Com isso, a esfera explodiu. A fada apenas abriu a boca, com o sangue espirrando de sua garganta. A força havia sido tão monstruosa que deslocou a névoa ao redor, gerando uma esfera de impacto que arremessou as rochas mais próximas para os lados. A encapuzada e Marcus foram jogados para longe, na direção da Garganta Cortada, enquanto que Julie rolava pela estrada de terra pela força da explosão. Quando ela parou de se mover, arfou e esticou a coluna em agonia. O céu pareceu girar acima dela, ainda agitado pelo enorme deslocamento de ar que havia varrido aquele lugar.

 A garota tentou imediatamente se por de pé, mas uma dor estridente no ombro a fez cair de joelhos. Respirou efusivamente e levantou novamente, segurando a região ferida com os dedos quebrados. Olhou ao redor, tentando identificar onde o companheiro havia parado. - Marcus? - Perguntou, com sua voz ecoando pelo vale. Ele estava muito próximo do epicentro, pensou nervosa. O temor tomou conta de seu coração, e a membra da Aurora avançou para além da estrada, procurando alguma coisa diferente no meio do cenário que voltava a ficar silencioso e morto.

 Não soube por quanto tempo procurou, mas o desespero já havia tomado conta dela. Ele não podia ter... Ele... Nem chegou a terminar a frase, tamanha era a sua agonia com aquele pensamento. Por favor, Marcus, orava ela. Não nos abandone. Você também não. Uma parte de sua mente tentava lhe dizer que era impossível ele ter sobrevivido, mas ela a ignorou. Só acreditaria quando visse o corpo, mas deuses, por favor que não haja um corpo. Por favor.

 Se viu pensando em Sasha. Marcus era tão agitado quanto ela, só que conseguia ser ainda mais suicida. Os dois sempre pareciam ir contra sua vontade de se proteger primeiro antes de andar para frente. Agora eles poderiam estar... Estar... Tímidas lágrimas começaram a verter de seus olhos, se lembrando de todos os membros da guilda que haviam saído em busca da senhora Stella. Droga, pensou ela enquanto fungava. Se ti
vessem escutado o que tentava dizer, estariam todos no saguão, comendo juntos. Era tão covarde por pensar primeiro na segurança deles? Era isso o que diziam?

 Passou a mão no rosto para limpar as lágrimas, e naquele momento viu uma agitação roxa no horizonte. Sem pensar correu naquela direção, a única pista que havia recolhido naquele mar cinza e enevoado. Se desequilibrou pelas pedras pequenas e subiu as grandes, com o coração batendo tão forte que parecia vibrar tal qual as asas da fada.

 Não percebeu que havia tropeçado até se aproximar do chão, levantando instintivamente o braço direito à sua frente. Os ossos quebrados estalaram e ela gritou de dor, parando um segundo para segurar os dedos partidos. Grunhiu e se levantou pela terceira vez, tentando se manter acordada. Não poderia desistir. Tinha que chegar a Marcus.

 Continuou trôpega até identificar o companheiro. Ele jazia de costas nas rochas, com o traje em trapos. Julie se aproximou dele, caindo de joelhos ao seu lado. Seu rosto estava ensanguentado, e havia assombrosas lacerações em seus braços. A garota colocou o dedo em seu pescoço, rezando por uma pulsação. Nada. Pressionou com mais força, já com os olhos marejados. Deuses, por favor, pediu enquanto que o largava e colocava o ouvido em seu peito. Não deixem mais ninguém da Aurora partir. Não sabia o que faria. Não sabia se iria aguentar.

 Chorava baixinho quando ouviu o singelo batimento cardíaco. Marcus estava vivo. Julie riu e soluçou ao mesmo tempo, abraçando o companheiro. Ele não havia os abandonado, e se tudo desse certo nem Sasha ou qualquer outro dos membros da Aurora. Ficariam vivos.

 E isso era tudo que importava para ela, pensou enquanto finalmente desmaiava.

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