AURORA
CAPÍTULO 31: SIPHO KULELA
Stella Alba estava sentada em uma simples cadeira de madeira, apoiando os dois cotovelos em uma mesa com os dedos entrelaçados, perdida em seus próprios pensamentos. Seu semblante depressivo se destacava naquela cabana de feno de Tinyanga, marcando seu rosto magro. Havia perdido bastante peso durante o período em que foi mantida refém do Culto Púrpura, mas mesmo com as constantes insistências dos curandeiros, preferiu se manter à parte dos tratamentos. Era melhor que focassem no restante dos membros da Aurora.
A líder da guilda esticou a cabeça para trás, fechando os olhos. A maior parte dos seus companheiros estava em situação crítica. Dalan, Koga e Lyra ainda não haviam acordado, e Marcus, Wieder e Dominic continuavam sob cuidados médicos. Apenas Amanda e Sasha estavam de pé, e Julie deveria acompanhá-las naquele dia. A lembrança da garota loira havia redobrado o sentimento de culpa e infelicidade de mulher. Era apenas uma questão de tempo até descobrir o que acontecera à irmã...
Naquele momento, como um capricho dos deuses, uma voz conhecida ecoou por todo o vilarejo. Stella suspirou pesadamente e, com algum esforço, se levantou para ir dar as notícias terríveis.
- COMO ASSIM EU NÃO POSSO VÊ-LA? - Gritava Julie para o reptiliano, exigindo a entrada em um aposento selado. Estavam em um longo corredor na ala médica principal de Tinyanga, onde a garota vestia uma simples e longa bata branca, o uniforme padrão dos pacientes. Ela tentou abrir a porta novamente mas o enfermeiro a impediu, agitando sua crina multicolorida.
- Perdão, senhorita, mas sua irmã possui uma condição médica que desconhecemos! - Suplicou ele com a voz sofrida, claramente afligido por ter que impedir uma humana. - Peço apenas que descanse. A senhorita acabou de se recuperar!
- Se Sophie está aí dentro, eu preciso vê-la. - Ordenou a garota por entre os dentes. - O que está acontecendo com ela? - Não houve resposta do outro lado, com exceção de uma olhada para baixo por parte do reptiliano. Algo que enfureceu de vez Julie. - O QUE ACONTECEU COM ELA?
- Controle-se. - Disse uma repentina Sasha atrás dela, segurando o ombro da companheira enquanto que Amanda a acompanhava ao seu lado. - Estamos em um hospital. Explodir desse jeito irá apenas perturbar os pacientes. - Os olhos de Julie se arregalaram ao reconhecer a voz da colega.
- Você estava com ela, não estava? - Perguntou em fúria, se virando para a outra. - Se incomoda em me dizer o que aconteceu? - Indagou agitada, colocando o dedo no peito de Sasha.
- Ela foi atacada por algo que não conhecemos. - Respondeu fria e calmamente a garota, segurando a mão que a cutucava e afastando-a. - Se te ajuda alguma coisa, ela nos auxiliou bastante na luta contra o líder do Culto Púrpura. Sem ela, talvez...
- Você acha que eu me importo? - Interrompeu Julie, recolhendo violentamente sua mão e a espalmando em seu próprio peito. - Eu quero que ela volte viva, não que morra honradamente!
- A melhor coisa que poderia fazer agora é ter orgulho de sua irmã. - Disse a outra, ignorando solenemente o que a companheira dizia. - Ela deu o seu máximo para ajudar a Aurora, mesmo encontrando uma luta muito acima de seu nível. Diferente de muita gente, eu não a chamaria de covarde.
Naquele momento, em um centésimo de segundo, Julie manifestou a expressão mais lívida que poderia gerar. Em seguida ela fechou a boca e desferiu um tapa no rosto da companheira, com o som estalando no corredor. A marca da mão manchou de vermelho a bochecha direita de Sasha, que apenas arregalou os olhos pela surpresa e pela dor.
- O.K, acho que já chega. - Soltou Amanda de forma preocupada, se pondo no meio das duas enquanto as afastava com as mãos. Julie por sua vez tentava avançar, ainda possuída pela raiva.
- Estou cansada de suas acusações, Sasha! - Disse com os olhos bem abertos enquanto tentava passar do bloqueio de Amanda. - Principalmente vindo de alguém que se importa mais com uma maldita medalha de honra póstuma do que com a vida dos companheiros.
- Não me toque de novo. - Respondeu a garota de cabelos azuis, segurando a região ferida. - Nunca mais, me ouviu? - Ela também tentou se livrar do braço em seu ombro, procurando empurrá-lo para longe. Quando parecia que iriam cair nas vias de fato, Stella finalmente chegou àquele corredor.
- CHEGA! - Gritou, atraindo a atenção das três garotas que se viraram para encará-la. A líder da guilda vinha se aproximando apressadamente, acompanhada pelo reptiliano responsável pelo vilarejo, Galeh. A mulher se aproximou delas com as mãos na cintura, se virando para a de curtos cabelos loiros. - Julie, se alguém aqui é culpada pela situação da sua irmã, sou eu. Sinta-se à vontade se quiser bater em mim pelo que aconteceu com ela. - Um momento de silêncio se seguiu, onde por alguns ínfimos de segundos pareceu que a garota iria realmente partir para cima de Stella. No final, contudo, ela se livrou de Amanda e se afastou com passos fortes, limpando o brilho das lágrimas enquanto que o rosto se contorcia de ira. - Terei uma conversa com você depois. - Disse a mulher para a filha, que apenas se virou de costas.
- Peço perdão, senhora. - Pediu Galeh, se pondo à sua frente. - Não deveríamos ter tratado a situação desta forma. Tenho certeza de que no futuro iremos...
- Escute, eu só quero saber da situação de Sophie, tudo bem? - Interrompeu Stella, esfregando a mão na testa com pesar. - O que podemos fazer para salvá-la? E quando pergunto isso, estou aceitando qualquer opção.
- Sinto muitíssimo, mas acho que chegamos em nosso limite. - Respondeu o reptiliano, se afastando alguns passos enquanto que espalmava as mãos para frente. - Não conseguimos identificar o que causou aquele efeito em sua companheira. Ela não reage a nenhum estímulo externo, e até mesmo seus sinais vitais estão no mínimo. Achamos que os olhos escurecidos sejam um sinal de magia, mas nenhum de nós aqui é especialista nisso! - Com aquelas palavras, Stella se afastou para sentar em um banco, enquanto que Amanda juntava as mãos no rosto e as pressionava com força. A líder da Aurora começou a sentir o desespero tomar conta do coração enquanto que torcia colossalmente as mãos. Não parecia ser verdade. Não poderia ser.
- Se é magia, senhor... - Começou o enfermeiro hesitante, se virando para o chefe de Tinyanga. - Talvez seja melhor comunicar ele, não acha?
- Calado. - Ordenou rispidamente Galeh, mas Stella já havia se levantado.
- Ele quem? Existe alguma forma de salvarmos Sophie? - Perguntou agitada. Os reptilianos rapidamente desviaram o olhar, parecendo incomodados por terem chegado naquele assunto.
- Existe... um de nós que vive em uma pequena cabana na floresta. - Começou o chefe, passando os dedos pela crina que crescia atrás do pescoço. - Seu nome é Sipho Kulela. É um curandeiro um pouco... ortodoxo, que se envolve com doenças e tratamentos um tanto quanto... sobrenaturais. Se me entende. - Cada palavra parecia ser uma tarefa hercúlea para ele, mas isso não importava para a mulher.
- E onde ele está? - Perguntou dando um passo à frente, inclinando minimamente a cabeça. - Qual o problema de encontrá-lo?
- Kulela é um tanto... rebelde. - Admitiu Galeh, encolhendo os ombros em uma expressão nada sutil de culpa. - Ele não sabe agir como um verdadeiro reptiliano, especialmente na companhia de outras raças. Nós o levamos para longe, embora não consigamos afastá-lo de vez.
- Não me importa se esse sujeito é Zemopheus em pessoa. - Os reptilianos se encolheram com aquela palavra, algo sumariamente ignorado por Stella. - Se ele sabe como salvar nossa companheira, nós iremos para lá. Vocês duas. - Chamou as outras garotas, se virando para elas. - Vão e busquem Julie. Sophie só está piorando com o passar do tempo, e não estamos ganhando nada aqui paradas. Busquem esse tal Kulela agora mesmo.
- Certo. - Disse Amanda, balançando afirmativamente a cabeça. Ela começou a correr na direção do corredor por onde Julie havia sumido, mas antes que Sasha pudesse segui-la, sua mãe a segurou pela mão.
- Estou mandando três membras da Aurora, entendeu? Não quero que voltem duas. - Avisou no ouvido da filha. A garota a encarou por cima do ombro, com seus olhos azuis-claro encarando sem piscar o outro par da mesma cor.
- Irei tentar. - Disse simplesmente, virando o rosto e se afastando da líder.
Meia hora depois, as três estavam caminhando em uma trilha de terra que saía de Tinyanga para entrar no coração da Mata Cellintruniana, cercada por tortuosas árvores e repleta de pássaros piando e pequenos mamíferos se movendo por entre os arbustos. O som silvestre era o único que conseguia ser ouvido, visto que as garotas da guilda se mantinham sem trocar uma palavra. Algo que incomodava profundamente Amanda.
Ela começou a andar de forma mais lenta, deixando Julie se aproximar enquanto que Sasha se afastava. Respirou fundo, procurando a melhor forma de dizer o que queria. No entanto, foi a outra quem quebrou o silêncio primeiro.
- Sabe, quando nós tínhamos treze anos, eu e Sophie morávamos em um beco numa cidade ao sul de Helleon. - Começou ela, encarando as folhas que se amontoavam no chão. - Fazia uns três anos desde que nosso pai morreu. Um dia Sophie estava morrendo de fome, e eu achei realmente que ela iria morrer naquele dia. Eu tinha... eu tinha um vestido que era da minha mãe, a única coisa que havia sobrado da destruição da nossa casa. Decidi ir ao centro da cidade para vendê-lo naquele mesmo instante, para comprar comida. - Seus olhos começaram a ficar marejados, mas ela passou o dedão neles para que secassem. - Quando voltei, haviam três cachorros cercando minha irmã, que chorava como nunca. Eu... nem cheguei a pensar. Apenas parti pra cima deles gritando, procurando protegê-la. Foi o dia que descobri meus poderes. - Ela riu de forma abafada, levantando o queixo. - Hoje me chamam de covarde. Imagino o que aconteceu comigo nesses cinco anos.
- Ninguém aqui te acha uma covarde, Julie. - Tranquilizou-a Amanda, dando uma olhada de relance para a garota de cabelos azuis lá na frente. - Acho que nem Sasha realmente acha isso. Só que... você sabe como ela é. - A outra fez uma careta, voltando a olhar para baixo.
- Eu só queria dar um jeito de ninguém mais morrer ou nos abandonar, sabe? - Admitiu com a voz fraca, encolhendo os ombros. - Já tivemos o suficiente disso quando Adam morreu.
- Acredite, eu sei exatamente como se sente. - Disse Amanda, inclinando um pouco a cabeça para o lado. Julie a encarou, esperando um pouco antes de continuar a falar.
- Só que você não parece se importar com nossos companheiros em missões que nem eu. - Perguntou, mordendo a língua. - Como você consegue fazer isso?
- Eu... não sei dizer, sabe? - Confessou a outra após um silêncio pensativo, encolhendo um dos ombros. - Eu tenho medo deles morrerem, é claro. Só que... sei lá, sempre acho que vão conseguir dar um jeito de se safar.
- Já chega, meninas. - Disse em voz alta Sasha, parando de andar. - Esse é o lugar. - Estavam em frente a uma pequena cabana de madeira circular, cujo teto era de palha bem marrom. As árvores ao redor daquele terreno pareciam abraçar a pequena construção, provocando uma simbiose dela com a própria floresta. Uma pequena fumaça de cheiro acre escapava por uma das janelas entreabertas, subindo até se perder na mata fechada.
Sasha se adiantou e bateu três vezes na porta de forma energética. - Sipho Kulela? - Chamou. Um som de vidro quebrado surgiu de dentro da moradia, seguido por uma voz aguda e raspada.
- Rolloh men gara! - Amanda e Julie se entreolharam, parecendo confusas. Aquele não era o Idioma Comum. - Rolloh men gara! - Repetiu a voz e passos apressados se aproximaram da porta, que se abriu com um estrondo.
Havia um reptiliano na entrada, de uma altura perto de um metro e oitenta. Sua pele escamosa era bem verde e sua longa crina era negra, o que era extremamente raro visto que sua raça pintava os pelos de acordo com o território em que nasciam. Estava vestido, o que também era incomum para aquela espécie, uma longa bata branca que cobria todo o seu torso e se esparramava esfarrapada nas pernas. Seu rabo longo estava enrolado desajeitadamente no que parecia uma corda trançada, e sua mandíbula avantajada estava coberta de um pó azul fosforescente. Ele as encarou com seus pequenos e amarelos olhos, estalando a língua.
- Não atendo humanos. - Disse bruscamente, fechando a porta. Sasha esperou alguns segundos para absorver aquilo e franzir a testa, se adiantando para voltar a bater na porta. - São surdas, macaquinhas? Eu disse que não atendo sua espécie! - Alertou Kulela do outro lado.
- Sinto muito, mas hoje você não tem opção! - Retrucou a garota, tentando entrar na cabana. Rapidamente o reptiliano jogou as costas contra a porta, bloqueando-a com o corpo.
- Eu não tenho tempo para isso. - Grunhiu Julie, se adiantando enquanto arriava a manga do braço direito. Ela jogou o ombro contra a entrada, quase arremessando o reptiliano para longe.
- Ei, não me levem a mal! - Pediu ele, com a voz começando a se manchar de medo enquanto fincava as garras das mãos no batente. - Não é uma questão contra vocês, especificamente. Também não atendo elfos, anões, entes, fadas... - Naquele momento Amanda chutou a maçaneta, dando o estímulo que faltava. A porta se abriu e Kulela foi derrubado, batendo o rosto no chão. - Bem, vocês entraram, suas bárbaras. - Se apressou a dizer, segurando a mandíbula avantajada enquanto se virava. - Felizes?
- Bem, eu sempre quis fazer isso. - Respondeu Amanda baixinho, olhando para a porta aberta enquanto que as outras duas se aproximavam do curandeiro caído.
- Levanta que você tem um trabalho. - Ordenou Julie, parando ao lado do reptiliano com os braços cruzados.
- Se acham que vão conseguir me obrigar assim como todo o resto da minha raça, desistam. - Alertou Kulela, se levantando e espanando a bata. - Não vou deixar que subjuguem este reptiliano, suas racistas. - Completou, apontando com o dedo para seu peito.
- O que está falando? - Perguntou Julie, mostrando uma expressão de desentendimento. - Não estamos falando de dominação de raças, é uma questão de você salvar minha irmã. - Terminou com o dedo estendido.
- Não é sobre isso? Me parece exatamente o que estamos falando aqui! - Retrucou o curadeiro, abrindo os braços agitadamente. - Vocês não aceitam um não como resposta de um reptiliano! Acham que temos que fazer tudo o que querem, sem nem mesmo reclamar! Acabaram de invadir minha casa só porque recusei uma ordem! - Amanda corou e desviou o olhar, algo não compartilhado por suas companheiras.
- Isso não é uma questão de preconceito, e sim de você agir de acordo com sua profissão. - Disse Sasha, dando um passo à frente. - Temos uma garota doente em Tinyanga, e nos disseram que o único que consegue salvá-la é você.
- Bem, para mim é uma questão de princípios. - Acrescentou o reptiliano, dando-lhes as costas. - Não irei me humilhar como o resto de minha raça. Essa parece ser uma excelente forma de provar meu ponto.
Sasha ficou vermelha, fechando a mão em um punho enquanto tentava não agredir ninguém naquela sala. Amanda se adiantou, temerosa de que Julie iria partir pra cima de Kulela.
- Escuta, acho que é melhor trazer a senhora Stella até aqui. Quem sabe uma líder de guilda seja o suficiente para convencer esse cara. - Sugeriu, colocando a mão no ombro da amiga.
- Você disse guilda? - Disse repentinamente o reptiliano, virando a cabeça para trás tão rápido que seu pescoço estalou. Sasha estreitou os olhos, enquanto que as outras se assustaram com aquele movimento súbito. - Não fiquem aí paradas sem responder minha pergunta. Vocês fazem ou não parte de uma guilda? - Perguntou ele, agitado.
- Fazemos... - Começou Amanda, ainda desconcertada. Kulela colocou a mão no queixo, afagando-o com o dedão enquanto que pensava. Após alguns curiosos segundos de silêncio, ele bateu as mãos enquanto abria um sorriso.
- Bem, acho que cheguei a uma conclusão. Vou curar sua companheira. - Julie deu um sorriso aliviado, mas Sasha não estava convencida.
- O que aconteceu com seus princípios? - Perguntou ela, cruzando os braços e franzindo o cenho.
- Sou um reptiliano flexível! - Riu ele nervoso, encolhendo os ombros. - Posso pensar em ajudar meus irmãos da Aliança se eu tiver acesso aos ingredientes médicos certos. Aqueles que só conseguem ser achados em mercados exclusivos a guildas. - Completou apressado.
- Não entendi o que quer dizer... - Indagou Amanda confusa, enquanto que Sasha aumentava sua expressão de desconfiança.
- Eu já. - Interpelou a garota. Kulela esperou alguns segundos antes de suspirar.
- Bem, achei que vinha um convite, mas vejo que tenho de tomar a iniciativa. - Ela abriu os braços, inclinando um pouco a cabeça para sua diagonal inferior enquanto sorria para as garotas. - Eu, Sipho Kulela, peço humildemente para entrar em sua guilda. Seja lá qual for.
As garotas aguardaram alguns segundos antes de responder àquele pedido totalmente inesperado. Para algumas, pelo menos. - Não entendi. Qual o motivo de você querer entrar na Aurora? - Perguntou Amanda, confusa.
- Bem, minha vida anda meio difícil ultimamente. - Respondeu o reptiliano, encostando as costas na parede enquanto que agitava o rabo, derrubando a corda trançada. - Meu querido amigo Galeh decidiu tornar minhas buscas por materiais medicinais um tanto quanto complicada. Acho que ele disse que eu desrespeitava nossa raça agindo de forma rebelde da última vez que nos encontramos. Deve ter sido algo assim, não estava prestando atenção. - Acrescentou ele, fingindo pensar no assunto. - Não sei se vocês sabem, mas um curandeiro necessita desesperadamente de seus ingredientes. Especialmente alguém como eu, que se especializou em doenças exóticas. E é aí que uma organização que tem acesso a tais produtos com preço acessível e facilidade de compra entra! - Completou, abrindo os braços para as três.
- Ótimo, bem-vindo ao clube. - Disse Julie de bate-pronto. Amanda se adiantou, se pondo entre ela e o reptiliano.
- Julie, não acha que precisamos pensar mais um pouco nisso? - Pediu ela, estendendo uma palma em sua direção. - Você viu como ele acabou de mudar de discurso em segundos. Não é melhor levarmos esse tópico à senhora Stella?
- Sophie não tem tempo para isso, Amanda. - Retificou a garota, franzindo a testa. - Ele é a única esperança dela, e se precisarmos colocá-lo embaixo do nosso teto para isso, acho um sacrifício válido.
- Eu quero salvar sua irmã tanto quanto você, acredite. - Se apressou em dizer a companheira. - Só que aceitá-lo na guilda é muito mais complicado do que isso. Além do mais, nenhuma de nós tem o cacife para aprovar uma ação dessas.
- Então quem tem? - Perguntou a outra, já se estressando. Amanda virou lentamente a cabeça para Sasha, que continuava em silêncio meditativo. Julie imediatamente se desinflou, e a preocupação escureceu seu rosto.
- Sasha, você... - Começou, mas a outra garota a ignorou, se dirigindo ao curandeiro.
- Pegue suas coisas e nos acompanhe até Tinyanga. - Ordenou, cruzando os braços. - Saiba que isso não significa que está aceito em nossa guilda. Ainda precisa ter uma entrevista com nossa líder e eu farei questão de testar seus supostos conhecimentos. Irei fazer um teste antes que possa sequer pensar em operar Sophie.
- Oh, fico extremamente agradecido. - Admitiu Kulela, aliviado. Ele abriu a porta que se encontrava ao seu lado, convidando as garotas. - Preciso de alguém para me ajudar com meu equipamento. Alguém se convida?
- Ah, eu vou. - Disse Amanda, entreolhando as duas companheiras enquanto que caminhava apressada até o outro aposento, deixando que Julie e Sasha se encarassem em um silêncio constrangedor.
Meia hora depois, as três estavam caminhando em uma trilha de terra que saía de Tinyanga para entrar no coração da Mata Cellintruniana, cercada por tortuosas árvores e repleta de pássaros piando e pequenos mamíferos se movendo por entre os arbustos. O som silvestre era o único que conseguia ser ouvido, visto que as garotas da guilda se mantinham sem trocar uma palavra. Algo que incomodava profundamente Amanda.
Ela começou a andar de forma mais lenta, deixando Julie se aproximar enquanto que Sasha se afastava. Respirou fundo, procurando a melhor forma de dizer o que queria. No entanto, foi a outra quem quebrou o silêncio primeiro.
- Sabe, quando nós tínhamos treze anos, eu e Sophie morávamos em um beco numa cidade ao sul de Helleon. - Começou ela, encarando as folhas que se amontoavam no chão. - Fazia uns três anos desde que nosso pai morreu. Um dia Sophie estava morrendo de fome, e eu achei realmente que ela iria morrer naquele dia. Eu tinha... eu tinha um vestido que era da minha mãe, a única coisa que havia sobrado da destruição da nossa casa. Decidi ir ao centro da cidade para vendê-lo naquele mesmo instante, para comprar comida. - Seus olhos começaram a ficar marejados, mas ela passou o dedão neles para que secassem. - Quando voltei, haviam três cachorros cercando minha irmã, que chorava como nunca. Eu... nem cheguei a pensar. Apenas parti pra cima deles gritando, procurando protegê-la. Foi o dia que descobri meus poderes. - Ela riu de forma abafada, levantando o queixo. - Hoje me chamam de covarde. Imagino o que aconteceu comigo nesses cinco anos.
- Ninguém aqui te acha uma covarde, Julie. - Tranquilizou-a Amanda, dando uma olhada de relance para a garota de cabelos azuis lá na frente. - Acho que nem Sasha realmente acha isso. Só que... você sabe como ela é. - A outra fez uma careta, voltando a olhar para baixo.
- Eu só queria dar um jeito de ninguém mais morrer ou nos abandonar, sabe? - Admitiu com a voz fraca, encolhendo os ombros. - Já tivemos o suficiente disso quando Adam morreu.
- Acredite, eu sei exatamente como se sente. - Disse Amanda, inclinando um pouco a cabeça para o lado. Julie a encarou, esperando um pouco antes de continuar a falar.
- Só que você não parece se importar com nossos companheiros em missões que nem eu. - Perguntou, mordendo a língua. - Como você consegue fazer isso?
- Eu... não sei dizer, sabe? - Confessou a outra após um silêncio pensativo, encolhendo um dos ombros. - Eu tenho medo deles morrerem, é claro. Só que... sei lá, sempre acho que vão conseguir dar um jeito de se safar.
- Já chega, meninas. - Disse em voz alta Sasha, parando de andar. - Esse é o lugar. - Estavam em frente a uma pequena cabana de madeira circular, cujo teto era de palha bem marrom. As árvores ao redor daquele terreno pareciam abraçar a pequena construção, provocando uma simbiose dela com a própria floresta. Uma pequena fumaça de cheiro acre escapava por uma das janelas entreabertas, subindo até se perder na mata fechada.
Sasha se adiantou e bateu três vezes na porta de forma energética. - Sipho Kulela? - Chamou. Um som de vidro quebrado surgiu de dentro da moradia, seguido por uma voz aguda e raspada.
- Rolloh men gara! - Amanda e Julie se entreolharam, parecendo confusas. Aquele não era o Idioma Comum. - Rolloh men gara! - Repetiu a voz e passos apressados se aproximaram da porta, que se abriu com um estrondo.
Havia um reptiliano na entrada, de uma altura perto de um metro e oitenta. Sua pele escamosa era bem verde e sua longa crina era negra, o que era extremamente raro visto que sua raça pintava os pelos de acordo com o território em que nasciam. Estava vestido, o que também era incomum para aquela espécie, uma longa bata branca que cobria todo o seu torso e se esparramava esfarrapada nas pernas. Seu rabo longo estava enrolado desajeitadamente no que parecia uma corda trançada, e sua mandíbula avantajada estava coberta de um pó azul fosforescente. Ele as encarou com seus pequenos e amarelos olhos, estalando a língua.
- Não atendo humanos. - Disse bruscamente, fechando a porta. Sasha esperou alguns segundos para absorver aquilo e franzir a testa, se adiantando para voltar a bater na porta. - São surdas, macaquinhas? Eu disse que não atendo sua espécie! - Alertou Kulela do outro lado.
- Sinto muito, mas hoje você não tem opção! - Retrucou a garota, tentando entrar na cabana. Rapidamente o reptiliano jogou as costas contra a porta, bloqueando-a com o corpo.
- Eu não tenho tempo para isso. - Grunhiu Julie, se adiantando enquanto arriava a manga do braço direito. Ela jogou o ombro contra a entrada, quase arremessando o reptiliano para longe.
- Ei, não me levem a mal! - Pediu ele, com a voz começando a se manchar de medo enquanto fincava as garras das mãos no batente. - Não é uma questão contra vocês, especificamente. Também não atendo elfos, anões, entes, fadas... - Naquele momento Amanda chutou a maçaneta, dando o estímulo que faltava. A porta se abriu e Kulela foi derrubado, batendo o rosto no chão. - Bem, vocês entraram, suas bárbaras. - Se apressou a dizer, segurando a mandíbula avantajada enquanto se virava. - Felizes?
- Bem, eu sempre quis fazer isso. - Respondeu Amanda baixinho, olhando para a porta aberta enquanto que as outras duas se aproximavam do curandeiro caído.
- Levanta que você tem um trabalho. - Ordenou Julie, parando ao lado do reptiliano com os braços cruzados.
- Se acham que vão conseguir me obrigar assim como todo o resto da minha raça, desistam. - Alertou Kulela, se levantando e espanando a bata. - Não vou deixar que subjuguem este reptiliano, suas racistas. - Completou, apontando com o dedo para seu peito.
- O que está falando? - Perguntou Julie, mostrando uma expressão de desentendimento. - Não estamos falando de dominação de raças, é uma questão de você salvar minha irmã. - Terminou com o dedo estendido.
- Não é sobre isso? Me parece exatamente o que estamos falando aqui! - Retrucou o curadeiro, abrindo os braços agitadamente. - Vocês não aceitam um não como resposta de um reptiliano! Acham que temos que fazer tudo o que querem, sem nem mesmo reclamar! Acabaram de invadir minha casa só porque recusei uma ordem! - Amanda corou e desviou o olhar, algo não compartilhado por suas companheiras.
- Isso não é uma questão de preconceito, e sim de você agir de acordo com sua profissão. - Disse Sasha, dando um passo à frente. - Temos uma garota doente em Tinyanga, e nos disseram que o único que consegue salvá-la é você.
- Bem, para mim é uma questão de princípios. - Acrescentou o reptiliano, dando-lhes as costas. - Não irei me humilhar como o resto de minha raça. Essa parece ser uma excelente forma de provar meu ponto.
Sasha ficou vermelha, fechando a mão em um punho enquanto tentava não agredir ninguém naquela sala. Amanda se adiantou, temerosa de que Julie iria partir pra cima de Kulela.
- Escuta, acho que é melhor trazer a senhora Stella até aqui. Quem sabe uma líder de guilda seja o suficiente para convencer esse cara. - Sugeriu, colocando a mão no ombro da amiga.
- Você disse guilda? - Disse repentinamente o reptiliano, virando a cabeça para trás tão rápido que seu pescoço estalou. Sasha estreitou os olhos, enquanto que as outras se assustaram com aquele movimento súbito. - Não fiquem aí paradas sem responder minha pergunta. Vocês fazem ou não parte de uma guilda? - Perguntou ele, agitado.
- Fazemos... - Começou Amanda, ainda desconcertada. Kulela colocou a mão no queixo, afagando-o com o dedão enquanto que pensava. Após alguns curiosos segundos de silêncio, ele bateu as mãos enquanto abria um sorriso.
- Bem, acho que cheguei a uma conclusão. Vou curar sua companheira. - Julie deu um sorriso aliviado, mas Sasha não estava convencida.
- O que aconteceu com seus princípios? - Perguntou ela, cruzando os braços e franzindo o cenho.
- Sou um reptiliano flexível! - Riu ele nervoso, encolhendo os ombros. - Posso pensar em ajudar meus irmãos da Aliança se eu tiver acesso aos ingredientes médicos certos. Aqueles que só conseguem ser achados em mercados exclusivos a guildas. - Completou apressado.
- Não entendi o que quer dizer... - Indagou Amanda confusa, enquanto que Sasha aumentava sua expressão de desconfiança.
- Eu já. - Interpelou a garota. Kulela esperou alguns segundos antes de suspirar.
- Bem, achei que vinha um convite, mas vejo que tenho de tomar a iniciativa. - Ela abriu os braços, inclinando um pouco a cabeça para sua diagonal inferior enquanto sorria para as garotas. - Eu, Sipho Kulela, peço humildemente para entrar em sua guilda. Seja lá qual for.
As garotas aguardaram alguns segundos antes de responder àquele pedido totalmente inesperado. Para algumas, pelo menos. - Não entendi. Qual o motivo de você querer entrar na Aurora? - Perguntou Amanda, confusa.
- Bem, minha vida anda meio difícil ultimamente. - Respondeu o reptiliano, encostando as costas na parede enquanto que agitava o rabo, derrubando a corda trançada. - Meu querido amigo Galeh decidiu tornar minhas buscas por materiais medicinais um tanto quanto complicada. Acho que ele disse que eu desrespeitava nossa raça agindo de forma rebelde da última vez que nos encontramos. Deve ter sido algo assim, não estava prestando atenção. - Acrescentou ele, fingindo pensar no assunto. - Não sei se vocês sabem, mas um curandeiro necessita desesperadamente de seus ingredientes. Especialmente alguém como eu, que se especializou em doenças exóticas. E é aí que uma organização que tem acesso a tais produtos com preço acessível e facilidade de compra entra! - Completou, abrindo os braços para as três.
- Ótimo, bem-vindo ao clube. - Disse Julie de bate-pronto. Amanda se adiantou, se pondo entre ela e o reptiliano.
- Julie, não acha que precisamos pensar mais um pouco nisso? - Pediu ela, estendendo uma palma em sua direção. - Você viu como ele acabou de mudar de discurso em segundos. Não é melhor levarmos esse tópico à senhora Stella?
- Sophie não tem tempo para isso, Amanda. - Retificou a garota, franzindo a testa. - Ele é a única esperança dela, e se precisarmos colocá-lo embaixo do nosso teto para isso, acho um sacrifício válido.
- Eu quero salvar sua irmã tanto quanto você, acredite. - Se apressou em dizer a companheira. - Só que aceitá-lo na guilda é muito mais complicado do que isso. Além do mais, nenhuma de nós tem o cacife para aprovar uma ação dessas.
- Então quem tem? - Perguntou a outra, já se estressando. Amanda virou lentamente a cabeça para Sasha, que continuava em silêncio meditativo. Julie imediatamente se desinflou, e a preocupação escureceu seu rosto.
- Sasha, você... - Começou, mas a outra garota a ignorou, se dirigindo ao curandeiro.
- Pegue suas coisas e nos acompanhe até Tinyanga. - Ordenou, cruzando os braços. - Saiba que isso não significa que está aceito em nossa guilda. Ainda precisa ter uma entrevista com nossa líder e eu farei questão de testar seus supostos conhecimentos. Irei fazer um teste antes que possa sequer pensar em operar Sophie.
- Oh, fico extremamente agradecido. - Admitiu Kulela, aliviado. Ele abriu a porta que se encontrava ao seu lado, convidando as garotas. - Preciso de alguém para me ajudar com meu equipamento. Alguém se convida?
- Ah, eu vou. - Disse Amanda, entreolhando as duas companheiras enquanto que caminhava apressada até o outro aposento, deixando que Julie e Sasha se encarassem em um silêncio constrangedor.
- Escute, Sasha... - Começou a outra, passando a mão pelos cabelos. - Eu sei que temos nossos problemas e diferenças, mas fico extremamente agradecida que--
- Não fiz isso por você. - Se adiantou a garota, descruzando os braços. - Fiz isso porque Sophie precisava de ajuda e a Aurora poderia usufruir de um curandeiro em sua própria sede ao invés de nos deslocarmos todo dia pela Estrada Verde. Se quiser, pode interpretar isso como um sinal. - Completou, se aproximando da companheira.
- Eu não entendi o que quer dizer. - Disse Julie, estreitando os olhos.
- Isso quer dizer que nós iremos ter alguém que vai curar de nossos ferimentos em nossa própria casa. O que hoje é uma necessidade. - Retrucou por entre os dentes, colocando o indicador no peito da outra garota. - E se chegamos a esse ponto, é porque nos machucamos com frequência. Isso acontece porque somos uma guilda. Arriscar nossa pele é o que fazemos como profissão.
- O que quer... - Tentou replicar Julie, mas Sasha voltou a pressionar seu tórax, a impelindo dois passos para trás.
- Se você quer acreditar que podemos fazer missões felizes e seguras e continuarmos sobrevivendo com o pouco de pagamento que elas geram, isso é problema seu. - Interrompeu. - Só que nossas idas e vindas à Tinyanga deveriam te mostrar que vivemos vidas perigosas. Só que nenhum de nós tem problema com isso, apenas você. - Ela encarou Julie, apenas um pouco mais alta do que ela, bem fundo nos olhos - Esse é um excelente momento para você finalmente entender o que fazemos e o que somos. Se dessa vez não conseguir compreender, acho melhor sair da Aurora.
Ao dizer isso, Sasha lhe deu as costas e partiu na direção de Kulela e Amanda, deixando uma pensativa Julie sozinha, com o queixo minimamente abaixado enquanto que seus olhos perdiam o foco.
Nem liiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.
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