terça-feira, 29 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 27 - Sem saída

 Dalan estava escrevendo, esboçando pequenos pensamentos desconexos em um pergaminho amarrotado. Ele aguardava no convés fedorento e escuro do Sete Chaves, navio pesqueiro que o levaria até a ilha de Thomas Galvan. O tal barco balançava fortemente com as ondas, fazendo o tinteiro rolar na pequena mesa que foi confiada ao garoto. A pena exteriorizava as dúvidas da missão que ele e Koga teriam pela frente, onde enfrentariam algo completamente desconhecido. Tudo o que sabiam era que haviam sequestrado a líder da Aurora e que Sasha havia quase morrido no confronto com os tais invasores. Não tinham noção de quantas pessoas os aguardavam nem se a senhora Stella estaria realmente na ilha. No entanto, não havia alternativa. Thomas Galvan era a única pista que tinham, e restava a Dalan apenas escrever em busca de alguma revelação divina.

 O convés deu uma chacoalhada particularmente mais pesada, finalmente derrubando o tinteiro. O líquido grosso e negro se derramou pelas tábuas de madeira do assoalho, escapulindo para os andares inferiores. O rapaz suspirou e largou a pena, amarrotando o pergaminho em seguida. Não havia conseguido elaborar nenhum plano, pensou ele enquanto jogava o objeto em um lixo próximo, o que desconfiava ser consequência de estar muito nervoso para isso. Esse fato o deixava ainda estressado, e se viu necessitado de um ar. Se levantou e desviou dos barris de peixe abarrotados, se guiando pela luz que vazava pelas frestas para alcançar a escadaria.

 Quando subiu, avistou diversos marinheiros correndo de um lado para o outro. O mar começava a ficar revolto, necessitando da atenção da tripulação. Acompanhava um homem carregando um balde nas mãos quando foi agarrado pelos ombros, quase caindo no chão. - Que agitação, hein Dalan? - Era Koga, que sorria animado.

 - Sim... - Respondeu o rapaz, se desvencilhando educadamente e caminhando até a lateral do Sete Chaves para observar as ondas. Na verdade era uma desculpa para evitar o contato com o companheiro, que de alguma forma conseguia se manter alegre e falante mesmo depois de Sasha ter sido atacada. Isso se aglutinava na grande lista de coisas que irritavam Dalan naqueles dias, forçando o garoto a manter distância para não se estressar de forma mais contundente.

 Decidiu se apoiar no batente do navio e encarar o horizonte, alheio ao restante da tripulação. Ele havia passado metade de sua vida acompanhando o pai em suas viagens no mar, portanto estava acostumado à certas revoltas das ondas. Essa em particular não parecia algo que pudesse derrubar a embarcação, mas precisava de uma atenção especial. O garoto passou os olhos pela agitação azul, visão tão normal para ele quanto dormir.

 No entanto, havia algo ali que era definitivamente incomum. Um ser encapuzado e mascarado estava flutuando por cima da água, de braços cruzados e a capa roxa e prata dançando pelo vento. Dalan se esgueirou no batente, achando que seus olhos estavam lhe pregando uma peça.  Ao fazer isso o navio sofreu um baque terrível, se balançando perigosamente perto de cair no mar.

 O rapaz quase foi derrubado para fora, se jogando para trás para evitar o ato. Caiu de costas na madeira molhada e salgada, perigosamente perto de ser pisoteado pelos marinheiros agitados. Koga se ajoelhou ao lado dele no momento em que uma onda se chocava com a lateral da embarcação, espirrando água para o alto. - Acho melhor irmos para dentro! Vamos deixar eles cuidando do navio! - Gritou ele, tentando levantar o companheiro. Dalan no entanto continuou onde estava, de olhos bem abertos para o mastro. O outro garoto virou a cabeça naquela direção e ficou sem palavras.

 De forma exponencial, toda a tripulação do Sete Chaves se aquietou e olhou para o mesmo lugar que os membros da Aurora fitavam. A figura encapuzada estava flutuando acima deles, em posição imponente. A própria agitação das ondas ficou em segundo plano, parecendo não mais perturbá-los. A máscara do invasor era agora mais nítida, uma carapaça metálica e cinza sem espaços para um nariz ou qualquer meio aparente para respiração. Um serrilhado vertical coberto de um material negro e relevado cobria o espaço da boca, e seus olhos eram espaços pequenos e escuros. O mascarado esperou um pouco, absorvendo toda aquela atenção. De repente acenou com as mãos, e um estrondo foi ouvido debaixo do navio. Rapidamente a água começou a invadir o Sete Chaves pelos fundos, desesperando os marinheiros e quebrando o encanto do encapuzado.

 Dalan e Koga se viraram, procurando alguma forma de evitar que a água entrasse. Era inútil, no entanto. Torrentes começaram a ascender pela escada do convés, borrifando para todos os lados. As ondas voltaram ao seu trabalho, se aproveitando da estrutura fragilizada do navio. Haviam gritos e correria, como se o fim do mundo tivesse se anunciado. A tripulação tentava arduamente fazer alguma coisa, qualquer coisa, mas o Mar de Cellintrum já havia se decidido. Ele engoliu a embarcação com voracidade, sumindo com os resquícios e os marinheiros, nos quais se encontravam os membros da Aurora. A agitação continuou por algum tempo, mas não havia mais nenhum alvo. A superfície do oceano se manteve desolada, sem nenhuma alma viva à vista.

 Em outro lugar, alguns dias depois do afundamento do Sete Chaves, um homem encapuzado fitava três cristais roxos e brilhantes com uma expressão pensativa. Estava em um pequeno aposento natural, uma espécie de sala em uma galeria subterrânea. Os objetos possuíam três metros de altura, e pulsavam em curtos períodos de tempo para iluminar aquele recinto.

 O nome do homem era Desaad, o líder do grupo que havia confrontado a Aurora, o Culto Púrpura. Seu semblante era de profunda meditação, com a ponta da capa caindo entre suas sobrancelhas, escondendo o cabelo muito loiro. Ele observava os cristais, opacos e em um lento movimento de rotação, como se escondessem alguma coisa. Sua mente trabalhava com possibilidades, a única coisa que podia contar naquele deserto de incertezas que havia se tornado sua missão. Tudo que sabia era que não podia demonstrar suas dúvidas para sua refém.

 - Pelo visto estamos sendo atacados. - Disse uma voz familiar atrás dele. O homem suspirou aliviado, se virando para Zaulin, o ser alto e mascarado que havia estado em Thomas Galvan desde então. Desaad o abraçou, voltando a sorrir.

 - Pode-se dizer que sim. - Comentou ele, observando o trio de cristais. Caminhou até o mais próximo, encostando a mão em sua superfície. - Teve a mesma sorte?

 - Eu consigo sentir o cheiro de uma Marca de guilda em um corpo morto a quilômetros. Foi ridículo perceber que estavam se aproximando da ilha. - Respondeu o mascarado, cruzando os braços. - Eram da tal Aurora. Assumi que estavam me procurando, e decidi atacá-los antes que aportassem.

 - Você não usou de seus poderes de forma espalhafatosa, usou? - Perguntou o líder de forma seca e lenta, recolhendo o braço. O mascarado apenas continuou olhando para frente, sem dar resposta. - Você sabe que precisamos nos manter escondidos dos magos da Aliança. Uma demonstração de poder dessas poderia ter sido detectada por um de seus membros, e eles estariam em nosso encalço antes que pudéssemos fazer algo a respeito. - Zaulin continuou calado, e Desaad voltou a encarar os cristais, estreitando os olhos com irritação.

 - Vim para cá pensando que iriam tentar resgatar a líder deles. - Recomeçou o outro depois de alguns instantes de silêncio. - Alguém chegou até aqui?

 - Não, mas imagino que não deva demorar muito tempo. - Confessou o homem, passando a mão pelos cabelos por baixo do capuz. - Imaginava que nosso comitê de boas-vindas fosse o suficiente para que estivessem em nossa mão. Pelo menos não alertaram as autoridades, do jeito que eu previ. Só que não podemos nos dar ao luxo de esperar.

 - Tem algo em mente? - Perguntou Zaulin, virando a cabeça. O líder pensou um pouco, tendo algumas informações a mais para trabalhar com a chegada do companheiro. Olhou para os cristais, símbolos da derrota dos outros membros do Culto Púrpura. Isso não poderia ficar assim.

 - Quero a cabeça deles. - Ordenou com a voz sem emoção. - Vá até a sede deles e me traga três corpos. Um para cada um de nossos colegas derrotados. Imagino que seja um bom para eles quando acordarem.

 - O plano de usá-los foi desfeito, então? - Questionou o outro.

 - Não, eu gosto da ideia em ter uma guilda registrada para fazer coisas que não podemos fazer das sombras. - Admitiu Desaad, levantando um pouco as sobrancelhas. - Só que devemos ter total controle sobre eles, ou não nos adiantará de nada. Portanto, se parecerem rebeldes, mate todos e destrua aquela sede. Penso em uma forma de acobertar isso depois.

 - Entendido. - Disse o mascarado, se virando para sair do aposento com a capa esvoaçando. O homem continuou onde estava, iluminado pelos pulsos roxos dos cristais. Em algum lugar daquela galeria, a líder da Aurora estava aprisionada, sem saber que seus subordinados estavam condenados. Pois Zaulin era um monstro, um ser muito mais poderoso do que parecia, até mesmo mais forte que o próprio Desaad. E agora ele estava a caminho de Helleon, e traria de volta corpos. Será que deveria contar isso a ela? Ver o desespero se apossar de seus olhos, e seus gritos de súplica? Aquela cena imaginária fez seu coração bater mais forte, e um sorriso se formou em seus lábios.

 De repente, ele balançou a cabeça para desfazer aquela sensação. Controle-se, ordenou a si mesmo. Havia muito em jogo para desperdiçar agindo de forma inconsequente, se deixando levar por suas vontades mundanas. Um passo em falso o levaria à ruína, e precisava se manter atento a toda hora.

 Afinal, estava lidando com demônios.

AURORA
CAPÍTULO 27: CONDENADOS

 A chuva ameaçava voltar a castigar Helleon. Nuvens carregadas haviam estacionado nos céus, e trovões longínquos deixavam os habitantes atentos. Eles caminhavam pelas ruas agitadas, se queixando do instável clima tropical que parecia próximo de lhes dar mais um presente. Um garoto que trabalhava na estação voltada aos mais humildes da cidade, localizada na zona oeste, comentava com um amigo sobre os bons dias de sol que haviam aproveitado. Ele carregava as malas da guilda local, levando-as até a carruagem que a tal Aurora havia alugado. Quando entrou no veículo, pareceu estar em um hospital da Fronteira. Dois homens, um adulto e outro apenas um rapaz, estavam deitados nos bancos, cobertos de ferimentos. O funcionário deixou as bagagens em um canto para sair de fininho, enquanto que uma garota loira na janela conversava com os companheiros do lado de fora. 

 - Prometo voltar o mais cedo possível. - Disse Julie para Amanda e Wieder, que aguardavam na rua. Ela tinha o rosto inchado, e o corpo estava coberto por diversas ataduras. Sua mão estava apoiada no batente, imobilizada por causa dos dedos quebrados. 

 - Volte quando tiver condições de lutar. - Pediu Wieder, falando um pouco mais alto para ser ouvido no meio de toda aquela agitação de Helleon. - De qualquer forma, ainda vamos esperar aqui algum tempo. Precisamos esperar que Koga e Dalan voltem de Thomas Galvan, ou seremos obrigados a ir até lá ver o que aconteceu.

 - Vocês acham que... - Começou a garota, mas Amanda a interrompeu.

 - Não adianta pensar nisso agora. - Seu rosto exalava o sofrimento que sentia com a falta de notícia dos outros companheiros, mas precisava confiar neles. - Você está com a carta de Sophie?

 - Sim. - Respondeu a outra, se remexendo na cadeira. A irmã gêmea havia saído de Tinyanga quando soube que as condições de Sasha e Lyra haviam melhorado, e estava voltando do vilarejo naquele momento. - Peço só que vocês cuidem dela. Não estamos lidando com bandidos comuns.

 - Não se preocupe. - Tranquilizou o anão. Um apito agudo cortou os ares, e o motorista correu até sua cabine. - Agora vá e cuide de Dom e Marcus. Vamos aguardar um pouco na sede antes de decidir o que faremos. 

 - Está bem. - Concordou o rosto sofrido de Julie. A carroça começou a se mover, e ela ficou encarando os companheiros até que o veículo fez a curva. Amanda e Wieder prenderam a respiração em uníssono, sabendo que agora a situação estava nas costas deles.

 Saíram em silêncio para a rua, cada um preso em seus próprios pensamentos. Foi apenas quando uma voz o chamou que foram trazidos de volta à realidade. Se viraram para o lado, avistando Sophie cavalgando um dos Recons da guilda. Estava com a roupa um pouco amarrotada pela longa viagem, pontuada por pequenos raminhos que também encontravam ninho em seus curtos cabelos.

 - Estava pensando em você. - Disse Amanda, deixando que a outra se aproximasse. Dalila, a réptil que estava servindo de montaria, rosnou baixinho ao fazer isso. - Precisamos nos reunir na sede. Já.

 - Sim, mas... - Ela olhou para os lados, vendo que apenas a companheira e o anão estavam ali. - Onde estão os outros? Aqueles que saíram em missão?

 A outra garota passou a mão pelo braço, pensando em como responder à amiga. Wieder, no entanto, foi quem se adiantou. - Sua irmã levou Dominic e Marcus para Tinyanga. Só que... - Ele parou por alguns instantes, respirando fundo. - Koga e Dalan ainda não voltaram.

 O rosto de Sophie ficou branco. - C-como assim? - Perguntou ela, olhando de um para o outro. - Eles já deveriam ter chegado não? S-será que...

 - Não se apresse. - Pediu o anão, estendendo a mão para acalmar a agitada garota. - Eles dependem de navios para chegar em Thomas Galvan. Talvez não tenham conseguido uma ida ou uma volta. - A companheira não parecia acreditar muito nisso, mas se aquietou.

 - Vamos só voltar para a sede por enquanto. - Disse Amanda, passando a mão pelos cabelos. Os três seguiram pelas ruas de Helleon, com os transeuntes se afastando pelo enorme réptil que caminhava com os membros da Aurora. Sophie retorcia as mãos na lombada do bicho, completamente nervosa. Seu coração batia como as asas de um beija-flor enquanto que ela rezava aos deuses para que protegessem seus companheiros.

 Andaram em silêncio até se aproximarem da praça em frente à sede. Amanda se virou para eles, parecendo decidia. - Acho que é melhor eu ir para Thomas Galvan enquanto que vocês ficam aqui caso Dalan e Koga voltem. Vou conferir a situação deles.

 - O quê? - Perguntou Wieder, parecendo indignado. - Se eles foram realmente atacados, acha que vai conseguir lidar com o problema sozinha? - Sophie fez uma careta, torcendo ainda mais as mãos.

 - Vocês estiveram viajando ou lutando nesses dias. Eu descansei no mesmo lugar. - Explicou a garota, virando uma esquina. - E não se preocupem, eu acho que consigo...

 Ela não terminou de falar, ficando com os olhos arregalados na direção da sede da Aurora. Wieder e Sophie a acompanharam, e perceberam uma figura encapuzada na frente dos portões de madeira. Ele vestia um capuz que fazia parte de uma capa roxa e prateada, e sua face estava protegida por uma máscara com um curioso serrilhado na boca.

 - Três cabeças serão entregues ao meu líder hoje. E vocês três irão contribuir com isso. - Disse o mascarado com uma voz gutural. Mesmo àquela distância de quase vinte metros, os pelos da nuca dos membros da Aurora se eriçaram. Havia algo em seu tom que assustaria até mesmo os mais corajosos. Tudo isso fazia com que sua ameaça soasse tão concreta que já parecia realidade.

 Já estavam todos mortos.

sábado, 26 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 26 - A sombra de cabelos azuis


AURORA
CAPÍTULO 26 - A SOMBRA DE CABELOS AZUIS

 O mesmo sol que iluminava imponentemente a floresta de Hyannien também brilhava em cima do vale rochoso que separava as regiões montanhosas de Felinyr e Gargabear, divididas pelo pálido rio Venulis. A vista aérea do Vale das Cachoeiras era quase homogênea, com milhares de rochas cinzas se esparramando pela névoa das quedas d'água. Essa visão se seguia por vários quilômetros, acompanhando a natureza errática do córrego lá embaixo, abastecido pelas diversas cataratas que o enchiam em seu caminho.

 Neste cenário desolado e praticamente estático, era difícil ver alguma coisa diferente do cinza e imóvel natural. No entanto, dois vultos escuros andavam no horizonte, subindo uma encosta através da estrada de terra batida que acompanhava o lado norte do vale, quase uma centena de metros acima do Venulis. Eles chegaram ao ápice daquela elevação, e a névoa se agitou um pouco para que fossem identificados. Eram dois jovens membros da Aurora, caminhando lado a lado naquele ambiente mórbido. A garota usava um casaco grená de grandes botões brancos na cintura, que chegava quase aos seus joelhos, completando com uma meia-calça também branca. Já o rapaz com o tapa-olho na órbita esquerda ao seu lado vestia uma camisa vermelha por baixo de um casaco preto e aberto no peito, junto com uma calça também negra. Eram Julie e Marcus, que caminhavam sem trocar uma palavra.

  Os dois mantinham o silêncio firmemente e, de fato, sequer chegavam a se olhar. A garota estava com a cabeça virada para o outro lado, com o rosto fechado e mordendo o interior da bochecha. O companheiro por sua vez apenas olhava para frente, e sua irritação era manifestada apenas por um leve franzir das sobrancelhas. Eles não haviam conversado desde que chegaram ao Vale das Cachoeiras, tudo devido a um incidente há menos de dois dias.

 Os membros da Aurora haviam acabado de sair de Helleon, atravessando a noite chuvosa em uma carruagem que os levaria até Vertreit, onde descansariam para seguir viagem. Dividiam um aposento no Requianno pelo dinheiro curto, um quarto de madeira com duas camas. Marcus se preparava para dormir, mas uma agitada Julie andando pelo quarto atrapalhava seus planos. - Droga, droga... - Repetia ela por entre os dentes, às vezes parando para socar a parede.

 - Se continuar assim, estará exausta quando chegarmos ao nosso objetivo. - Alertou o rapaz, se sentando na cama. A companheira se apoiou em uma escrivaninha, apertando com força as bordas do móvel. Ela ficou em silêncio, com o rosto retorcido e nervoso.

 - É tudo culpa de Sasha. - Proclamou ela em voz baixa, se afastando com truculência. Começou a remexer em sua mala, enquanto que Marcus juntava as mãos em cima das coxas.

 - Perdão. Não entendi como isso poderia ser culpa da pessoa que quase foi morta em nosso próprio saguão. - A cena voltou aos olhos de Julie, que os fechou com raiva.

 - É essa mania dela de sempre procurar confusão. - Confessou a garota se levantando novamente, bastante agitada. - Se tivesse nos chamado, talvez as coisas não estariam tão ruins. Talvez a senhora Stella não tivesse sido sequestrada. Só que não, ela precisou mostrar que era forte... - Ela chutou a mala, suspirando fundo e colocando as mãos na cintura.

 - É o que ela faz. - Disse o rapaz, ainda sem demonstrar nenhuma emoção. - Sasha tem feito mais missões do que qualquer um de nós da Aurora há anos. Se tinha alguém que poderia resolver o problema, era ela. 

 - Só que isso não deu certo, não? - Soltou Julie, abrindo os braços. - Acabamos provocando o que quer que tenha atacado ela. Se tivéssemos sido um pouco mais cautelosos, estaríamos todos seguros.

 - E pobres. - Acrescentou o companheiro, estreitando minimamente os olhos. - Essa sua forma não ajudou nada nos últimos anos. Ficamos olhando sem reação as pessoas saírem da guilda e os nossos cofres esvaziando, até que chegamos a esse beco sem saída. - Ele se remexeu na cama, ficando de frente à garota. 

 - Desculpa se a minha forma não foi a mais perfeita. - Disse ela, dando um passo à frente. - Só que todos esses problemas na Aurora começaram a surgir quando o senhor Adam morreu. Precisávamos nos recompor e garantir que não perdêssemos mais ninguém! Como está quase acontecendo!

 - Só que, além de não termos nos recompondo, metade da guilda está fora de forma para uma missão de verdade. - Marcus levou as mãos cruzadas à boca, como se evitasse mostrar sua expressão. - Nós nos acomodamos quando não podíamos. E podemos pagar muito caro por isso agora.

 - E agora isso virou completamente culpa minha? - Julie voltou a abrir os braços, e sua voz ficou um pouco mais aguda. - Tudo que fiz foi pensar em nossos companheiros. Em Koga, Sophie e todos os outros que precisavam de ajuda!

 - Não disse que era culpa sua. - Se apressou a dizer o rapaz. - Só que, querendo ou não, você simboliza esse sentimento de--

 - Covardia? - Perguntou a garota, engolindo em seco. - Eu sei o que Sasha acha de mim. - Continuou com a voz mais baixa. - E sei que ela deve ter te contado.

 - Ela não me falou disso. Eu concluí sozinho. - Julie imediatamente ficou com o rosto corado, para em seguida encarar enfurecidamente o companheiro. Pensou seriamente em bater nele, mas continuou parada onde estava. Inspirou profundamente antes de virar as costas, puxando com violência seus pijamas. Marcus arrumou as cobertas e se deitou na cama, sem olhar novamente para a garota. 

 Os dois depois dessa cena seguiriam a viagem em silêncio, procurando não se encararem. A primeira vez que fizeram isso no próprio Vale da Cachoeira, quando Sophie parou e olhou para a encosta montanhosa que subia à esquerda da estrada.

 - É aqui. - Disse ela, puxando um sopro de ar. O companheiro também cessou seu movimento, tirando as mãos do bolso. Os pedregulhos cinzentos que os cercavam pareciam iguais aos tantos outros que haviam passado, mas acreditou nela. - A Caverna da Garganta Cortada é mais à frente. 

 - Então acho que devemos começar a pensar em algum plano. - Sugeriu ele, se esticando na ponta dos pés para tentar olhar melhor através da névoa. - Você que conhece o lugar, tem algo em mente?

 - Eu tenho. - Disse uma voz nova atrás deles, na direção do Venulis. - Eu derrubo vocês e os sequestro. - Os garotos da Aurora se viraram assustados para ver uma fada voando um pouco acima da descida íngreme das rochas. Ela tinha o cabelo curto e azul-escuro, coberto pelo capuz de uma capa roxa e de adornos prateados. A roupa cobria uma veste complicada, composta por um top decotado de linho roxo-escuro que terminava bem abaixo dos seios, de onde saía uma traje colado, marrom e transparente, com uma longa tanga ornamentada das cores da capa no quadril. A encapuzada estava com os braços cruzados, e sorria com a boca fechada de modo ameaçadoramente, efeito ampliado pelos olhos semi-fechados.

 Antes que os garotos pudessem fazer alguma coisa ela mergulhou para frente, dando tempo apenas para que Marcus notasse que ela era muito mais rápida do que o possível. Após concluir mentalmente essa frase a mulher girou no ar e pisou com os dois pés em seu peito, jogando-o para longe. - Ei! - Gritou Julie antes que a fada surgisse à sua frente.

 - Um de cada vez. - Ao dizer isso ela socou a outra na boca, fazendo com que a membra da Aurora caísse na névoa do precipício à beira da estrada. A garota se agarrou desesperadamente às rochas, mas elas se soltavam ao menor toque. Julie rolou alguns metros em puro terror, mas conseguiu segurar com os dois braços um pedregulho particularmente grande. Respirou um pouco para se recompor e olhou para cima, dezenas de metros afastada da estrada e com a visão completamente encoberta pela neblina. Imediatamente ergueu a mão, segurando uma pedra acima de sua cabeça. Tinha um longo caminho a subir, e precisava fazer isso no menor tempo possível.

 Enquanto isso, Marcus lutava. Ele havia se levantado rapidamente depois do golpe, mas na sequência fora atacado novamente. A fada tentou socá-lo em alta velocidade pela direita, mas ele bloqueou o golpe com o antebraço instintivamente. O chute esquerdo mal se formou e o rapaz já havia dado um passo para o lado, desviando o golpe por um triz. Naquele momento viu o soco canhoto vindo e levantou a mão para bloqueá-lo, mas quando piscou ele não estava mais lá. Ao invés disso uma cotovelada foi desferida em seu ombro, fazendo-o tropeçar para trás.

 O que era aquilo, perguntou o garoto para si mesmo enquanto se equilibrava. Levantou a cabeça e conseguiu se abaixar bem a tempo, esquivando de um gancho. Ajeitou o corpo para se defender do chute que vinha se aproximando, mas ele novamente sumiu. Enquanto Marcus arregalava os olhos tentando entender o que estava acontecendo, a fada se adiantou e segurou sua cabeça com a pequena mão, afundando-a nas pedras. Sentiu o sangue manchar o cinza abaixo de si e rangeu os dentes, afastando a adversária com um safanão.

 - Você parece ter alguns problemas. - Riu ela voltando aos céus, fazendo suas asas vibrarem. O membro da Aurora confundiu aquela voz por alguns instantes, parecendo não-natural em seus ouvidos. Era como se estivesse um pouco mais aguda e rápida do que o esperado, o que era bem estranho. Nunca havia visto aquela fada.

 No entanto, em uma fração de segundo iluminado seu cérebro conseguiu entender o que estava acontecendo. A questão era que os movimentos e habilidades da fada eram extremamente parecidos com os de Sasha. Marcus havia treinado tanto tempo ao lado da companheira que os dois conseguiam até mesmo prever suas ações, e a semelhança que a adversária compartilhava com a amiga estava enganando seu cérebro, fazendo-o reagir a ataques que não chegavam nem mesmo a serem formulados. Cuspiu com raiva no chão, irritado com sua atitude de iniciante.

 - Bem, acho que ainda não me apresentei. - Disse a encapuzada, subindo e se misturando à névoa forte que cobria o Vale das Cachoeiras. Sua voz ecoava pela região, se destoando da memória de Sasha que continuava fixa na mente do rapaz. - Meu nome é Jyll, e sou uma membra do Culto Púrpura. - Proclamou ela, colocando a mão no peito. Não houve resposta por parte do garoto, o que a fez continuar. - Você não nos conhece? Somos aqueles que invadiram sua guilda, mataram sua amiga e sequestraram sua líder. - Marcus novamente não respondeu, mas franziu as sobrancelhas. A fada não conseguiu ver aquilo à distância, mas riu de qualquer jeito. - Ela morreu, não foi? Estávamos nos perguntando se nosso líder tinha se descontrolado um pouco.

 - Não ache que irei te responder. - Avisou o rapaz para ganhar tempo, freando sua vontade de olhar para o lado em busca da companheira que havia caído no precipício. O sangue pingava de sua nuca, tornando mais difícil sua concentração. Jyll, do outro lado, abriu ainda mais o sorriso.

 - Bem, acho que é melhor irmos aos negócios, não? - Ela balançou as asas, descendo lentamente alguns palmos. - Nós gostaríamos de fazer um acordo com sua guilda. Vocês realizam umas missões para a gente, e nós não matamos sua líder. - Jyll tombou a cabeça para o lado, estreitando os olhos de forma ameaçadora enquanto que sorria diabolicamente. - Que tal?

 - Eu tive uma ideia melhor. - Disse a voz de Julie, finalmente terminando de subir a encosta. Ela inspirou uma bela porção de ar assim que chegou na estrada, fitando a encapuzada com uma expressão séria e irritada. - A gente acaba com você aqui e pegamos nossa líder de volta. O que acha desse plano?

 - Oooh... - Zombou a fada, colocando a palma da mão na boca enquanto sorria maleficamente. - Acho que vai ser um pouco difícil. Eu copiei os poderes de sua amiga de cabelos azuis, sabia? É o que eu faço. - Ela vibrou a mão em supervelocidade, para demonstrar seu ponto. - Não seria um... insulto à memória de sua companheira?

 - Olha... - Começou a garota, sorrindo com o canto da boca enquanto que estalava os dedos. - Eu sempre quis uma chance de enfiar alguns argumentos à força na cabeça de Sasha. - Ela terminou e flexionou minimamente os joelhos, pondo as mãos à frente do rosto. - E você vai ter que servir.

 Marcus aproveitou e invocou seus poderes um pouco acima da adversária, conjurando uma pequena e momentânea esfera negra que explodiu para todos os lados. Jyll foi atingida pelo impacto e caiu de costas na estrada, dando chance para que Julie se adiantasse. A garota pulou em cima dela, prendendo seus braços com as pernas e agarrando sua cabeça com as duas mãos, impelindo-a contra a terra batida. A fada libertou os membros superiores com sua super velocidade e socou violentamente as costelas da membra da Aurora com os dois punhos. O sangue espirrou pelos dentes rangidos da outra, que desafrouxou o aperto.

 - Julie! - Alertou o rapaz enquanto que a companheira era atirada para o lado pela fada. Jyll virou com as costas para a cima e disparou contra Marcus, agarrando suas canelas. Ele tentou se desvencilhar, mas quando percebeu já estava no ar, sem controle. O chão se afastava em velocidade, e o garoto teve apenas alguns segundos para decidir o que faria. Sua posição era extremamente desfavorável, pois se a fada o largasse ele não poderia fazer nada. Não podia permitir que ficassem a uma altura muito alta, e só havia um meio de se livrar daquela armadilha.

 O garoto apoiou o queixo em seu peito, observando a fada voar para os céus enevoados. Esticou a mão e conjurou uma nova esfera negra, desta vez bem perto da cabeça da adversária. Ela estourou, fazendo com que Jyll gritasse e segurasse a cabeça, largando-o no processo. O rapaz se viu em queda livre, e teve tempo apenas para tentar ajeitar o corpo. Reparou que estava mais distante do chão do que pensava. Seriam quinze, vinte metros? Não chegou a chutar algum valor pois logo se chocou violentamente contra as pedras, e a escuridão tomou conta de seus pensamentos.

 - MARCUS! - Gritou Julie, se levantando enquanto segurava a costela. Iria correr até o companheiro quando a fada pousou à sua frente, lívida. O capuz estava rasgado pela metade e o lado direito de sua cabeça estava descoberto, mostrando um rosto mergulhado em sangue, oriundo de um ferimento perto da têmpora. Ela limpou o líquido que se derramava pela bochecha, com os olhos arregalados e furiosos.

 - É uma pena que ele tenha morrido antes de brincarmos mais um pouco - Disse a adversária, trêmula. - Então você vai ter que servir. - A membra da Aurora pensou em se mover, mas quando percebeu estava no chão, com a fada em cima dela desta vez. O que se seguiu foi uma profusão de socos rápidos e pesados, mirando cada pedaço do tórax superior que estava exposto. Julie pensou em revidar, mas não conseguia libertar seus braços. Se viu à mercê de Jyll, que a espancava sem trégua. Cada golpe a deixava cada vez mais  perto do desmaio, trincando ossos e cortando a pele. Com o tempo, pareceu que toda a eternidade se concentrava naqueles segundos de tortura. Não havia um começo para aquela dor, pois ela parecia estar com a garota desde sempre. Era uma parte de si, que existia desde o início e a acompanharia até o cúmulo.

 De repente, os golpes pararam. A garota abriu um dos olhos, sentindo que um inchaço no rosto a impedia de abrir o esquerdo. A dor a deixava praticamente cega, vendo apenas um vulto através da névoa. Foi levantada pelo colarinho, deixando a face ensanguentada da fada a encará-la, tão próxima que podia contar seus cílios. - Eu estou surpresa que vocês tenham achado que iriam conseguir alguma coisa vindo aqui. Quer dizer, nós do Culto Púrpura não somos os arruaceiros que devem enfrentar todo dia. Estamos lutando por algo maior. - Ela trouxe o rosto de Julie mais perto, ficando lado a lado com sua bochecha. - Todos nós queremos alguma coisa. Alana quer ressuscitar a família. Rohr esperava ficar mais forte, algo que conseguiu. Já eu... - Jyll sorriu, levando a mão ao pescoço da adversária e agarrando um tufo de cabelos. - Eu quero aprender. Quero ter todo o conhecimento desse mundo, ser capaz de responder a qualquer pergunta. Como por exemplo, qual é a exata relação entre a resistência oriunda da Yullian e o treinamento físico de uma pessoa? - Ela puxou o tufo, fazendo com que a garota rangesse os dentes. - Você quer me ajudar nisso?

 - JULIE! - Gritou uma voz no meio das pedras. A fada se assustou, largando a membra da Aurora no chão. Marcus havia se arrastado para fora das pedras em que havia caído, completamente ensanguentado. Curioso, pensou ela. Esperava que o rapaz tivesse morrido. - USE SEU PODER, JULIE! AGORA!

 A garota por sua vez continuava no chão, ainda sofrendo com os ferimentos que havia recebido. Pensou em obedecer ao companheiro, mas logo viu que seria um ato inútil. Por mais enevoado que estivesse o ambiente, seu brilho não iria fazer nada. Era como se acendesse uma vela em um dia ensolarado. Precisava de escuridão para provocar uma consequência drástica para a adversária, e a noite estava horas distante deles. - Não dá! - Berrou a loira para o garoto, com uma Jyll em pé e curiosa entre eles. - Isso só--

 - EU VOU FICAR BEM, APENAS FAÇA LOGO! - Não é possível, pensou Julie. Ele deve ter batido a cabeça. Não conseguia compreender o que suas palavras tentavam clamar. Se iluminasse sua mão, nada iria acontecer. Cerrou os dentes e pensou em descontar a frustração que sentia no rapaz, mas foi levantada por Jyll, que a apoiou nos braços para que ficasse em pé.

 - Tem alguma surpresa a mais para me mostrar, querida? - Perguntou a fada, sorridente. - Será que eu devia experimentar esse tal poder? A supervelocidade estava me animando tanto...

 Pelos deuses, sua vaca burra. Seu cérebro deve ter vazado junto com o sangue que encharcava sua cabeça. Marcus havia apenas ficado maluco, porque sabia que seus poderes não serviriam de...

 Oh.

 - SE PROTEJA, MARCUS! - Gritou ela, fazendo um esforço para levantar a mão à frente de seu rosto. - EU VOU ACABAR COM ELA AGORA! Grunhiu os dentes, procurando encarar a adversária bem nos olhos, o que foi atingido com louvor.

 - Vocês me divertem, sabiam? - Admitiu Jyll, tombando a cabeça para o lado. A encapuzada segurou os dedos da mão estendida da garota e os torceu para trás, quebrando-os com alguma dificuldade. Julie gritou e caiu de joelhos, ainda com o braço contido pela fada. - Sabe de uma coisa? Vou matar vocês com seu tal poder salvador. - Ela se ajoelhou ao lado da membra da Aurora e colocou as duas mãos ao redor de sua cabeça. Um brilho multicolorido se dispersou na névoa, e a loira caiu nas pedras cinzas. A adversária se levantou, olhando para a própria mão. - Bem, eu realmente sinto alguma coisa. O que me acha de--

 O que ela achava jamais seria conhecido pelos outros, pois Marcus havia se levantado e a agarrado por trás, segurando-a pelos ombros. - Agora já chega. - Grunhiu ele, esmagando as asas translúcidas que saíam das costas da capa com seu corpo. - Hora de terminar com isso.

 - Ora. Então sabemos por onde começar. - Ela estendeu a mão por trás da cabeça pelo lado direito, apontando a palma para o rosto do adversário. Ele por sua vez apenas fechou os olhos e virou o rosto, fazendo com que o brilho branco se tornasse inútil. Jyll ficou imediatamente desconcertada, pois havia visto a luz e o aperto continuava. Levou a mão à face, procurando alguma mudança na pele. O garoto aproveitou para girar em torno de seu eixo, fazendo com que a outra ficasse de frente ao precipício.

 Na frente deles, uma pequena esfera negra e instável se agitava. - Normalmente alguém diria alguma frase engraçadinha ou algo do tipo, mas eu não sou assim. - Disse Marcus, apoiando o queixo na capa adornada da fada, mantendo pressão. - Só que eu tenho uma coisa a dizer no lugar. - O redemoinho circular de energia escura começava a perder o controle. Pequenas pedras chacoalhavam no chão, e tiras da roupa transparente e colada de Jyll se rasgavam e voavam para o centro negro. - Você não é Sasha.

 Com isso, a esfera explodiu. A fada apenas abriu a boca, com o sangue espirrando de sua garganta. A força havia sido tão monstruosa que deslocou a névoa ao redor, gerando uma esfera de impacto que arremessou as rochas mais próximas para os lados. A encapuzada e Marcus foram jogados para longe, na direção da Garganta Cortada, enquanto que Julie rolava pela estrada de terra pela força da explosão. Quando ela parou de se mover, arfou e esticou a coluna em agonia. O céu pareceu girar acima dela, ainda agitado pelo enorme deslocamento de ar que havia varrido aquele lugar.

 A garota tentou imediatamente se por de pé, mas uma dor estridente no ombro a fez cair de joelhos. Respirou efusivamente e levantou novamente, segurando a região ferida com os dedos quebrados. Olhou ao redor, tentando identificar onde o companheiro havia parado. - Marcus? - Perguntou, com sua voz ecoando pelo vale. Ele estava muito próximo do epicentro, pensou nervosa. O temor tomou conta de seu coração, e a membra da Aurora avançou para além da estrada, procurando alguma coisa diferente no meio do cenário que voltava a ficar silencioso e morto.

 Não soube por quanto tempo procurou, mas o desespero já havia tomado conta dela. Ele não podia ter... Ele... Nem chegou a terminar a frase, tamanha era a sua agonia com aquele pensamento. Por favor, Marcus, orava ela. Não nos abandone. Você também não. Uma parte de sua mente tentava lhe dizer que era impossível ele ter sobrevivido, mas ela a ignorou. Só acreditaria quando visse o corpo, mas deuses, por favor que não haja um corpo. Por favor.

 Se viu pensando em Sasha. Marcus era tão agitado quanto ela, só que conseguia ser ainda mais suicida. Os dois sempre pareciam ir contra sua vontade de se proteger primeiro antes de andar para frente. Agora eles poderiam estar... Estar... Tímidas lágrimas começaram a verter de seus olhos, se lembrando de todos os membros da guilda que haviam saído em busca da senhora Stella. Droga, pensou ela enquanto fungava. Se ti
vessem escutado o que tentava dizer, estariam todos no saguão, comendo juntos. Era tão covarde por pensar primeiro na segurança deles? Era isso o que diziam?

 Passou a mão no rosto para limpar as lágrimas, e naquele momento viu uma agitação roxa no horizonte. Sem pensar correu naquela direção, a única pista que havia recolhido naquele mar cinza e enevoado. Se desequilibrou pelas pedras pequenas e subiu as grandes, com o coração batendo tão forte que parecia vibrar tal qual as asas da fada.

 Não percebeu que havia tropeçado até se aproximar do chão, levantando instintivamente o braço direito à sua frente. Os ossos quebrados estalaram e ela gritou de dor, parando um segundo para segurar os dedos partidos. Grunhiu e se levantou pela terceira vez, tentando se manter acordada. Não poderia desistir. Tinha que chegar a Marcus.

 Continuou trôpega até identificar o companheiro. Ele jazia de costas nas rochas, com o traje em trapos. Julie se aproximou dele, caindo de joelhos ao seu lado. Seu rosto estava ensanguentado, e havia assombrosas lacerações em seus braços. A garota colocou o dedo em seu pescoço, rezando por uma pulsação. Nada. Pressionou com mais força, já com os olhos marejados. Deuses, por favor, pediu enquanto que o largava e colocava o ouvido em seu peito. Não deixem mais ninguém da Aurora partir. Não sabia o que faria. Não sabia se iria aguentar.

 Chorava baixinho quando ouviu o singelo batimento cardíaco. Marcus estava vivo. Julie riu e soluçou ao mesmo tempo, abraçando o companheiro. Ele não havia os abandonado, e se tudo desse certo nem Sasha ou qualquer outro dos membros da Aurora. Ficariam vivos.

 E isso era tudo que importava para ela, pensou enquanto finalmente desmaiava.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 25 - Tempo Corrosivo


AURORA
CAPÍTULO 25 - TEMPO CORROSIVO

 A floresta de Hyannien estava brilhante e animada naquele sol de meio-dia. O verde das árvores radiava de energia, e pequenos animais silvestres corriam pelos galhos e faziam sons agudos que se misturavam à ópera silvestre de tantos outros seres vivos. Um riacho corria translúcido pela encosta da montanha, trazendo consigo peixes fracos demais para lutarem contra a corrente. A própria temperatura estava bastante amena, tornando aquela floresta um excelente lugar para uma caminhada animada ou até mesmo um piquenique. O que contrastava terrivelmente com as duas únicas pessoas que subiam a encosta da Montanha Branca.

 Wieder e Dominic haviam passado quase dois dias praticamente sem trocar uma palavra. Desde que saíram de uma chuvosa Helleon e arrumado um transporte para o sul, até a trilha forçada que haviam percorrido no caminho até a Torre de Marfim, tudo que haviam conversado era sobre onde iriam dormir e como iriam seguir adiante. A memória de Sasha às portas da morte no saguão da Aurora havia os marcado profundamente, principalmente Dom. Ele se mantinha enfurnado em seus próprios pensamentos, distraído com o mundo exterior, e não havia iniciado sequer uma das poucas conversas que teve com o companheiro. 

 Assim, calada, a dupla continuou subindo a elevação por uma trilha serpentinosa, desviando das inúmeras e gigantescas rochas nuas que pontuavam a encosta. O anão olhou para trás, percebendo o belo mar que brilhava em azul escuro se agitando na baía circular que o terreno formava. Um grupo de pássaros saiu das árvores e passou por cima deles, voando barulhentos na direção do topo da Montanha Branca. Wieder os seguiu distraído, e notou que a Torre de Marfim já conseguia ser vista, se destacando entre a cordilheira que os cercava.

 - Acho melhor descansarmos. - Sugeriu ele, suspirando fundo e pondo as mãos na cintura. - Estamos perto da torre. Seja o que quer que esteja nos esperando lá, precisaremos estar cem por cento para encarar. - O homem barbudo concordou com a cabeça, e os dois saíram da trilha na direção do córrego que corria ali perto. Quando chegaram na clareira que rodeava o corpo d'água, sentaram na grama procurando recompor as forças. O anão conseguiu facilmente, massageando as pernas cansadas, mas Dom estava muito agitado para isso. Se levantou novamente e ficou em pé ao lado do riacho, observando a natureza animada que os cobria. Depois do que pareceram minutos de silêncio por parte dos membros da Aurora, ele finalmente voltou a falar.

 - Ela não merecia. - Disse o homem, melancólico. Wieder franziu a testa, se levantando. O amigo era geralmente uma pessoa animada e falante, e o anão esperava que aquele pouco característico clima ruim de desanuviasse conforme estivessem próximos de seu objetivo. Não parecia ser o caso.

 - Está falando de Sasha? - Perguntou ele, sentando ao seu lado. O contraste dos tamanhos se acentuou um pouco, parecendo um gigante e um banquinho. - Realmente, ninguém merecia apanhar como ela apanhou...

 - Não, não... - Interrompeu Dominic, pondo as mãos no bolso. Suspirou, como se algo estivesse preso em seu peito. - Quer dizer, também. Ela e a mãe. Stella queria apenas ajudar a guilda, e Sasha foi espancada por causa de suas ações. Ela ainda são jovens, Wieder. Com tanto tempo pela frente e coisas para fazer, um mundo inteiro as aguardando. - Parou um pouco, observando os peixes se agitarem no córrego. - Se alguém deveria sofrer, deveria ser um velho que nem eu, que já teve sua cota nesse mundo.

 O anão ficou calado por alguns segundos, sentindo que estavam tocando em um assunto um tanto quanto delicado para ele. - Perdão. Não entendi. - Disse, sem transpirar emoção.

 - Estou falando que já vivi o suficiente para dar a vida como completa. Quer dizer, às vezes me considero um homem afortunado. - Proclamou o homem, com os olhos distantes. - Fiz tudo que queria ter feito em minha juventude. Realizei sonhos loucos, vi lugares distantes, batalhei na guerra... - Ele se manteve alguns segundos em silêncio, como se suas memórias estivessem se manifestando em sua visão. - Teria me retirado para uma vida tranquila se Adam não tivesse me convocado para a Aurora. Um novo conjunto de sonhos te espera, disse ele. Heh. Quem dera que fosse verdade.

 - Ainda há tempo para isso. Você sabe, não? - Perguntou o menor, sentindo o incômodo crescer dentro de si. Alargou o colarinho com os dedos, como se a camisa fosse a culpada.

 - Não acho. - Admitiu Dominic. - Quando estávamos na Estrada Verde, disse a Koga que iria treinar com ele para nos sentirmos úteis na Aurora. Desde então eu empurrei isso com a barriga até perceber que não tinha mais energia para isso. Diferente de todos aqueles garotos, eu não tinha mais forças para me aprimorar e seguir em frente. Me senti uma figura parada no tempo. - Ele parou, mordendo a bochecha por dentro. - Logo, não adianta fingir que ainda sou um jovem e que tenho todo o tempo do mundo para seguir atrás de novas aventuras. Deveria deixar isso para as crianças. De quê adiantaria gastar meus últimos anos em uma busca infrutífera?

 - Dom... - Começou o outro, começando ficar realmente com raiva. Aquilo tudo era muito familiar. Estava ligeiramente trêmulo, e fechava as mãos em punhos tão apertados que as unhas cortavam a pele da palma. O companheiro se virou para ele, com uma expressão de profunda melancolia que era incapaz de se associar com o rosto sorridente que ele mantinha na Aurora.

 - Há um limite de idade para ter novos sonhos, Wieder. E já passamos dele faz algum tempo. - Para o anão, era como se o rosto do homem tivesse se transfigurado na face de seu próprio irmão. A memória preencheu o ambiente, o levando de volta para sua própria casa em Vertreit. As mesmas palavras foram ditas naquela lembrança, e isso o enfureceu de vez.

 Wieder não percebeu, mas já havia ativado sua pulseira. Um brilho amarelo tomou conta daquela clareira, e uma fumaça cinzenta trouxe um cheiro forte consigo. Quando Dominic voltou a abrir os olhos, percebeu o enorme sujeito de pedra à sua frente, inclinando em sua direção.

 - Não ouse vir com esse papo para cima de mim. - Disse o golem, com sua voz gutural saindo da fresta que era a boca. Estendeu um dedo e cutucou o homem em seu peito. - Não me venha desistir por causa de sua idade. É a saída dos covardes.

 - Ah, deve ser muito fácil para você, não é senhor rebelde? - Disparou o homem, também se enraivando. - Ficar propagando pensamentos revoltosos e exagerados para combater sua crise existencial e se sentir mais jovem. Sabe o que eu faço eu faço para pelo menos agir de forma despreocupada e animada com aqueles garotos? - Perguntou, afastando o dedo do anão com um safanão. - Eu bebo. Bebo para esquecer que já vivi mais do que deveria ter vivido, e muito mais do que tantas outras pessoas que mereciam no mínimo o dobro do que eu tenho hoje. Não é tão simples para o resto de nós.

 Os dois ficaram em silêncio, encarando um ao outro com olhares de reprovação. - Se quer tanto morrer antes de seu corpo, sinta-se à vontade. - Disse finalmente Wieder. - Fique aqui e procure chamar a atenção dos deuses para acabar com sua vida. Enquanto isso, eu vou tentar, não, vou conseguir realizar o que me resta de sonhos. - Completou, aproximando sua face de pedra perto da do companheiro. - Vou derrotar o que quer que tenha atacado Sasha, resgatar Stella e depois vou ajudar a Aurora a se tornar uma guilda de respeito, para o que meu nome não seja esquecido como tantos outros milhões de anões que faleceram no anonimato. - Parou de falar por alguns instantes, fitando aquele rosto triste e irritado. - Você não é assim, Dom. É melhor do que isso. Deixe de pensar na sua maldita idade e comece a olhar para a frente. - Ao dizer isso ele seguiu adiante, trombando com o ombro no de Dominic, e voltou à trilha. O homem apenas o encarou se afastar mas não se moveu, ficando sozinho com os animais silvestres.

 Quando voltou à trilha, o anão reativou a pulseira e voltou ao normal. Deu algumas pisadas na grama, procurando se readaptar aos membros menores. Tentou pensar no avanço que havia feito com os movimentos desde que se transformou pela primeira vez, mas estava muito irritado para isso. Olhou para trás, meio que esperando que Dominic aparecesse do meio das árvores para acompanhá-lo. Ele continuava, no entanto, fora de vista. Wieder suspirou, voltando a andar. A falta do companheiro, mesmo que silencioso, se notava em sua caminhada em direção ao topo da Montanha Branca. Se pegou pensando sobre o homem que havia confrontado na clareira do córrego. Aquele não eram Dom, o alegre bêbado que havia lhe dado as boas-vindas na chegada à Aurora, e que sempre parecia de bem com a vida. Só precisava de um tempo, concluiu ele. Sua conversa provavelmente havia lhe dado razão para refletir, o que era bom. A idade não poderia ser empecilho para pessoas que nem eles.

 No meio desses pensamentos, reparou que havia chegado ao cume da montanha quando seus pés encontraram uma superfície nivelada. Parou e encarou o ambiente à sua volta, esperando alguma diferença desde que havia estado ali há alguns dias. A floresta densa se abria em uma clareira grande e circular, cuja extremidade sul era tomada pela enorme construção. A Torre de Marfim se erguia imponente, no entanto era apenas uma das duas coisas naquela área que chamavam a atenção pelo grande tamanho. A outra era o gigantesco ente que aguardava à frente das portas do edifício.

 O ser chegava perto dos dois metros e cinquenta, com o rosto quadrado, membros compridos e uma camada de musgo verde cobrindo partes da pele cheia de raminhos. Estava muito perto de estar completamente nu, como todo ente, mas vestia uma capa roxa e prata que alcançava sua cintura. Ele tinha o capuz recolhido, deixando o topo de sua cabeça rachada desprotegida ao ar silvestre. Wieder se aproximou, de olhos bem atentos aos arredores. À primeira vista, não havia nada ameaçador.

 - Olá. - Disse o gigante, com a voz gutural que era natural à sua espécie. - Meu nome é Rohr. As árvores me disseram que você estava chegando. - Os entes conseguiam se comunicar com a natureza, mas isso não importava muito agora, pensou o anão. Não fora atacado no caminho, mesmo com a desvantagem do terreno. - Imagino que vocês tenham vindo aqui em busca da sua líder, mas peço que saia, por favor. Não desejo lutar.

 - Ah, sério? - Perguntou Wieder. - Não pareceu. Que eu saiba, sequestro e aquela nossa companheira quase morta onde eu almoço me soava como um convite. - O ente balançou a cabeça de forma negativa.

 - Realmente, foi um ato exagerado. Eu --

 - Ato exagerado? - Perguntou o membro da Aurora, dando alguns passos à frente. - Vocês a espancaram. Deixaram-na no nosso saguão como um maldito aviso, e ainda fugiram com nossa líder. - Ele parou a cinco passos do ente, tão alto que precisava levantar a cabeça dali mesmo. - Não descansaremos até acabarmos com vocês e salvarmos a senhora Stella.

 - Não deseja apenas... procurar uma forma não-violenta de resolver isso? - Rohr parecia implorar, levando as mãos à frente do rosto. - Não há como nos combater! Irão apenas sofrer nessa busca!

 - Sinto muito, mas irei me repetir. - Rosnou o anão. - Até que tenhamos a nossa líder de volta à nossa sede e você estejam presos em alguma prisão esquecida, não iremos desistir. - Ele olhou ao redor, procurando alguma armadilha. - Agora, onde está ela? Onde está Stella?

 - Você não encontrará ninguém aqui além de mim. - Disse o ente, mostrando o lugar ao redor.

 - Então qual o motivo de você estar aqui? - Perguntou Wieder. - Qual o motivo de nos mandarem limpar esses lugares? E onde está nossa líder? - Grunhiu ele no final.

 - Sinto muito, mas eu não posso te responder isso. - Foi o suficiente para que o anão estalasse os dedos das mãos, preparado para avançar.

 - Bem, então as coisas ficaram um pouco simples. Eu vou te derrotar por Sasha e depois arrancar respostas de você. O que acha?

 Rohr suspirou fundo, e os raminhos em seus ombros tremelicaram. - Bem, infelizmente acho que não há mais o que discutir. Você irá defender os seus companheiros, e eu farei o mesmo com os meus. - Ele o encarou de forma fria, com seus olhos amarelos em órbitas negras brilhando. - Apenas peço perdão que não ter conseguido te convencer.

 - Acredite, me sinto melhor assim. - Wieder ativou a pulseira, se envolvendo em um mar de luz. A miríade de sentimentos dentro dele pareciam querer explodir para fora, e aproveitar para esmurrar o adversário no caminho. E foi isso que o anão fez. Assim que se transfigurou em sua forma de golem, ele se adiantou e desferiu um potente soco no ente.

 Desorientado pelo brilho amarelo e pela fumaça, Rohr só viu Wieder se aproximar dele quando o contato já era inevitável. O punho de ronatto se chocou com seu rosto, o levando para trás. O membro da Aurora se reajustou desajeitadamente, preparando um novo golpe. Desta vez o ente conseguiu se proteger, segurando o punho que vinha em sua direção. O golem aplicou mais força, forçando a mão de madeira para baixo. Sabia que tinha, por enquanto, pouca mobilidade naquele corpo, portanto só lhe restava era o poder bruto.

 Seu punho forçou o caminho até o rosto do adversário, pressionando-o contra o chão. O anão sentiu um jorro de confiança crescer dentro de si. Era, sem dúvida, o mais forte da guilda. Tudo o que precisava era controle sobre seus poderes. E pelo visto estava dominando essa parte.

 Ainda pensava nisso quando Rohr lhe deu uma tesourada com as pernas, fazendo-o cair para trás. Seu corpo de pedra se chocou com um baque surdo na grama, e antes que percebesse o ente se pôs em cima dele e começou a socá-lo. Ele parecia ter percebido o problema de pouca mobilidade do golem, pois socava rapidamente em lugares diferentes. Cada golpe rachava um pouco do ronatto, desferindo uma dor forte para o membro da Aurora. Tentava se defender, mas era difícil acompanhar a velocidade do adversário. Se arriscasse, provavelmente teria o braço imobilizado e a situação ficaria pior. Enquanto isso, os socos continuavam.

 - EI! - Gritou uma voz à beira da clareira. O ente olhou para o lado, bem a tempo de ser derrubado por uma pedra do tamanho de sua cabeça. Ele tombou, e Wieder aproveitou o momento para se desvencilhar. Rolou para o lado voltando à forma de anão, desta vez lanhado e ensanguentado, e fitou ofegante o companheiro que havia chegado. Dominic estava ao seu lado, olhando para o gigante de madeira.

 - Mais gente desejando lutar quando não precisa... - Começou Rohr, se levantando com uma das mãos no joelho e arregalando o rosto. - Vocês não entendem! Nós somos os mocinhos!

 - Rapazinho, você vai precisar me explicar direito essa história. - Pediu o homem dando um passo à frente e suspirando fundo. Wieder olhou de novo para o ente, tentando entender como Dom havia notado que ele era um jovem. Talvez fossem pelos olhos muito brilhantes ainda, já que aquela espécie costumava ter a visão leitosa com o passar do tempo, ou sua agitação incomum. - Tudo que eu vi foram invasores que espancaram nossa companheira e sequestraram nossa líder.

 - Escute, eu sei que os métodos de Desaad são... controversos, mas vocês precisam entender! - Disse o ente com a voz chorosa. - Nós estamos nessa por um bem maior. Veja! - Ele mostrou a mão, a enorme palma coberta de musgo. - Eu não era desse jeito! Não era forte assim! O Culto Púrpura me abraçou e me deu o poder que eu precisava, e agora meus companheiros querem realizar os sonhos deles! Eu sei que eles estiveram errados ao atacar a sua guilda, eu sei! Mas--

 - E você vai deixá-los simplesmente agir dessa forma? - Interrompeu Dominic, indignado. - Se sabe que eles estão errados, faça algo! Se é tão grato à eles, tente impor limites à eles! Não fique apenas de braços cruzados! Se é realmente um companheiro, faça-os se tornarem pessoas melhores ao invés de ser um cúmplice em seus crimes! - O membro da Aurora deu mais um passo à frente, ficando cara a cara com o adversário, que recuou trôpego. Dom era alto, mas ainda assim precisava olhar para cima para encará-lo. - Ou acha que sonhos são tão importantes assim para se corromper?

 Por um breve instante, um traço de dúvida se manifestou nos olhos amarelos do ente. No entanto, ele de repente rugiu e desferiu um soco no homem, que foi arremessado de encontro às árvores da beira da clareira. - Cale a boca! Cale a boca!

 - Estou vendo o motivo de ter sonhado tanto com força, garoto. - Disse Wieder, se transfigurando rapidamente. - Dá pra ver que quando você não tem o que dizer, decide apelar para violência. - Rohr rugiu e tentou atacá-lo com um outro soco. O anão por sua vez se viu com uma ideia maluca. Ativou novamente a pulseira e voltou à sua forma diminuta em um instante. O golpe do outro varou os ares, tão forte que deslocou o ar. Só que não tinha ninguém ali.

 O membro da Aurora aproveitou e se transformou mais uma vez para desferir um gancho no queixo do adversário, jogando-o para longe com a força estrondosa do ataque. O ente caiu para trás, cuspindo um fluido verde e pastoso. Antes que pudesse se levantar, no entanto, uma sombra o cobriu. Olhou para cima e viu que Dominic estava saltando em sua direção, com uma moeda expandida em mãos. Ele esmagou o pescoço de madeira do adversário com o objeto, mantendo-o firme onde parou. Rohr grunhiu embolado, tentando se livrar. O homem se esforçava para detê-lo, mas já vira cenas assim antes. Não seria só com isso que deteriam aquele ser.

 Olhou para os lados, percebendo a enorme construção branca que se mantinha imponente e se viu com um plano. - WIEDER, VÁ PARA O TOPO DA TORRE. JÁ! - O anão ficou momentaneamente confuso, mas logo entendeu o que o outro queria. Demorou um pouco por causa da dúvida de deixar o companheiro sozinho, mas percebeu que era a única chance deles. Assim, correu para a Torre de Marfim, virando rapidamente um golem para abrir as ornamentadas portas de bronze.

 Enquanto isso, Rohr conseguia se livrar da moeda gigante. Ele jogou o objeto para o lado e na volta do movimento arremessou Dominic na direção da torre, onde se chocou com a parede branca. O impacto causou uma pequena fissura na construção, e a grama ao seu redor se manchou de vermelho pelo sangue que vazou. Ele era bem forte, pensou o homem. Aquilo definitivamente não era natural, nem mesmo para um ente.

 Não teve tempo para pensar em mais alguma coisa, pois Rohr já havia chegado até onde ele estava. Ele começou a desferir uma série de golpes, todos praticamente mortais para uma pessoa comum. No entanto, até mesmo um Yulliano não conseguia reagir. Os socos quebravam ossos, arrancavam dentes e deixavam o homem numa condição deplorável. Quando já era uma massa de sangue, o ente imprimiu sua cabeça contra a parede, quebrando-a e o jogando no interior da Torre de Marfim.

 O gigante ficou alguns segundos recuperando o controle, inspirando com força. Se lembrou do anão, e olhou ao redor para ver se o encontrava. - Ei, imbecil! - Disse uma voz gutural, vinda do alto. Quando olhou para cima, viu o enorme golem de ronatto o encarando do teto da torre. - Sua mãe nunca te disse que se deve respeitar monumentos históricos? - E com isso Wieder deu um passo à frente, flexionando os joelhos e caindo em direção ao adversário. O ente nem sequer teve tempo de reagir. O anão o acertou com os pés, esmagando seus ombros

 Rohr urrou, com a cobertura de madeira esmigalhada. Sofreu um poderoso soco no rosto, quase lhe retirando os sentidos. Tomou mais, e outro, todos tão fortes que se aproximavam de deformar sua face. Os pés dele se agitaram, derrubando o golem no chão. Virou o corpo para lhe dar uma cotovelada, mas Wieder havia voltado ao corpo de um anão.

 - Aqui! - Exclamou Dominic, ainda consciente. Ele apontou para as pedras quebradas da Torre de Marfim, esparramadas ao redor do buraco. O companheiro ficou de pé e correu até elas, enquanto que o ente tentava se levantar com dificuldades. Quando Rohr conseguiu se apoiar no joelho, no entanto, tomou um golpe no queixo que o fez cair novamente.

 - Bem resistente você, não? - Perguntou o golem com uma pedra gigante nas mãos enquanto que o adversário se remexia no chão. Levantou os braços e jogou o destroço no peito de Rohr, que urrou novamente. Ele tentou se remexer, mas Wieder o pisoteou, quebrando a rocha branca e a cobertura de madeira abaixo. O ente tentou mais uma vez reagir, mas havia chegado ao seu limite. Tombou a cabeça para trás, desacordado.

 - Ah, você não vai. - Exclamou o anão. Ele se ajoelhou ao lado do adversário, segurando seu rosto nas mãos. - Antes de desmaiar, me diga onde está Stella. Entendeu? - Ele virou a face do outro, tentando fitar aqueles olhos amarelos e rodopiantes. - Onde ela está!? - Rohr cuspiu a seiva verde, grunhindo algumas palavras inteligíveis. Wieder se aproximou, tentando escutar.

 - Aoena Ortaris. - No segundo em que ele disse aquilo, sua capa se moveu. O golem se afastou, alarmado, e viu que o ente foi envolvido em um redemoinho de tecido. Pensou em reagir, mas o espanto era mais forte. Aquilo era magia.

 De repente a agitação cessou, e a capa roxa e prata se engoliu, levando junto consigo Rohr. Wieder esperou alguns segundos para se recompor daquilo. Olhou para os lados, como se esperasse uma nova surpresa. Nada. Se levantou para olhar melhor, mas a floresta parecia ignorá-lo. Desconfortável, ele se virou para ver como estava o companheiro.

 O anão se aproximou de Dominic, voltando à sua forma natural. O homem estava de costas no chão, meio que escondido no interior escuro e vazio da Torre de Marfim. Ele riu quando o companheiro se aproximou, cuspindo um pouco de sangue. - Estou realmente velho. - Disse ele com dificuldades. - Nos meus tempos no exército, conseguia pelo menos levantar depois de uma porrada dessas. Era normal... fazer isso. Sorte que eu continuei me mantendo em forma, mas acho que meus limites diminuíram um pouco desde então.

 - Ah, cale a boca. - Disse Wieder, se sentando em uma pedra caída. - Ainda está vivo, não? Portanto, vamos nos lamentar pela destruição da fachada dessa magnífica torre. - Ele olhou o buraco na parede, uma mácula em uma construção tão antiga e histórica.

 - Heh. - Tossiu o homem, adotando uma postura séria. - Conseguiu alguma informação sobre Stella?

 - Não. - Admitiu o companheiro, desviando o olhar. - Ele se materializou para longe antes que pudesse me responder. Espero que os outros tenham melhor sorte.

 - Materializar para longe? O que aconteceu? - Perguntou o homem, arregalando os olhos.

 - Pelo visto estamos lidando com magia. - Respondeu Wieder, sentindo falta de algo para fumar.

 - Hm. - Dominic encarou o teto, ficando alguns segundos perdido em seus pensamentos. - Isso não é bom. Péssimo, na verdade. - Ele ficou mais algum tempo em silêncio. - Aquele ente era apenas um garoto, e se viu metido nesse mundo traiçoeiro de magia. Alguém o enganou direitinho e o levou para esse caminho. Não posso deixar que algo assim aconteça, pelo menos com os meninos da Aurora.

 - Ah, então arranjou um motivo para viver? - Perguntou o anão, sorrindo. O companheiro virou sua cabeça para encará-lo.

 - Ainda não concordo com você. Ainda acho que sonhos são para os jovens. Só que por causa disso que eles precisam de conselhos. - Ele parou, voltando a fitar o teto. - E se eu puder pelo menos ajudar os nossos garotos, terei um bom final de vida.

 - Ah, deixe de melancolia e derrotismo. - Avisou Wieder, saltando para o chão cheio de reboco. - Apenas trate de descansar um pouco. Vai ser um pouco difícil te levar de volta à Aurora, portanto trate de se preparar. - Ele deixou o amigo e saiu da Torre de Marfim, observando a floresta à sua volta. A natureza continuava alegre e barulhenta, alheia à batalha que havia acontecido em seu próprio seio.

 O anão saiu da torre, passando perto do lugar onde Rohr havia desaparecido. Estavam lidando com algo um pouco acima do nível deles. Mais do que as habilidades físicas daquele grupo, o problema principal era de onde eles haviam conseguido tal poder. Havia magia ali. E isso nunca significava algo bom, mesmo com os magos membros da Aliança. A maioria era independente, e havia alguns que estavam definitivamente ligados com os inimigos do outro lado da Fronteira. Precisavam descobrir mais sobre o tal Culto Púrpura.

 Uma lufada de vento balançou sua barba, rodopiando em direção às árvores. Wieder olhou para os céus, pensando nos desafios à frente. Adversários fortes haviam sequestrado sua líder, e parecia haver algo a mais por trás deles. Precisavam ficar mais poderosos, isso era uma urgência. Ele próprio havia se acomodado quando entrou na Aurora, achando que estava preparado. Mentira. Quase perdeu para o ente. E, por mais forte que fosse Rohr, ele não era nada comparado às guildas mais famosas, ocupada por pessoas tão extraordinárias que nem precisariam suar para derrotar aquele ente. Dominic pelo visto havia sido alguém nesse naipe, mas um humano não conseguiria manter esse nível tão alto a menos que treinasse arduamente por toda a vida, e recuperar era uma tarefa quase impossível.

 Fechou seu punho, observando sua pulseira. Entre todos os membros da Aurora, ele era quem estava mais perto de se tornar verdadeiramente forte. O ronatto, por mais que não fosse um material tão resistente assim, lhe dava uma tremenda vantagem. Diferente dos outros, ele não precisava se esforçar para adquirir um poder grande. Ele já estava ali no golem, só precisaria ter controle. E, se possível, descobrir alguns segredos daquele artefato que havia obtido.

 Precisava se tornar mais forte. Precisava ajudar a guilda a crescer. Seus sonhos dependiam disso, e não os deixaria escapar tão fácil.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 24 - Família


AURORA
CAPÍTULO 24 - FAMÍLIA

 - Deixa que eu tento. - Pediu Dalan, tomando distância. Quase toda a Aurora estava no quintal, procurando abrir o que parecia um porta emperrada. Wieder e Koga saíram do caminho, dando espaço para que o rapaz corresse e desferisse uma ombrada na porta. No entanto, ela dessa vez se abriu com facilidade e o garoto acabou atravessando-a, caindo com o rosto no chão. Ficou alguns segundos parado, com a cara afundada na madeira, enquanto que os companheiros adentravam a sede escura.

 - Meu herói. - Zombou Amanda, dando-lhe um tapinha na cabeça. Lyra por sua vez avançou na escuridão, procurando o caminho até a entrada da guilda.

 - Senhora Stella? Sasha? - Perguntou, estranhando o breu e o silêncio que se mantinha ali. Eles caminharam e entraram no saguão, ainda muito escuro para saber o que havia acontecido. Dominic se dirigiu até as janelas enquanto que os garotos comentavam sobre o enorme breu que havia se instalado ali. Foi apenas quando o homem abriu as cortinas, deixando a luz da lua entrar, que eles perceberam o caos.

 - O que aconteceu aqui? - Koga foi o primeiro a perguntar. Metades das mesas estavam derrubadas, havia uma pequena cratera na parede perto da porta e um líquido vermelho se espalhava por todo o piso. Marcus se ajoelhou perto do balcão, molhando dois dedos no fluído e os aproximando do rosto. Confirmou o pior. Era sangue. Lyra olhou para o segundo andar, percebendo o corrimão destruído.

 - Senhora Stella? - Gritou ela, se dirigindo às escadas. No entanto, olhou para as mesas viradas e percebendo Sophie encarando algo no chão, com a mão no peito e os olhos arregalados de pavor. - O que aconteceu? - Perguntou alarmada, caminhando em sua direção. Ficou ao lado dela e olhou para baixo, também congelando por alguns segundos. - SASHA! 

 A garota estava caída com o rosto para baixo, envolta em uma poça de sangue. Lyra se ajoelhou imediatamente ao lado dela enquanto que o restante da guilda se aproximava. Amanda ofegou e pôs as mãos na boca, enquanto que Julie segurava com força a mão de Koga. Marcus correu e também se ajoelhou ao lado de Sasha, percebendo seu braço quebrado e o enorme corte nas costelas.

 - Alguém pegue o kit médico... - Balbuciou a garota de cabelos roxos, ainda incapaz de compreender o que havia acontecido. Ela tremia, temerosa de virar o rosto de Sasha.

 - E-e-eu vou! - Disse Sophie, a primeira a se recuperar do estupor. Ela correu e tropeçou através das mesas caídas na direção de uma porta que ficava abaixo do segundo lance de escadas, ao lado do quadro de missões. Adentrou o aposento, o almoxarifado médico da guilda, local onde a senhora Stella guardava os primeiros-socorros. Era relativamente grande, com prateleiras vazias ao redor das paredes. Puxou um pacote com força do armário ao seu lado, derrubando os outros potes e pacotes que ali se aglomeravam. Levou o kit até Lyra, que o abriu desajeitada. Uma série de produtos caíram no chão, rolando no sangue, mas retirou o que precisava. Segurou um pano verde e mal-cheiroso na mão direita e o pressionou no ferimento das costelas, procurando estancar o sangramento. Para a surpresa de todos, Sasha reagiu.

 - Ngh... - Grunhiu ela, tentando se virar. Marcus a ajudou, colocando-a calmamente de costas no chão. Seu rosto estava inchado, encharcado de vermelho e com o nariz partido, mas os olhos estavam semi-abertos. A garota levou a mão trêmula até onde Lyra fazia a compressa, tentando puxá-la.

 - Eu sei que dói, querida, mas tente descansar. - Disse a outra, com uma expressão de sofrimento. - Se tentar resistir ao sonífero desse medicamento, as coisas só vão ficar piores. - Sasha, no entanto, não desistia. Ela tateou meio cega o rosto da companheira, arfando com força. Segurou sua face, manchando-a com o próprio sangue.

 - Missões do prefeito... - Começou, tossindo com força em seguida. Sua boca se encheu do sangue que saía e Sophie tapou os olhos, gemendo baixinho. - Estavam nos enganando... encapuzados... sequestraram minha mãe... precisamos... - A exaustão e o remédio finalmente a tomaram, e ela desmaiou. Lyra evitou ao máximo perder o controle, mantendo a compressa com a mão direita enquanto que buscava novos panos no pacote com a esquerda.

 - Precisamos garantir que ela possa ser transportada para Tinyanga. - Ela entregou os medicamentos a Marcus, que os aplicou nas diversas feridas enquanto que a outra esquadrinhava o corpo de Sasha. - O braço tem que ser imobilizado, e o corte nas costelas deve ser estancado. - Tateou cuidadosamente o abdômen extremamente ferido da garota, notando as costelas quebradas. - E temos que enfaixar isso aqui.

 - E depois? - Perguntou Koga, olhando alarmado para os companheiros. - Sasha acabou de dizer que a senhora Stella foi sequestrada! Precisamos ir salvá-la!

 - Nossa prioridade é aqui. - Disse Marcus rispidamente, fazendo uma compressa delicada no nariz da garota. - Só que depois que a transportarmos para a Estrada Verde... - Ele encarou o restante da guilda, com um brilho em seu olhar. - Vamos acabar com quem tenha feito isso.

 - As missões do prefeito... - Começou Dalan, com a mão no queixo. Pensou por alguns segundos até que sua mente se iluminou, fornecendo a resposta. - Acho que tem algo a ver com as áreas que fizemos as missões para Visandre.

 - E encontraríamos quem quer que tenha... feito isso... lá? - Perguntou Julie, largando Koga e cruzando os braços em dúvida. 

 - É a nossa única pista. - Admitiu o garoto, olhando para Sasha. - Seja quem for, veio para cá e nos atacou. Não quero esperar que apareçam aqui novamente. Prefiro reagir.

 - Bem, para mim é o suficiente para um plano. - Disse Wieder, esfregando os dedos nos olhos. - Nos dividimos em grupos e verificamos todos os territórios que cumprimos missão. A Torre de Marfim, Thomas Galvan, Wildest... - Enunciou ele, enumerando as áreas com os dedos. - Deve haver alguma coisa lá. Se dermos sorte, ainda encontraremos Stella. Nos pediriam para esvaziar aqueles lugares, não foi? 

 - E alguém tem que levar Sasha a um médico profissional. - Sugeriu Amanda, com o rosto retorcido de sofrimento pela garota. Lyra ficou em silêncio, ajoelhada no sangue.

 - Sophie... - Começou ela, sem olhar para cima. - Você pode fazer isso por mim? Levá-la para Tinyanga?

 - P-posso mas... - Respondeu a garota, um pouco confusa. - E você?

 - N atacaram em nossa própria casa. - Grunhiu Lyra, ainda sem levantar a cabeça. - Em nosso próprio saguão. Sequestraram a nossa líder debaixo de nossos narizes. Do meu nariz. - Admitiu ela, trêmula. - Eu deveria estar aqui no balcão quando eles atacaram. Deveria ter sido a primeira a confrontarem. Para retribuir isso... - Ela ergueu o queixo, com os olhos marejados e a mandíbula firme. - Eu vou ser a primeira a acabar com eles.

 Dalan olhou para os outros, procurando alguma objeção àquilo. Nada. Fechou os olhos, suspirou fundo e cruzou os braços, pensando em como prosseguirem a partir dali. - Você vai com Amanda para Wildest então. - Pediu o garoto, se virando para o restante dos companheiros. - Wieder e Dominic seguem para a Torre de Marfim, enquanto que Julie e Marcus verificam a Garganta Cortada. Koga vem comigo para Thomas Galvan. - As duplas se entreolharam e acenaram positivamente com a cabeça, cientes de seus objetivos. 

 - Vocês já podem ir se quiserem. - Pediu Lyra, trocando o pano verde que pressionava nas costelas de Sasha. - Amanda e Sophie podem me ajudar a tratar disso aqui. É melhor que sejamos os mais rápidos possíveis.  - Marcus concordou e se levantou, dando uma última olhada para a garota caída enquanto que Sophie tomava seu lugar. O restante dos membros da Aurora se dirigiu até as portas duplas, saindo para a chuva que começava a cair. Ainda nem eram dez da noite, mas ninguém ali se sentia à vontade de esperar. Sua líder havia sido sequestrada, sua companheira quase morta e o orgulho da guilda ferido. Agora era a hora do contra-ataque.

 Enquanto isso, as garotas tentavam estabilizar a situação da filha de Stella. O processo durou quase duas horas, com elas enfaixando costelas, estancando cortes e imobilizando o braço quebrado. Tudo para que a garota conseguisse aguentar a viagem até Tinyanga, onde receberia os cuidados adequados.

 Sophie estava extremamente quieta durante o processo, envolta em seus próprios pensamentos. A condição de Sasha era terrível, e supostamente ela era a mais forte da guilda. Um peso gélido desceu por seu esôfago enquanto se lembrava dos companheiros que haviam saído em busca de confronto. Como conseguiriam vencer?

 Estavam quase terminando quando alguém bateu na porta. Lyra se levantou, arqueando as costas. - Eu atendo. - Disse ela para as companheiras, um pouco extasiada pelas horas de trabalho duro. Estava tão cansada que nem sequer deu o trabalho de perguntar quem estaria querendo entrar na Aurora quase meia-noite.

 Foi apenas quando abriu as portas que se tocou do que estava acontecendo. Viu brevemente uma mulher curvilínea e encapuzada à sua frente, com um simples vestido azul por debaixo da capa, antes de um brilho verde a jogar para longe. A balconista da Aurora foi arremessada de costas, voando o saguão inteiro antes de cair no corredor escuro. - LYRA! - Gritou Amanda, se levantando em um instante enquanto que Sophie protegia Sasha.

 A invasora adentrou a sede da guilda, recolhendo calmamente o capuz. Era uma elfa de cabelos longos e escuros, com uma expressão de completa indiferença. Ela olhou para os lados com calma, percebendo as três membras da Aurora no ninho de mesas caídas. - Oh. - Disse, se aproximando. - Ela morreu?

 - Quem é você? - Disparou Amanda, se pondo entre ela e Sasha.

 - Veja, eu esperava que você respondesse a minha pergunta primeiro. - A elfa olhou para o lado, se calando por alguns instantes. - Só que acho que faltei em minha educação. Deveria me apresentar quando entrei. Meu nome é Alana. - Ela segurou as pontas da longa capa e dobrou os joelhos graciosamente. - Vim aqui mais cedo, mas não encontrei nenhum de vocês. Ou ao menos, quase nenhum. - Ela se inclinou um pouco, observando a garota caída.

 - Desgraçada. - Grunhiu a garota de cabelos castanhos, disparando na direção da invasora. Alana não demonstrou nenhuma reação, mas quando Amanda estava prestes a socá-la um rastro de energia verde se materializou brilhantemente, traçando um caminho horizontal para acertá-la no estômago. Ela não soltou nenhum som, mas foi atirada na direção da escada com uma força incrível, quebrando o corrimão, batendo nos degraus e caindo com o rosto no chão. Não se levantou.

 - AMANDA! - Gritou Sophie, mas no mesmo instante a invasora se pôs à sua frente, cobrindo-a com sua sombra. A garota olhou trêmula para cima, encarando olhos sem emoção.

 - Sabe qual é a propriedade da energia verde? - Perguntou a elfa. A membro da Aurora engoliu em seco. Aquilo era um teste? Uma armadilha? Não respondeu, mas cobriu lentamente o corpo de Sasha com o braço esquerdo. - Não, não, não... - Disse Alana, balançando a cabeça. - Toda energia manifestada de forma pura no ambiente tem uma propriedade característica, e pode ser explicitada por sua cor. Agora, qual é a propriedade da energia verde? - Repetiu, se abaixando e apoiando os cotovelos nos joelhos.

 - R-r-repulsão. - Respondeu Sophie, tremendo. A invasora por sua vez sorriu de forma fria e encarou Sasha, como se fosse a primeira vez que a tivesse visto ali.

 - Ela contou para vocês do acordo? Sobre vocês trabalharem para nós enquanto mantemos a líder de vocês sob nossa custódia? - Ela encarou a outra, que balançou negativamente a cabeça. - Bem, agora vocês sabem. - A energia novamente brilhou na escuridão do saguão, acertando Sophie no rosto. Ela foi impelida para o alto, caindo lentamente em cima de uma mesa próxima. Alana se levantou, espanando o vestido. Olhou para a garota em frangalhos abaixo de si, indefesa. No entanto, não tinha necessidade de matá-la. Desaad havia a enviado para alertar a Aurora do acordo caso Sasha tivesse falecido. Não havia pedido para se garantir dessa morte, e não viu nenhum motivo para isso. Se dirigiu à porta colocando o capuz de volta, consciente de que sua missão ali havia terminado.

 A sua havia, mas a de outras pessoas estava apenas começando.

 - Vai tão cedo? - Perguntou a voz de Lyra. A invasora olhou para trás, um pouco surpresa. A membra da Aurora estava com seu arco em mãos, apontando uma flecha na direção da elfa. - Tem certeza de que não quer ficar mais um pouco?

 - Não tenho tempo para isso. - Alertou Alana depois de alguns momentos de silêncio, com um quê de irritação passando por suas sobrancelhas. - Preciso ir à Wildest.

 - Wildest? Que coincidência. - Disse a garota com um zombeiro sorriso. - Estávamos indo para lá agora mesmo em busca da nossa líder. - Os olhos da invasora se estreitaram, até então o máximo de emoção que ela havia demonstrado. Lyra deu um passo à frente, saindo do corredor e adentrando o saguão. Olhou rapidamente para a direita, vendo Amanda caída perto da escadaria. - Foi você quem fez aquilo com Sasha?

 - Não. Foi o meu mestre. - Respondeu a elfa.

 - Então vou acabar com ele depois de terminar com você. - A garota de cabelos roxos atirou a flecha, que foi velozmente de encontro ao peito da encapuzada. No entanto, uma parede de energia verde se materializou, protegendo-a do ataque.

 - Você não estava aqui quando falei dos meus poderes, foi? - Perguntou a invasora, jogando a parede de encontro à adversária. Ela foi derrubada no chão mas antes que pudesse se levantar, Alana surgiu e pisou em seu tornozelo. O som dos ossos partidos se propagou pelo aposento, e Lyra gritou. - Hm? Tão fácil? - Perguntou surpresa, retirando o pé. - Você... não é uma Yulliana, né? É apenas uma humana normal. Como esperava que pudesse sobreviver contra mim? - No momento em que se agachava, no entanto, uma imensa lufada de vento a fez cair para trás. No meio de seu movimento algo duro se chocou contra suas costelas, fazendo-a trincar os dentes de dor.

 - Poderia por favor se afastar da minha amiga? - Perguntou Amanda, com o cotovelo nas costas da elfa. Um novo pulso verde começou a se formar abaixo dela, mas a garota segurou a encapuzada pelos braços e conseguiu trazê-la pra perto de si. As duas foram jogadas longe pela energia repulsora, atravessando a parede rachada da sede da Aurora e caindo ao lado do chafariz, rolando e batendo nas pedras rachadas e molhadas pela chuva do piso.

 Alana foi a primeira a se levantar, recolhendo o capuz com impaciência. Ela desferiu um novo ataque que iluminou a noite na praça. A membra da Aurora rolou para o lado, escapando por pouco do golpe que varou a cobertura do chão. Enquanto os pedaços ainda voavam pelo ar a garota usou o vento para jogá-los na direção da adversária, que conjurou uma nova parede para se proteger. A luz esverdeada serviu para fazê-la enxergar Amanda correndo em sua direção, com o punho estendido e rosto enfurecido.

 A invasora jogou a adversária para longe, fazendo-a bater na parede de uma das inúmeras casas vazias que as cercavam. Tentou atacar novamente, mas a garota se abrigou no interior do edifício, se misturando no meio da escuridão. Alana voltou a atacar, desferindo golpe atrás de golpe na fachada da morada, mas não encontrou seu alvo.

 A praça ficou em silêncio. A elfa cobriu sua mão com a energia verde, iluminando uma esfera ao redor de si. Ouviu passos e tentou atacá-los, mas sem sucesso. Rodou o chafariz, procurando a adversária nas janelas escuras ou nos corredores sombrios. Nada.

 De repente sentiu o respingar atrás de si, e varou a fonte com um estouro de repulsão. A água voou para longe junto com as pedras quebradas, mas não havia ninguém ali. Arregalou os olhos, e naquele momento Amanda surgiu detrás dela, jogando-a contra a construção quebrada. Caíram na água, onde a membra da Aurora não se demorou para prender sua cabeça nos destroços da base, socando-a repetidamente em seguida.

 O azul do líquido se misturou com o vermelho do sangue da elfa, alguns instantes antes de se tornar verde e brilhante. Alana conjurou uma nova onda de energia verde, que catapultou a outra para longe. A garota voou pelos ares e se chocou contra a entrada da guilda, caindo a alguns passos de Lyra, que se apoiava no batente com o arco nas mãos.

 A invasora quase não conseguiu se defender, erguendo uma parede bem a tempo para bloquear as flechas da adversária. A balconista da Aurora parou, esperando Amanda se levantar ao seu lado.

 - Pra quê lutar com tanto empenho? - Perguntou a elfa, saindo da fonte completamente encharcada, com o nariz sangrando e as roupas pingando. - Realmente não consigo entender. Não desejo matá-las.

 - Não foi o que pareceu com Sasha. E se a deixaram assim, não pense que iremos ficar de cabeça baixa. Assim como não vamos deixar que fiquem com nossa líder. - Disparou Lyra, retesando a corda do arco novamente. - Aqui nos protegemos. Somos uma família. Algo que pessoas como vocês jamais entenderiam. - Alana naquele momento congelou. Seu rosto se manteve sem emoção, mas os olhos se arregalaram de uma maneira que não parecia possível.

 A membra da Aurora viu aquilo como uma abertura. Atirou uma nova flecha, que surpreendentemente atravessou o braço esquerdo da elfa.

 Pensou em comemorar, mas naquele instante viu o olhar da adversária e sentiu a mesma coisa que Sasha havia sentido durante a luta com Desaad. O medo da morte.

 Percebeu algo brilhar atrás dela, e antes que notasse foi arremessada de encontro à invasora. Alana cessou seu movimento a agarrando bruscamente pelo pescoço, fazendo com que a garota engasgasse e perdesse o ar. - Nunca mais fale sobre isso. - Disse com a voz fria, e movimentou o braço ferido. Amanda, de longe, conseguiu pressentir o que estava vindo e gritou para tentar impedir. Era tarde. A palma da mão da elfa se fechou e penetrou a pele um pouco ao lado do umbigo da adversária, se afundando em seu corpo. Lyra ofegou e vomitou o sangue que também vazava pelo ferimento, manchando as roupas da outra. - Normalmente é preciso mais do que isso para matar um Yulliano. - Grunhiu por entre os dentes, flexionando os dedos lentamente. - Só que você não é uma, é? - Perguntou, retirando a mão em um som asqueroso e largando sua presa no chão.

 - LYRAAAAAAA! - Berrou Amanda, correndo ensandecidamente em sua direção. Da escuridão da Aurora, sem que ela soubesse, emergiram duas feras escamosas que também dispararam ao encontro da invasora. A membra da Aurora apenas viu os borrões verdes antes de entender o que estava acontecendo. Os Recons haviam entrado na luta. - Dalila! Sabre! - Gritou, em uma mistura de alívio e medo.

 Os répteis tentaram atacar Alana, enquanto que Amanda se jogou para proteger Lyra de ser pisoteada ou também atacada. A elfa no entanto, parecia ser o único alvo. Ela bloqueou um ataque pelo seu lado esquerdo com uma parede de repulsão, mas Sabre era tão forte que necessitava de toda a concentração para cuidar dele. Dalila aproveitou e a abocanhou, mordendo toda a região do ombro. A invasora gritou de dor, perdendo a concentração de seus poderes. O Recon macho aproveitou para cortá-la com as garras de seu pé, rasgando todo o lado esquerdo da adversária, que caiu de joelhos.

 Completamente ferida, ela invocou seus poderes mais uma vez, jogando o que restava do chafariz atrás de si em cima dos animais em uma explosão de repulsão. As feras foram jogadas para longe, mas o escopo do golpe não acertou Amanda. Ela manteve em cima de Lyra, cobrindo-a com seu corpo. Alana se levantou, trêmula, encarando as duas membras da Aurora aos seus pés. - Vão para o inferno. - Disse, abrindo a mão esquerda em uma palma novamente.

 Antes que pudesse atacar, sentiu algo puxando seus braços. Tentou se livrar, mas o sangue perdido já havia consumido quase todas as suas forças. Virou a cabeça para trás, vendo uma boina branca pendurada no ar. Olhou arregalada para baixo, procurando o que estava a prendendo. Não viu nada, exceto roupas sem corpo.

 - AMANDA, AGORA! - Gritou Sophie, se materializando com os olhos fechados. A garota levantou a cabeça, observando a cena à sua frente. Grunhiu em fúria e usou seus poderes para aproximar um pedaço partido da fonte para perto de si. Se levantou com o objeto nas mãos, encarando Alana com uma expressão de fúria silenciosa.

 - Nunca mais ataque minha família. - Ao dizer isso, ela usou todas as suas forças para golpear a elfa na face com o reboco do chafariz. A pedra explodiu no rosto dela, quebrando alguns ossos em seu caminho. Sophie a largou e a invasora caiu no chão, derrotada.

 A praça ficou em silêncio por alguns segundos, como se estivesse se recuperando da luta que havia acontecido em seus terrenos. Foi apenas quando um dos Recons se levantou, rugindo, que o feitiço se quebrou.

 - Lyra! - Se alarmou a garota de cabelos loiros, ajoelhando ao lado dela. Amanda se virou para ajudar, mas algo segurou seu tornozelo. Ela olhou para baixo, vendo que Alana ainda a encarava através de seu rosto ensanguentado, mesmo com um dos olhos semi-fechados pelo enorme inchaço na bochecha.

 - Se acha que... - Ela cuspiu um dente quebrado, novamente sem emoção alguma. - ... vão conseguir nos capturar, sabia que é impossível. Somos o... Culto Púrpura. Apenas voltaremos mais... fortes. - Ela largou a garota, encarando o céu estrelado acima delas. - Aoena Ortaris.

 Sua capa se agitou e expandiu, envolvendo todo o seu corpo em uma espécie de invólucro roxo e prateado. Antes que alguém pudesse fazer alguma coisa, ele girou em um redemoinho de linho e sumiu com uma lufada de vento, deixando as três garotas sozinhas na noite escura.

 - O que é isso? Magia? Estamos lidando com magos? - Perguntou Sophie ainda ajoelhada, encarando Amanda com medo no rosto. - Amanda?

 - Sophie, pegue um kit médico no almoxarifado. Depressa. - Pediu a garota, ainda encarando o espaço onde Alana havia sumido. - Precisamos estabilizar Lyra e mandá-la para Tinyanga junto com Sasha ainda hoje. Leve um Recon com você para voltar rápido depois disso.

 - Sim. - Respondeu, se levantando e correndo até a Aurora. No meio do caminho, ela parou e se virou para a companheira, que se ajoelhava ao lado da amiga. - E você, Amanda? Não vai com a gente?

 - Irei ficar aqui na sede. - Disse ela, observando o rosto de Lyra. - Seja o que quer estejamos enfrentando, tenho certeza de que ainda não acabou. - A garota levantou a cabeça e espreitou uma rua vazia, como se esperasse que algo surgisse do meio da escuridão. - Pelo contrário. Acho que está apenas começando.

 Se lembrou dos companheiros que haviam partido, talvez prestes a confrontar os membros do tal Culto Púrpura. Que os deuses os protejam, orou Amanda. Iriam precisar.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Aurora: Capítulo 23 - Quebrada


AURORA
CAPÍTULO 23 - QUEBRADA

 Era uma noite escura e abafada em Helleon. Uma chuva forte se anunciava, predita pelas nuvens pesadas que se aglomeravam à distância. Nas ruas, o breu era total. O próprio chafariz da praça em frente à sede da Aurora era apenas um som no vazio, um barulho constante de água derramada. 

 Um raio cruzou os céus, tracejando um caminho entre as nuvens. Sua energia iluminou brevemente a praça, revelando um conjunto de cinco pessoas encapuzadas de roxo e prateado, todas olhando para o prédio à frente. A luz se apagou tão rápido quanto surgiu, e eles foram novamente engolidos pela escuridão. No entanto seus passos conseguiam ser ouvidos, caminhando sempre em frente.

 Na sede, por sua vez, as pessoas continuavam com suas tarefas normais. A maior parte da guilda se concentrava em construir os estábulos para os Recons, obra que não havia nem perto de terminar.

 - Saco... - Praguejou Wieder baixinho, passando a mão pela testa enquanto observava sua planta, iluminada fracamente por uma vela. Com o canto do olho viu que Dalan e Amanda se aproximavam, carregando tábuas de madeira. - Vocês não deveriam estar cuidando dos seus bichos? - Perguntou, levantando a cabeça.

 - Sophie conseguiu controlá-los. - Respondeu Amanda calmamente, apontando com o dedão para o quintal atrás de si. - Isso pelo menos deve nos dar um tempo para descansar. Se eu soubesse que cuidar de Recons fosse tão cansativo, eu...

 - Não complete essa frase. - Pediu Dalan, ficando sua tábua no chão e se apoiando nela. - Eu já gastei uma bela quantidade de dinheiro. Por favor, não me torne mais infeliz. - Acrescentou o rapaz, melancólico.

 - Pelo menos eu acho que não vamos precisar de mais material. - Disse o anão, voltando a olhar para sua planta, coçando a barba.

 - Como está a construção até agora, Wieder? - Perguntou Dalan, se encurvando para olhar o diagrama.

 - Nós não conseguimos completar nem um terço do projeto. - Admitiu ele, suspirando profundamente e descendo do banquinho alto que se encontrava. - Só queria terminar de montar o material antes de irmos dormir.

 - Ah, mas poderíamos ser mais rápidos! - Reclamou Julie em tons de indignação e raiva, sentada atrás deles martelando tábuas com Koga. Ela se levantou e abriu a janela do prédio da Aurora, colocando a cabeça para dentro da área de musculação da guilda. - Ouviu essa, Sasha? Poderíamos ser mais rápidos se alguém estivesse nos ajudando!

 Sasha estava realizando flexões no chão quando foi chamada. Com um pouco de cansaço, a garota terminou seus movimentos e se levantou, puxando uma toalha branca para secar seu suor. - Eu já disse que estaria ocupada, Julie. - Disse à companheira com a voz irritada, se aproximando da janela. - Irei ajudá-los quando terminar aqui!

 - E isso vai ser quando acabarmos de montar o estábulo sozinhos? - Perguntou a garota, abrindo os braços e indicando a movimentação dos companheiros. - Que tal ajudar a gente e depois fazer o que quiser?

 - Se chama estar pronta para uma missão iminente. - Disse Sasha com a voz seca, segurando as duas pontas do vidro. - Não acho que você consiga entender isso. - Ao terminar essa frase, ela fechou a janela com força, trancando-a rapidamente em seguida. A outra garota ficou algum tempo imóvel, até que se virou com os olhos arregalados e uma expressão lívida.

 - Eu vou matar ela. - Pronunciou meio que sorrindo, balançando o punho.

 Enquanto que a guilda se concentrava nos fundos, não restava ninguém vigiando a entrada. Com isso, os encapuzados adentraram o saguão sem dificuldade, apenas quebrando a fechadura da porta da frente. Seu líder se adiantou, vestido com a capa e um simples traje negro por baixo, observando o grande aposento em que se encontravam. Estava escuro, muito devido às cortinas nas janelas, mas as mesas onde os membros da Aurora faziam refeição eram visíveis, um lembrete solitário de dias mais tranquilos.

 - Alana, Jyll. - Chamou Desaad, o homem à frente, e duas figuras se aproximaram. A primeira era uma elfa alta e curvilínea, com cabelos longos e negros, olhos castanhos e uma expressão de completa apatia, que usava um simples vestido azul por baixo da capa. Já a segunda era a fada que Sophie havia encontrado na prefeitura, de rosto redondo, cabelo curto e azul-escuro, e olhos negros e grandes. Ela por sua vez vestia uma roupa mais complicada. Um adorno prateado cobria seus cabelos, e suas vestes possuíam um generoso decote. Um top de linho roxo-escuro terminava bem abaixo dos seios, de onde saía uma traje marrom e transparente, com uma longa tanga ornamentada das cores da capa no quadril. Elas se aproximaram do líder, que continuou olhando para o saguão. - Certifiquem-se de que não teremos companhia hoje.

 A fada acenou com a cabeça e colocou as mãos ao redor da cabeça da companheira elfa. Um brilho multicolorido saiu das têmporas da outra mulher, e as duas se separaram. A mais alta se dirigiu à sombria parte de trás da sede da Aurora, enquanto que a mais baixa se aproximou das portas. Ela estendeu as mãos e uma energia verde se expandiu, cobrindo toda a parte frontal do prédio e iluminando o aposento.

 - Agora... o escritório deve estar no segundo andar. - Disse Desaad, caminhando até as escadas enquanto Alana contornava o saguão, fechando todas as janelas. O enorme ente e o mascarado o acompanharam, enquanto que as mulheres garantiam que as pessoas que a guilda estivesse velada.

 A líder da Aurora, por sua vez, estava alheia à tomada de sua própria morada. Iluminada por duas velas fortes, estava com o caderno que Sophie havia recolhido do escritório do prefeito, com as mãos na cabeça enquanto pensava em uma forma de abri-lo. Tão concentrada que se encontrava, só percebeu as batidas na porta quando se repetiram pela terceira vez. - Pode entrar. - Disse ela distraída, ainda encarando a medalha.

 Percebeu que havia algo de estranho quando o ente gigante entrou em seu campo de visão, se agachando para passar da porta. Antes que Stella pudesse dizer algo, sentiu uma mão fina segurá-la pela garganta. Tentou se desvencilhar, mas quem quer que estivesse a prendendo, era muito forte. Enquanto tentava se desvencilhar de todos os jeitos, Desaad foi calmamente até as cadeiras na frente da mulher, se sentando e levantando o capuz, mostrando seu rosto fino e cabelos loiros penteados para trás. - Boa noite, senhora... Stella? - Perguntou, mas não houve resposta. - Zaulin, deixe-a em paz. Não é como se fosse escapar desta sala.

 O mascarado soltou o aperto, e a líder da Aurora conseguiu respirar novamente. Olhou em volta, vendo que o ente permanecia ao lado da porta. Realmente, não havia um bom método para sair dali. Inspirou profundamente, tentando não perder a calma. Seja o que quer que estivesse acontecendo, ela precisava ao menos ter a cabeça fria. - Esperava que marcassem reunião. - Soltou com escárnio.

 O invasor soltou um sorrisinho antes de continuar. - Meu nome é Desaad. - Respondeu o homem, juntando as palmas das mãos e colocando-as embaixo do queixo. - Estou aqui para falar sobre um certo caderno que acredito estar em suas mãos. - Stella olhou de relance para a agenda, mas antes que fizesse algo o mascarado se adiantou, recolhendo o objeto. Ele o atirou para Desaad, que não mudou de expressão. - Bem, um mistério a menos.

 - Se veio apenas por isso, pode ir embora. - Disse a mulher, corando. - Eu não consegui abri-lo.

 - Não esperava que conseguisse. - Comentou o invasor descompromissadamente, rodando a agenda nas mãos. - Deixamos este selo para que o nosso estimado prefeito não conseguisse ter provas de nosso envolvimento. E como uma isca para que ele mostrasse seus verdadeiros parceiros.

 - O que quer dizer com isso? - Perguntou Stella. O homem afastou um pouco da bagunça da mesa antes de apoiar seus cotovelos na superfície.

 - Quero dizer que estávamos esperando que o prefeito se sentisse ameaçado, e que corresse para entregar o caderno nas mãos de seus aliados. - Ele puxou a cadeira para frente, encarando a outra nos olhos com uma expressão fria. - Ou seja, a guilda que esteve trabalhando com ele.

 Stella pensou em suas opções. Claramente os invasores estavam errados, mas isso não adiantaria de nada no momento. Eles estavam no controle, e poderiam matá-la rapidamente se quisessem. Precisava saber de seus objetivos, e considerar dar o que quisessem. - Bem, vocês conseguiram. Entraram aqui e recuperaram seu caderno. Poderiam sair agora?

 - Ah, não. - Disse Desaad, manifestando um breve sorriso. - Veja, nós até que gostamos do trabalho da Aurora. Gostaríamos de... estender esse contrato. - Stella voltou a corar, percebendo o buraco que estavam se metendo. - Só que há uma condição, para que a guilda não venha a se rebelar no futuro. - Ele apontou para a mulher. - Você vem conosco.

 A líder da Aurora rangeu os dentes. - Só irão me tirar daqui como um corpo.

 - Não desejo isso. - Respondeu o homem com os olhos arregalados, como se tivesse ficado genuinamente assustado. - Por favor, encaro o assassinato como a última opção. Enquanto viva, você pode nos servir como um meio de garantir que a Aurora não reaja. - Ele se permitiu novamente um sorriso miúdo, enfurecendo a líder da guilda.

 - Irei me repetir. - Declarou ela, esfregando com força os dedos na superfície da mesa. - Só sairei da minha casa morta.

 - Assim como esses dois. - Disse uma voz nova na conversa. Todos ali se viraram para a porta, onde Sasha aguardava com uma das mãos no batente. Ela estava encharcada de suor, vestida com uma camisa azul folgada e uma calça negra e colada. Havia fúria em seus olhos, uma ira fria e brilhante. Ao invés de se sentir aliviada, Stella sentiu um peso gélido descer pelo estômago.

 - Sasha, são os homens que estavam comandando o prefeito. Vá procurar ajuda agora. - Implorou, mas sua filha não pareceu ouvir.

 - Apenas depois que eu acabar com esses idiotas. - Disse, adentrando o escritório enquanto que estalava os dedos de uma mão. - Se acham que podem invadir nossa guilda e fazer o que bem quiserem, só me resta--

 - Rohr. - A interrompeu Desaad, estreitando os olhos. O ente, escondido sem querer ao lado da porta, saiu das sombras. Ele girou o braço, agarrando o rosto da garota e a jogando para fora do aposento em um único movimento. Sasha só teve tempo de arregalar os olhos enquanto era envolvida pelos dedos de madeira do adversário, antes que fosse impelida com tanta força para trás que quebrou o corrimão do segundo andar no choque, batendo na parede do outro lado do saguão antes de cair no chão.

 - SASHA! - Gritou Stella, se levantando imediatamente. Zaulin a segurou pelos ombros, forçando-a para baixo, enquanto que o outro homem se punha em pé, caminhando tranquilamente para fora.

 - Acho que esse é um bom momento para mim, senhora Stella. - Disse ele, retirando a capa e a jogando para o ente. - Além de convencê-la a se entregar sem luta, irei ensinar à sua guilda o que acontecerá caso ousem nos enfrentar.

 - NÃO! SASHAAA! - Berrou Stella, tentando segui-lo. O mascarado agarrou seu rosto e o esmurrou contra a mesa. O nariz da mulher se partiu, esparramando sangue pelos papéis desarrumados. Zaulin em seguida a agarrou pelo pescoço, prendendo-a enquanto que seu líder descia tranquilamente as escadas.

 - Irei lhe dizer uma coisa muito importante, garota. - Disse o homem, chegando ao térreo enquanto que ela ainda tentava se levantar. A energia verde brilhava das janelas e da porta, contribuindo para um clima espectral. - Eu normalmente não entro em lutas deste porte. No entanto, é necessário que vocês conheçam o medo. A humilhação. Afinal... - Ele parou, desta vem sem sorrisos. - Irão trabalhar a partir de hoje para mim.

 - Vá pro inferno. - Soltou a garota, limpando o sangue da boca com as costas da mão. Desaad balançou a cabeça em resposta.

 - Bem, acho que isso só prova que o diálogo não nos servirá para nada. - Ele esticou o pé direito um pouco para trás, levantando os antebraços. - Você poderá me atacar primeiro.

 Sasha nem sequer pensou, apenas disparou de encontro ao adversário. Desferiu um soco com a mão esquerda, que foi rapidamente bloqueado pelo antebraço direito do inimigo. Se surpreendeu um pouco, mas girou o corpo e tentou chutá-lo com a perna direita. Novamente bloqueada, desta vez pela outra mão de Desaad, que a jogou no chão. A garota imediatamente se levantou, preparando um soco no rosto do homem. Ele por sua vez agarrou sua mão com facilidade, puxando-a para baixo. Sasha se viu impelida para o chão, apenas para ver um joelho se aproximar rapidamente da sua face. Foi golpeada com força na boca, caindo para trás. O sangue se derramava em cascatas, e a garota se apoiou com uma das mãos enquanto segurava a região ferida com a outra. No canto de seu campo de visão embaçado, percebeu dois pés ficando mais próximos.

 - Super-velocidade, não? - Perguntou o inimigo, parando ao seu lado. - É um poder bastante interessante. No entanto, sem treinamento isso não servirá para nada contra alguém com boa reação. Todos os seus golpes são previsíveis, seu corpo já confessa o que irá fazer antes mesmo de você disparar. - A garota rangeu os dentes, flexionando os dedos no chão. Se levantou para golpear Desaad, mas o homem agarrou seu pescoço antes que atacasse. - Sinto lhe dizer, mas infelizmente você perdeu suas chances. - Disse ele, apertando a traquéia de Sasha, que tentava debilmente se livrar. - Tente por favor não morrer.

 Ele desferiu uma nova joelhada no estômago da garota, retirando o ar que lhe restava. Ela arfou, cuspindo sangue, e o homem a jogou para longe. Seu corpo bateu com força na parede, rachando um pouco da madeira. Caiu sem controle, mas Desaad a impediu de atingir o chão. Segurou seu ombro e lhe deu um monstruoso soco no estômago. Antes que Sasha conseguisse sequer entender o que estava acontecendo, veio mais um. E outro. E outro. E outro. Um deles atingiu as costelas, acertando-as com tanta força que pareceram trincar. A garota perdeu completamente a noção do que estava acontecendo. O adversário continuava a golpeá-la na mesma região, e parecia que só existia aquilo na realidade.

 Finalmente, os golpes pararam. Sasha finalmente atingiu o chão, tentando respirar através do sangue na boca e nas narinas um ar que não vinha de jeito nenhum. No entanto, não havia acabado. Sentiu uma de suas marias-chiquinhas sendo puxada para cima, e foi levantada até conseguir olhar o rosto do homem. Percebeu em sua expressão uma loucura bastante escondida em seus olhos, emergindo de uma escuridão profunda. Aquilo lhe deu um sentimento que não sentia havia muito tempo. Medo de morrer.

 Desaad usou a testa para golpeá-la na face, explodindo seu nariz. O sangue espirrou para todos os lados, e a garota cambaleou para trás. Tentou inutilmente socar o ar, mas seu punho foi agarrado. Não conseguiu ver o que estava acontecendo, cega pela dor. O adversário estendeu seu braço e o cotovelou no meio, quebrando-o. Sasha gritou, sentindo seu mundo girar. O homem a jogou para longe, até que sua cabeça bateu no balcão.

 No andar de cima, Zaulin conseguiu arrastar Stella para que conseguisse ter uma noção do que estava acontecendo. A mulher foi posta em cima do corrimão, agarrada pelo pescoço, sem escolhas exceto observar o saguão abaixo. Viu o homem se aproximar da filha, que jazia ensanguentada. - SASHA! SASHA! - Gritou ela, mas não fez surtir nenhum efeito. Desaad segurou a cabeça da garota em suas mãos e a jogou no balcão, prendendo-a na superfície. Largou-a e socou seu rosto, levando-a ao chão novamente. - Não... não... - Stella sentiu uma lembrança voltar a atormentá-la. Seu marido a encarava, um pouco antes de morrer. E à sua frente, mais um membro de sua família parecia prestes a encarar o mesmo destino. O invasor não levantou Sasha desta vez, preferindo-a chutá-la no estômago. Sangue novamente foi cuspido, e a líder da Aurora se viu com apenas uma alternativa. - EU ME RENDO! EU ME RENDO!

 Desaad, no entanto, não pareceu escutar. Voltou a levantar a garota, desta vez pela gola da camisa, e socou-a novamente no rosto com a mão livre. - EU JÁ DISSE QUE ME RENDO! - Gritava a mulher acima, inutilmente. O homem jogou sua presa para longe, derrubando várias mesas no caminho. - POR FAVOR, PARE! - Ele continuou, se aproximando da garota que jazia no chão. - SASHAAAA! - A agarrou pelo pescoço, fechando seus dedos. Sasha nem sequer conseguia juntar energia para impedi-lo, parecendo apenas aguardar a morte que chegava. Os dedos do homem se apertavam em sua traqueia, cada vez mais forte, mais forte, até que...

 - Desaad. - Disse finalmente Zaulin, e sua voz pareceu chegar à percepção do homem. Ele parou, arregalando os olhos como se tivesse acabado de sair de um transe. Soltou Sasha, que caiu sem forças. O homem aguardou alguns instantes para se recuperar, parecendo tonto. Após isso, olhou para cima. A face de Stella estava inchada de lágrimas e sangue, enquanto tinha olhos apenas para a filha caída. O líder dos invasores pigarreou, tentando se recompor.

 - Bem, conseguimos arranjar um meio de negociar, então. - Ele sorriu, ainda com o sangue quente de Sasha no rosto. - Zaulin, por favor a leve para fora. Rohr, chame as garotas para cá. Está na hora de irmos para casa. - Ordenou para seus companheiros. Enquanto eles desciam as escadas do segundo andar, o homem se ajoelhou perto da garota em frangalhos, retirando os entulhos da frente. - Eu... peço perdão por meu descontrole. Temo que tenha sido excessivo de minha parte. Foi um erro que tentarei ao máximo não repetir. - Não houve resposta do outro lado. A membro da Aurora estava com a face virada para baixo em uma poça de sangue. Desaad se aproximou ainda mais, quase sussurrando. - De qualquer forma, acho que mostrei o meu ponto, não? Você irá nos obedecer. Você e toda a sua guilda. - Seus olhos se iluminaram com um brilho ameaçador, e sua voz abaixou mais alguns decibéis. - Caso contrário, eu irei matar a sua mãe. Da mesma forma que quase te matei. E depois, se ainda quiserem se rebelar, irei partir para seus companheiros. Um. Por. Um. E todos serão executados na sua frente, e a deixarei com o corpo deles para te lembrar de sua insensatez. Compreendeu?

 Novamente, não houve resposta. O homem por sua vez se levantou para sair. Antes que desse um passo, no entanto, sentiu uma mão agarrá-lo pelo tornozelo. Se virou para trás, vendo que Sasha havia o agarrado, ainda com a face virada para baixo. Ela começou a falar, com a voz abafada pela poça de sangue. - Se acha... que vamos deixar você vir aqui... e fazer o que quiser... - A garota levantou o rosto, se apoiando no cotovelo do braço que agarrava o adversário. Rangia os dentes, com os olhos brilhantes de ira. - ... não conhece a Aurora...

 Desaad observou aquilo sem reação aparente. Olhou para trás, conferindo a área. Estavam sozinhos. Rapidamente ele se agachou, abrindo a mão em uma palma e a enfiando nas costelas inferiores de Sasha. A garota pensou em gritar, mas o berro havia se perdido na garganta. Sentiu a mão quente do adversário se torcer no meio dos músculos, resvalando nos ossos, uma dor que não achava que era possível. O homem segurou o queixo dela com a mão livre, virando seu rosto para que se encarassem. Desaad se mantinha sem emoção, apenas com o brilho louco no olhar. Sasha por sua vez tremia, com os olhos arregalados pela agonia. - Então acho que a Aurora vai ter se adaptar aos novos tempos. - Ele retirou a mão, e a garota sentiu o frio mortal descer sua espinha. - Peço apenas que sobreviva o suficiente para que alerte seus companheiros. Senão terei que vir aqui por conta própria.

 Ele se levantou, limpando o sangue na mesa mais próxima. Caminhou um pouco com os olhos fechados, tranquilo e cansado. O ente e as duas mulheres chegaram ao saguão, observando distraidamente a destruição caótica que os cercava. - Os outros já perceberam que a porta está trancada. Devemos sair agora. - Disse a elfa, tão calma que parecia estar falando do tempo.

 - Sim. - Disse Desaad, olhando para trás. A fada se aproximou das mesas, vendo a ensanguentada Sasha estirada no chão. - Jyll, chegou a nossa hora. Vamos.

 - Qual era o poder dela? - Perguntou a mulher, se apoiando nos joelhos. O líder suspirou, aceitando a capa que o ente o entregava.

 - Super-velocidade. Faça o que quiser, apenas seja rápida. - Disse Desaad, vestindo sua roupa. Jyll se ajoelhou perto da garota caída, segurando sua cabeça. Sasha não tinha como reagir, e um brilho multicolorido saiu de suas têmporas. A energia verde que cobria o saguão cessou, mergulhando-o na escuridão. Quando a fada se levantou, olhava para as mãos com alegria. 

 - Isso pode ser interessante. - Disse ela, sorrindo para os companheiros. Os quatro colocaram suas capas, caminhando para a porta. Sasha ouviu seus passos, tentando se levantar. Não possuía mais forças e a dor a abraçava com empenho, mas ela ainda assim manifestou sua última grama de vontade. As portas da Aurora se abriram, jogando um pouco do brilho noturno no saguão. A garota apoiou a mão trêmula no chão, procurando se levantar. Precisava salvar sua mãe. Precisava salvar a Aurora. Era tudo que lhe restava. Seu pai havia lhe confiado aquelas duas. Era tudo que restava dele. Não podia deixar que viessem ali e destruíssem o que havia lutado tanto para manter. Tinha que se levantar. Tinha que ter forças. A mão tremia, perdendo o apoio. Era sua responsabilidade. Seu dever. Sua aurora, o brilho que iluminava a noite sombria. Sua única razão de ser.

 As portas se fecharam e a mão de Sasha escorregou no próprio sangue. Ela caiu, e a escuridão finalmente abraçou o saguão e a garota que jazia no meio dele.