quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Aurora: Capítulo 32 - O oficial e as notícias ruins


AURORA
CAPÍTULO 32:  O OFICIAL E AS NOTÍCIAS RUINS

 - Olha quem chegooou! - Cantarolou Amanda, com a cabeça e os longos cabelos castanhos para fora da porta entreaberta. Do outro lado do quarto, deitado em uma pequena cama e coberto por lençóis, Dalan a encarava desconcertado.

 - Achei que tivesse ido com os outros. - Comentou o rapaz, se ajeitando para apoiar as costas nos travesseiros. No último dia, a senhora Stella havia recebido uma carta a convocando para uma reunião em Helleon urgentemente. A líder da Aurora havia decidido então voltar para a cidade, levando consigo os membros que estivessem em condições de se transportar. Supostamente, apenas Dalan, Koga, Lyra, Sophie e o recém-contratado Sipho Kulela ficariam em Tinyanga. - Já estava até comemorando. 

 - Você realmente acha que eu te deixaria para trás? - Perguntou a garota sorridente, entrando no quarto. O aposento era bem apertado, com tábuas de madeira bem firmes cercando um pequeno retângulo abarrotado de móveis. Amanda se desviou da escrivaninha e da cadeira que se amontoavam perto da porta, ficando ao lado do companheiro. - Somos uma dupla, querido amigo Dalan! As coisas são mais engraçadas quando estamos juntos.

 - Fale por você. - Retrucou ele, embora tenha sorrido timidamente. Haviam passado por maus bocados nas última semana, o que o havia feito sentir uma pequena e bizarra saudade de suas leves aventuras com Amanda. Além disso, manter uma amizade era ao mesmo tempo inédito e reconfortante para ele. A garota fechou a cara e estendeu a língua em sua direção, se sentando em um banco próximo.

 - Ainda posso reconsiderar o que eu disse, sabia? Não vou ter pena de você só porque está cuidando de seus ferimentos. - Soltou ela, apoiando os pés na cama do companheiro. O rapaz retirou-os com a mão direita, encarando a amiga com curiosidade.

 - Sinceramente, achei que estivesse mais abalada. - Confessou, torcendo a boca e encolhendo um dos ombros. - Foi um perrengue e tanto que sofremos. Não vi ninguém realmente animado nos últimos dias.

 - Bem, eu sou uma figura inabalável. - Riu a garota, colocando a mão no peito. - É preciso mais do que isso para me deixar pra baixo. - Completou, apoiando novamente os pés na cama de Dalan. Ele fez um muxoxo e novamente os afastou, recuando um pouco pelo ferimento em seu abdômen. - Além do mais, estamos todos vivos e em recuperação. Não tem motivo para melancolia, não acha? - Perguntou enquanto sorria com o canto da boca.

 - Bem, eu não vou tentar entender o que se passa na sua cabeça. Não parece saudável. - Resmungou ele, procurando uma posição que aliviasse suas recém-renovadas dores. - Como os outros estão? - Perguntou no momento em que a porta do quarto se abria.

 - Melhor impossível. - Comentou distraído Sipho Kulela, entrando no aposento. Ele tinha uma prancheta em sua mão direita enquanto que carregava uma abarrotada bolsa de linho com a esquerda, aparentemente alheio ao que pareciam algas azuis caindo ao seu redor. - Digo, considerando a situação em que chegaram a este vilarejo. Poderiam estar tomando banhos de diamantes, ou algo parecido.

 - Seu rabo já passou. - Alertou Amanda, apontando para a porta enquanto se ajeitava no banco. O reptiliano resmungou e fechou-a com o pé, se aproximando de Dalan.

 - Tenho boas notícias para o senhor, jovenzinho. - Disse ele, parando ao seu lado enquanto voltava a ler a prancheta. - Os curandeiros daqui fizeram um bom trabalho com vocês enquanto não assumia o comando deste navio metafórico de cura, e meu tratamento especial deve acelerar seu tempo para sair dessa cama de sete para quatro dias. - O rapaz estremeceu ao pensar no suposto tratamento de Kulela. Haviam dias que parecia apenas pura tortura por parte do reptiliano.

 - E quanto aos outros? - Perguntou Amanda enquanto que o novo membro da Aurora colocava sua bolsa em cima de uma pia de pedra. 

 - O irritante garoto de tranças deveria receber alta amanhã, mas vou atrasar essa data de forma indefinida. Pelo menos posso confiná-lo em um quarto fechado desse jeito. Longe de mim. - Resmungou ele, abrindo a torneira. -Quanto ao resto, dou um prazo de uma semana. Lembrando que estamos tratando de uma pessoa envenenada por magia e uma humana comum com ferimentos extremos. É um tempo até bastante curto, penso eu. 

 - Sim, mas não tão curto quanto Sasha. - Soltou Dalan, confessando algo que estava em sua mente havia um tempo. - Ela teve passou por praticamente a mesma coisa do que eu e estava pronta para lutar de novo em o quê, quatro dias? - Perguntou para Amanda, que apenas encolheu os ombros. - Por quê ela se curou mais rápido do que eu?

 - Eu poderia te dar uma aula sobre a fisiologia dos yullianos e como ela altera a capacidade de recuperação deles, mas vou deixar em termos simples. - Disse Kulela, lavando as algas. - Ela se cura mais rápida porque é mais forte que você.

 - Pfffff. - Riu Amanda, colocando a palma da mão na boca enquanto que o companheiro ficava vermelho.

 - Não sei do que está rindo. Tenho certeza de que ela também é mais forte do que você. - Grasnou desconcertado o rapaz.

 - Pode até ser, mas eu não preciso disso. Não sei se reparou, mas me meti em duas brigas contra o tal Culto Púrpura, o recorde entre nós, e o máximo que tive foi um dedo quebrado. - Zombou ela, observando o reptiliano amarrar as algas molhadas em uma tira.

- Foi sorte. - Resmungou o garoto enquanto que Kulela puxava o cobertor, revelando uma gama de curativos e feridas diversas em seu corpo.

 - Prefiro chamar de inteligência. Ou habilidade superior mesmo. - Respondeu, cerrando os dentes em uma careta enquanto via a extensão dos ferimentos do garoto. Naquele momento o reptiliano pressionou a tira no grande corte no abdômen do garoto, fazendo-o ranger os dentes de dor. - Isso dói?

 - Não, imagina. Bobagem. - Conseguiu dizer em um tom sarcástico, cerrando as pálpebras enquanto que puxava os lençóis com os dedos. Amanda o observou por alguns segundos, fechando a boca em uma expressão de desconcertamento.

 - Bem, olhe pelo lado bom. Você não está na pele da senhora Stella. - Comentou, ajeitando o banco.

 - Não sabia que ela vai ser torturada. - Respondeu Dalan por entre os dentes.

 A garota se levantou, decidindo que era um excelente momento para sair dali e verificar a situação em que Lyra se encontrava. - Bem, é quase isso. Ela está indo ao encontro do tenente Wolff. - Disse enquanto atravessava o quarto. Se virou para trás quando estava perto da porta, observando o tal tratamento especial de Kulela. Por um momento, se perguntou se sua líder estaria realmente em uma posição pior do que o rapaz. Revirou as memórias para tentar se lembrar da última vez que vira o tenente. Se recordou de um rosto redondo e careca, com olhos castanhos e apertados, nariz inchado e bigode cheio, para em seguida voltar à realidade ligeiramente trêmula, segurando os braços. Definitivamente, Dalan estava melhor do que a senhora Stella. De longe.

 - MAS QUE MERDA, STELLA! - Gritou o tenente Wolff, batendo com as mãos da mesa da líder da Aurora. Os papéis voaram e um tinteiro foi derrubado com o impacto, espalhando seu conteúdo negro enquanto que o homem se afastava com violência. Estavam na sede da guilda, dois dias depois da conversa de Dalan com Amanda. 

 - Não sabia que tinha me chamado para reorganizar meu escritório, tenente. - Disse a mulher com a voz irritada, passando um pano onde a tinta havia sido derramada. Do outro lado, Wolff esmurrava a parede com o antebraço, se virando nervoso para Stella.

 - Não, eu convoquei você para me dar explicações! - Berrou, voltando a se aproximar dela. - Afinal, tudo o que vocês decidiram fazer no último mês foi me sacanear! - Ele apontou o dedo em sua direção, e o cuspe voou para atingir seu rosto.

 - Então que tal finalmente começarmos essa reunião? Apenas se sente, por favor. Ainda quero que minha sala esteja em pé depois de terminarmos. - Com relutância, o homem se sentou em uma das cadeiras na frente da mesa, puxando um charuto. Stella não gostava que fumassem em seu escritório, mas poderia trocar o cheio no carpete pela conservação do mesmo. Ela jogou o pano manchado no cesto de lixo, ajeitando a cadeira. - Agora, por onde começamos minha lista de esporros?

 O fato era que a líder da Aurora não gostava do homem à sua frente. Odiava que alguém tentasse lhe dizer o que fazer com a guilda, especialmente oficiais da Aliança que passaram a vida inteira na Fronteira. No entanto, sabia que as coisas tinham saído de controle. E admitir isso para Wolff era apenas mais uma pedra na estrutura de sua irritação. - Por onde começarmos? Que tal começarmos com essa carta que enviou ao Conselho Local sobre esse... Culto Púrpura? - Esbravejou o tenente, puxando um envelope amarrotado de seu bolso. - Aqui tem duas coisas que me fazem perder os cabelos que me restam, Stella. Demônios e magia.

 - Eu sei o que escrevi. - Retrucou ela, se arrependendo de ter enviado a carta. No entanto, fora necessário prestar explicações ao Conselho Local sobre os acontecimentos recentes. Só não esperava que Mahalyn fosse avisar seus oficiais superiores.

 - Então vamos começar com a primeira pergunta da minha lista excepcionalmente grande. - Disse o homem, puxando um fósforo para finalmente acender seu charuto. - Onde está esse tal Desaad e seus lacaios? Presos, espero eu.

 - Você sabe muito bem que eu não conseguimos prendê-los. - Avisou Stella, sentindo o rosto corar.

 Wolff colocou o fumo na boca, prendendo-o com os dentes. - Bem, então tenho que te avisar que ERA SUA JURISDIÇÃO! - Gritou, apontando o dedo para ela. - ERA UMA MALDITA ORGANIZAÇÃO TERRORISTA, ENVOLVIDOS COM MAGIA NÃO-AUTORIZADA E MALDITOS DEMÔNIOS! VOCÊ E TODAS AS GUILDAS TEM UM DEVER PARA A ALIANÇA! SABE QUE ERA SEU TRABALHO PRENDÊ-LOS!

 - Acha que nós não tentamos? - Perguntou a líder da Aurora com a mão no peito, tentando se acalmar ao mesmo tempo em que queria gritar também. - Meus garotos deram o máximo de si para sobreviver! Onde estava a Aliança nos dando suporte? Não são responsáveis por esse assunto também?

 - Não me venha com esse papo furado, Stella! - Reagiu o homem, batendo na mesa. - Se algum de seus subordinados tivesse nos avisado sobre essa situação, teriam toda a frota de magos da Aliança em Helleon em um estalar de dedos. - Completou o tenente, mordendo tão forte seu charuto que parecia prestes a rasgá-lo.

 A mulher corou novamente com aquela resposta. - Eles foram atacados, Wolff. Como você disse, era uma organização terrorista. Que veio na casa deles, sequestrou sua líder e deixou minha filha quase morta em nosso próprio saguão. São apenas garotos, fizeram o que podiam.

 - Acho que você realmente não está entendendo a gravidade da situação. - Disparou o oficial, segurando os braços da cadeira. - Magos podem fazer muita coisa. Podem torcer as leis da natureza com mais facilidade do que muitos yullianos por aí. O que torna magos criminosos um tanto quanto perigosos. E agora temos um grupo desses espalhado por aí, muito provavelmente com uma insaciável sede de vingança. - Ele se levantou agitado, virando as costas e observando a parede enquanto que a fumaça o cobria. - Pelo menos descobriu o que queriam?

 Stella coçou o pescoço, procurando a melhor forma de dizer o que precisava. - Como está a guerra? - Perguntou finalmente.

 - Não me venha mudando de assunto. - Se irritou o tenente. - Quero que você--

 - Eu não estou. - Se adiantou a mulher, encarando-o de forma séria. Wolff suspirou, retirando o charuto da boca.

 - Estou te passando informações confidenciais. - Disse de forma quase que leviana, parando um segundo para pensar. - Todas as tropas avançadas estão recuando para a Fronteira. É tudo o que sei.

 A líder da Aurora apertou as mãos por baixo da mesa, sentindo o medo abraçar seu coração. - Desaad me contou que a Aliança havia prendido e capturado seu mestre. Queria invocar demônios para que os trouxesse deste lado da Fronteira. E tudo me leva a crer que queriam resgatar... Zemopheus. - Aquele nome soou como um feitiço, retirando todo o som do escritório. O tenente franziu a testa, esmigalhando o charuto entre os dedos.

 - Então me diga novamente. POR QUÊ NÃO OS PRENDERAM? - Gritou alucinado, batendo as mãos com tanta força no apoio da cadeira que a madeira chegou a rachar.

 - Não. Havia. Como. - Soltou lentamente Stella, rangendo os dentes.

 - Acho que entende exatamente o que isso significa, não? - Perguntou, estendendo o torso por cima da cadeira. - Vou ter que alertar todos os magos que conheço. É uma situação de alerta máximo. Sem dúvida, eles vão se juntar ao coro que está me pedindo para desfazer a Aurora.

 - Pelos deuses! Nós fomos as vítimas aqui! - Se queixou Stella, finalmente levantando e abrindo os braços com raiva. - Não temos culpa se um grupo muito mais forte do que nós apareceu em nosso quintal com a ideia de nos destruir!

 - Não é por isso que querem os fechar. - Interrompeu Wolff, lhe dando as costas novamente. - É por causa de Visandre.

 - Ah. - Soltou a mulher, voltando a se sentar. Com o tanto de coisas que havia acontecido nas últimas semanas, havia se esquecido do falecido prefeito.

 - Você tem alguma razão quanto ao Culto Púrpura. Eles são agora assunto da Aliança, um peixe muito maior do que conseguem pescar. Já fizeram o suficiente, o que continua bem pouco. - Disse ele, andando lentamente até a outra cadeira. - Só que isso não vai adiantar quando o assunto é Visandre. A imprensa colocou a culpa da morte dele em vocês.

 - O QUÊ? - Gritou Stella, finalmente perdendo a compostura. - Você sabe que não fizemos isso, Wolff! Francamente, me repudia pensar que tenha concluído isso!

 - Nós sabemos que foram os terroristas. - Se apressou em dizer o oficial, franzindo o cenho. - Só que não podemos revelá-los. Temos ordens superiores para esconder a existência do Culto Púrpura. O que deixa a opinião pública com apenas um suspeito.

 - Isso não é justo! Fomos atacados e quase mortos, e agora estão nos tratando como assassinos?  Que provas eles têm para isso? - Se agitou a mulher, ajeitando a cadeira.

 - Eles não tem provas, mas tem seus comprovantes de missões. Pelo que sabem, a Aurora só realizou missões ordenadas do prefeito no último mês. - Com aquela informação, algo gelado desceu pelo estômago de Stella. Sabia que aquelas missões seriam um erro. Ela levou as mãos ao rosto, deixando que Wolff continuasse. - Se não tivessem se vendido com tanta vontade para ele, talvez ninguém suspeitasse de vocês.

 - Não nos vendemos, tenente. - Disse ela por entre os dedos. - Apenas precisávamos desesperadamente de dinheiro. Não havia nada errado em aceitar missões dele.

 - Bem, espero que tenham enchido seu porquinho, porque graças à mídia ninguém em Arasteus irá contratá-los novamente. - Soltou o oficial, se sentando na cadeira. Um profundo silêncio se seguiu, enquanto que Stella pensava em suas opções. O pior era que nem sequer haviam recebido o dinheiro de Visandre. O pagamento deles seria feito em abonos nos impostos. Era irreal esperar que essa promessa se cumprisse agora.

 - Céus. - Conseguiu dizer ela, esfregando os dedos nas órbitas. Por mais que tentasse procurar uma fuga, mais consciente ficava do buraco em que haviam se metido.

 - Escute, Stella. - Começou Wolff, com a voz um pouco mais calma. - Nenhum tribunal da Aliança irá julgá-los. Sabemos o que aconteceu. Não é melhor... fazerem missões fora da região? A Aurora é uma guilda de segundo nível. Podem fazer isso.

 - Não temos dinheiro para um transporte desses. - Confessou Stella, começando a sentir o desespero crescer. De fato, não tinham reservas nem mesmo para durar duas semanas, não depois das contas hospitalares. E agora não possuíam nem mesmo como receber um pagamento novamente. O tenente fez um muxoxo e se levantou, se dirigindo até a saída.

 - Bem, então eu sinto muito. Não há mais nada que eu possa fazer. - Completou ao sair, batendo a porta e deixando a líder da Aurora sozinha com seus temores cada vez mais concretos. Por tudo o que conseguia entender, era o fim da Aurora.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Aurora: Capítulo 31 - Sipho Kulela


AURORA
CAPÍTULO 31: SIPHO KULELA

 Stella Alba estava sentada em uma simples cadeira de madeira, apoiando os dois cotovelos em uma mesa com os dedos entrelaçados, perdida em seus próprios pensamentos. Seu semblante depressivo se destacava naquela cabana de feno de Tinyanga, marcando seu rosto magro. Havia perdido bastante peso durante o período em que foi mantida refém do Culto Púrpura, mas mesmo com as constantes insistências dos curandeiros, preferiu se manter à parte dos tratamentos. Era melhor que focassem no restante dos membros da Aurora.

 A líder da guilda esticou a cabeça para trás, fechando os olhos. A maior parte dos seus companheiros estava em situação crítica. Dalan, Koga e Lyra ainda não haviam acordado, e Marcus, Wieder e Dominic continuavam sob cuidados médicos. Apenas Amanda e Sasha estavam de pé, e Julie deveria acompanhá-las naquele dia. A lembrança da garota loira havia redobrado o sentimento de culpa e infelicidade de mulher. Era apenas uma questão de tempo até descobrir o que acontecera à irmã...

  Naquele momento, como um capricho dos deuses, uma voz conhecida ecoou por todo o vilarejo. Stella suspirou pesadamente e, com algum esforço, se levantou para ir dar as notícias terríveis.

 - COMO ASSIM EU NÃO POSSO VÊ-LA? - Gritava Julie para o reptiliano, exigindo a entrada em um aposento selado. Estavam em um longo corredor na ala médica principal de Tinyanga, onde a garota vestia uma simples e longa bata branca, o uniforme padrão dos pacientes. Ela tentou abrir a porta novamente mas o enfermeiro a impediu, agitando sua crina multicolorida.

 - Perdão, senhorita, mas sua irmã possui uma condição médica que desconhecemos! - Suplicou ele com a voz sofrida, claramente afligido por ter que impedir uma humana. - Peço apenas que descanse. A senhorita acabou de se recuperar!

 - Se Sophie está aí dentro, eu preciso vê-la. - Ordenou a garota por entre os dentes. - O que está acontecendo com ela? - Não houve resposta do outro lado, com exceção de uma olhada para baixo por parte do reptiliano. Algo que enfureceu de vez Julie. - O QUE ACONTECEU COM ELA?

 - Controle-se. - Disse uma repentina Sasha atrás dela, segurando o ombro da companheira enquanto que Amanda a acompanhava ao seu lado. - Estamos em um hospital. Explodir desse jeito irá apenas perturbar os pacientes. - Os olhos de Julie se arregalaram ao reconhecer a voz da colega.

 - Você estava com ela, não estava? - Perguntou em fúria, se virando para a outra. - Se incomoda em me dizer o que aconteceu? - Indagou agitada, colocando o dedo no peito de Sasha.

 - Ela foi atacada por algo que não conhecemos. - Respondeu fria e calmamente a garota, segurando a mão que a cutucava e afastando-a. - Se te ajuda alguma coisa, ela nos auxiliou bastante na luta contra o líder do Culto Púrpura. Sem ela, talvez...

 - Você acha que eu me importo? - Interrompeu Julie, recolhendo violentamente sua mão e a espalmando em seu próprio peito. - Eu quero que ela volte viva, não que morra honradamente! 

 - A melhor coisa que poderia fazer agora é ter orgulho de sua irmã. - Disse a outra, ignorando solenemente o que a companheira dizia. - Ela deu o seu máximo para ajudar a Aurora, mesmo encontrando uma luta muito acima de seu nível. Diferente de muita gente, eu não a chamaria de covarde.

 Naquele momento, em um centésimo de segundo, Julie manifestou a expressão mais lívida que poderia gerar. Em seguida ela fechou a boca e desferiu um tapa no rosto da companheira, com o som estalando no corredor. A marca da mão manchou de vermelho a bochecha direita de Sasha, que apenas arregalou os olhos pela surpresa e pela dor.

 - O.K, acho que já chega. - Soltou Amanda de forma preocupada, se pondo no meio das duas enquanto as afastava com as mãos. Julie por sua vez tentava avançar, ainda possuída pela raiva.

 - Estou cansada de suas acusações, Sasha! - Disse com os olhos bem abertos enquanto tentava passar do bloqueio de Amanda. - Principalmente vindo de alguém que se importa mais com uma maldita medalha de honra póstuma do que com a vida dos companheiros.

 - Não me toque de novo. - Respondeu a garota de cabelos azuis, segurando a região ferida. - Nunca mais, me ouviu? - Ela também tentou se livrar do braço em seu ombro, procurando empurrá-lo para longe. Quando parecia que iriam cair nas vias de fato, Stella finalmente chegou àquele corredor.

 - CHEGA! - Gritou, atraindo a atenção das três garotas que se viraram para encará-la. A líder da guilda vinha se aproximando apressadamente, acompanhada pelo reptiliano responsável pelo vilarejo, Galeh. A mulher se aproximou delas com as mãos na cintura, se virando para a de curtos cabelos loiros. - Julie, se alguém aqui é culpada pela situação da sua irmã, sou eu. Sinta-se à vontade se quiser bater em mim pelo que aconteceu com ela. - Um momento de silêncio se seguiu, onde por alguns ínfimos de segundos pareceu que a garota iria realmente partir para cima de Stella. No final, contudo, ela se livrou de Amanda e se afastou com passos fortes, limpando o brilho das lágrimas enquanto que o rosto se contorcia de ira. - Terei uma conversa com você depois. - Disse a mulher para a filha, que apenas se virou de costas.

 - Peço perdão, senhora. - Pediu Galeh, se pondo à sua frente. - Não deveríamos ter tratado a situação desta forma. Tenho certeza de que no futuro iremos...

 - Escute, eu só quero saber da situação de Sophie, tudo bem? - Interrompeu Stella, esfregando a mão na testa com pesar. - O que podemos fazer para salvá-la? E quando pergunto isso, estou aceitando qualquer opção.

  - Sinto muitíssimo, mas acho que chegamos em nosso limite. - Respondeu o reptiliano, se afastando alguns passos enquanto que espalmava as mãos para frente. - Não conseguimos identificar o que causou aquele efeito em sua companheira. Ela não reage a nenhum estímulo externo, e até mesmo seus sinais vitais estão no mínimo. Achamos que os olhos escurecidos sejam um sinal de magia, mas nenhum de nós aqui é especialista nisso! - Com aquelas palavras, Stella se afastou para sentar em um banco, enquanto que Amanda juntava as mãos no rosto e as pressionava com força. A líder da Aurora começou a sentir o desespero tomar conta do coração enquanto que torcia colossalmente as mãos. Não parecia ser verdade. Não poderia ser.

 - Se é magia, senhor... - Começou o enfermeiro hesitante, se virando para o chefe de Tinyanga. - Talvez seja melhor comunicar ele, não acha?

 - Calado. - Ordenou rispidamente Galeh, mas Stella já havia se levantado.

 - Ele quem? Existe alguma forma de salvarmos Sophie? - Perguntou agitada. Os reptilianos rapidamente desviaram o olhar, parecendo incomodados por terem chegado naquele assunto.

 - Existe... um de nós que vive em uma pequena cabana na floresta. - Começou o chefe, passando os dedos pela crina que crescia atrás do pescoço. - Seu nome é Sipho Kulela. É um curandeiro um pouco... ortodoxo, que se envolve com doenças e tratamentos um tanto quanto... sobrenaturais. Se me entende. - Cada palavra parecia ser uma tarefa hercúlea para ele, mas isso não importava para a mulher.

 - E onde ele está? - Perguntou dando um passo à frente, inclinando minimamente a cabeça. - Qual o problema de encontrá-lo?

 - Kulela é um tanto... rebelde. - Admitiu Galeh, encolhendo os ombros em uma expressão nada sutil de culpa. - Ele não sabe agir como um verdadeiro reptiliano, especialmente na companhia de outras raças. Nós o levamos para longe, embora não consigamos afastá-lo de vez.

 - Não me importa se esse sujeito é Zemopheus em pessoa. - Os reptilianos se encolheram com aquela palavra, algo sumariamente ignorado por Stella. - Se ele sabe como salvar nossa companheira, nós iremos para lá. Vocês duas. - Chamou as outras garotas, se virando para elas. - Vão e busquem Julie. Sophie só está piorando com o passar do tempo, e não estamos ganhando nada aqui paradas. Busquem esse tal Kulela agora mesmo.

 - Certo. - Disse Amanda, balançando afirmativamente a cabeça. Ela começou a correr na direção do corredor por onde Julie havia sumido, mas antes que Sasha pudesse segui-la, sua mãe a segurou pela mão.

 - Estou mandando três membras da Aurora, entendeu? Não quero que voltem duas. - Avisou no ouvido da filha. A garota a encarou por cima do ombro, com seus olhos azuis-claro encarando sem piscar o outro par da mesma cor.

 - Irei tentar. - Disse simplesmente, virando o rosto e se afastando da líder.

 Meia hora depois, as três estavam caminhando em uma trilha de terra que saía de Tinyanga para entrar no coração da Mata Cellintruniana, cercada por tortuosas árvores e repleta de pássaros piando e pequenos mamíferos se movendo por entre os arbustos. O som silvestre era o único que conseguia ser ouvido, visto que as garotas da guilda se mantinham sem trocar uma palavra. Algo que incomodava profundamente Amanda.

 Ela começou a andar de forma mais lenta, deixando Julie se aproximar enquanto que Sasha se afastava. Respirou fundo, procurando a melhor forma de dizer o que queria. No entanto, foi a outra quem quebrou o silêncio primeiro.

 - Sabe, quando nós tínhamos treze anos, eu e Sophie morávamos em um beco numa cidade ao sul de Helleon. - Começou ela, encarando as folhas que se amontoavam no chão. - Fazia uns três anos desde que nosso pai morreu. Um dia Sophie estava morrendo de fome, e eu achei realmente que ela iria morrer naquele dia. Eu tinha... eu tinha um vestido que era da minha mãe, a única coisa que havia sobrado da destruição da nossa casa. Decidi ir ao centro da cidade para vendê-lo naquele mesmo instante, para comprar comida. - Seus olhos começaram a ficar marejados, mas ela passou o dedão neles para que secassem. - Quando voltei, haviam três cachorros cercando minha irmã, que chorava como nunca. Eu... nem cheguei a pensar. Apenas parti pra cima deles gritando, procurando protegê-la. Foi o dia que descobri meus poderes. - Ela riu de forma abafada, levantando o queixo. - Hoje me chamam de covarde. Imagino o que aconteceu comigo nesses cinco anos.

 - Ninguém aqui te acha uma covarde, Julie. - Tranquilizou-a Amanda, dando uma olhada de relance para a garota de cabelos azuis lá na frente. - Acho que nem Sasha realmente acha isso. Só que... você sabe como ela é. - A outra fez uma careta, voltando a olhar para baixo.

 - Eu só queria dar um jeito de ninguém mais morrer ou nos abandonar, sabe? - Admitiu com a voz fraca, encolhendo os ombros. - Já tivemos o suficiente disso quando Adam morreu.

 - Acredite, eu sei exatamente como se sente. - Disse Amanda, inclinando um pouco a cabeça para o lado. Julie a encarou, esperando um pouco antes de continuar a falar.

 - Só que você não parece se importar com nossos companheiros em missões que nem eu. - Perguntou, mordendo a língua. - Como você consegue fazer isso?

 - Eu... não sei dizer, sabe? - Confessou a outra após um silêncio pensativo, encolhendo um dos ombros. - Eu tenho medo deles morrerem, é claro. Só que... sei lá, sempre acho que vão conseguir dar um jeito de se safar.

 - Já chega, meninas. - Disse em voz alta Sasha, parando de andar. - Esse é o lugar. - Estavam em frente a uma pequena cabana de madeira circular, cujo teto era de palha bem marrom. As árvores ao redor daquele terreno pareciam abraçar a pequena construção, provocando uma simbiose dela com a própria floresta. Uma pequena fumaça de cheiro acre escapava por uma das janelas entreabertas, subindo até se perder na mata fechada.

 Sasha se adiantou e bateu três vezes na porta de forma energética. - Sipho Kulela? - Chamou. Um som de vidro quebrado surgiu de dentro da moradia, seguido por uma voz aguda e raspada.

 - Rolloh men gara! - Amanda e Julie se entreolharam, parecendo confusas. Aquele não era o Idioma Comum. - Rolloh men gara! - Repetiu a voz e passos apressados se aproximaram da porta, que se abriu com um estrondo.

 Havia um reptiliano na entrada, de uma altura perto de um metro e oitenta. Sua pele escamosa era bem verde e sua longa crina era negra, o que era extremamente raro visto que sua raça pintava os pelos de acordo com o território em que nasciam. Estava vestido, o que também era incomum para aquela espécie, uma longa bata branca que cobria todo o seu torso e se esparramava esfarrapada nas pernas. Seu rabo longo estava enrolado desajeitadamente no que parecia uma corda trançada, e sua mandíbula avantajada estava coberta de um pó azul fosforescente. Ele as encarou com seus pequenos e amarelos olhos, estalando a língua.

 - Não atendo humanos. - Disse bruscamente, fechando a porta. Sasha esperou alguns segundos para absorver aquilo e franzir a testa, se adiantando para voltar a bater na porta. - São surdas, macaquinhas? Eu disse que não atendo sua espécie! - Alertou Kulela do outro lado.

 - Sinto muito, mas hoje você não tem opção! - Retrucou a garota, tentando entrar na cabana. Rapidamente o reptiliano jogou as costas contra a porta, bloqueando-a com o corpo.

 - Eu não tenho tempo para isso. - Grunhiu Julie, se adiantando enquanto arriava a manga do braço direito. Ela jogou o ombro contra a entrada, quase arremessando o reptiliano para longe.

 - Ei, não me levem a mal! - Pediu ele, com a voz começando a se manchar de medo enquanto fincava as garras das mãos no batente. - Não é uma questão contra vocês, especificamente. Também não atendo elfos, anões, entes, fadas... - Naquele momento Amanda chutou a maçaneta, dando o estímulo que faltava. A porta se abriu e Kulela foi derrubado, batendo o rosto no chão. - Bem, vocês entraram, suas bárbaras. - Se apressou a dizer, segurando a mandíbula avantajada enquanto se virava. - Felizes?

 - Bem, eu sempre quis fazer isso. - Respondeu Amanda baixinho, olhando para a porta aberta enquanto que as outras duas se aproximavam do curandeiro caído.

 - Levanta que você tem um trabalho. - Ordenou Julie, parando ao lado do reptiliano com os braços cruzados.

 - Se acham que vão conseguir me obrigar assim como todo o resto da minha raça, desistam. - Alertou Kulela, se levantando e espanando a bata. - Não vou deixar que subjuguem este reptiliano, suas racistas. - Completou, apontando com o dedo para seu peito.

 - O que está falando? - Perguntou Julie, mostrando uma expressão de desentendimento. - Não estamos falando de dominação de raças, é uma questão de você salvar minha irmã. - Terminou com o dedo estendido.

 - Não é sobre isso? Me parece exatamente o que estamos falando aqui! - Retrucou o curadeiro, abrindo os braços agitadamente. - Vocês não aceitam um não como resposta de um reptiliano! Acham que temos que fazer tudo o que querem, sem nem mesmo reclamar! Acabaram de invadir minha casa só porque recusei uma ordem! - Amanda corou e desviou o olhar, algo não compartilhado por suas companheiras.

 - Isso não é uma questão de preconceito, e sim de você agir de acordo com sua profissão. - Disse Sasha, dando um passo à frente. - Temos uma garota doente em Tinyanga, e nos disseram que o único que consegue salvá-la é você.

 - Bem, para mim é uma questão de princípios. - Acrescentou o reptiliano, dando-lhes as costas. - Não irei me humilhar como o resto de minha raça. Essa parece ser uma excelente forma de provar meu ponto.

 Sasha ficou vermelha, fechando a mão em um punho enquanto tentava não agredir ninguém naquela sala. Amanda se adiantou, temerosa de que Julie iria partir pra cima de Kulela.

 - Escuta, acho que é melhor trazer a senhora Stella até aqui. Quem sabe uma líder de guilda seja o suficiente para convencer esse cara. - Sugeriu, colocando a mão no ombro da amiga.

 - Você disse guilda? - Disse repentinamente o reptiliano, virando a cabeça para trás tão rápido que seu pescoço estalou. Sasha estreitou os olhos, enquanto que as outras se assustaram com aquele movimento súbito. - Não fiquem aí paradas sem responder minha pergunta. Vocês fazem ou não parte de uma guilda? - Perguntou ele, agitado.

 - Fazemos... - Começou Amanda, ainda desconcertada. Kulela colocou a mão no queixo, afagando-o com o dedão enquanto que pensava. Após alguns curiosos segundos de silêncio, ele bateu as mãos enquanto abria um sorriso.

 - Bem, acho que cheguei a uma conclusão. Vou curar sua companheira. - Julie deu um sorriso aliviado, mas Sasha não estava convencida.

 - O que aconteceu com seus princípios? - Perguntou ela, cruzando os braços e franzindo o cenho.

 - Sou um reptiliano flexível! - Riu ele nervoso, encolhendo os ombros. - Posso pensar em ajudar meus irmãos da Aliança se eu tiver acesso aos ingredientes médicos certos. Aqueles que só conseguem ser achados em mercados exclusivos a guildas. - Completou apressado.

 - Não entendi o que quer dizer... - Indagou Amanda confusa, enquanto que Sasha aumentava sua expressão de desconfiança.

 - Eu já. - Interpelou a garota. Kulela esperou alguns segundos antes de suspirar.

 - Bem, achei que vinha um convite, mas vejo que tenho de tomar a iniciativa. - Ela abriu os braços, inclinando um pouco a cabeça para sua diagonal inferior enquanto sorria para as garotas. - Eu, Sipho Kulela, peço humildemente para entrar em sua guilda. Seja lá qual for.

 As garotas aguardaram alguns segundos antes de responder àquele pedido totalmente inesperado. Para algumas, pelo menos. - Não entendi. Qual o motivo de você querer entrar na Aurora? - Perguntou Amanda, confusa.

 - Bem, minha vida anda meio difícil ultimamente. - Respondeu o reptiliano, encostando as costas na parede enquanto que agitava o rabo, derrubando a corda trançada. - Meu querido amigo Galeh decidiu tornar minhas buscas por materiais medicinais um tanto quanto complicada. Acho que ele disse que eu desrespeitava nossa raça agindo de forma rebelde da última vez que nos encontramos. Deve ter sido algo assim, não estava prestando atenção. - Acrescentou ele, fingindo pensar no assunto. - Não sei se vocês sabem, mas um curandeiro necessita desesperadamente de seus ingredientes. Especialmente alguém como eu, que se especializou em doenças exóticas. E é aí que uma organização que tem acesso a tais produtos com preço acessível e facilidade de compra entra! - Completou, abrindo os braços para as três.

 - Ótimo, bem-vindo ao clube. - Disse Julie de bate-pronto. Amanda se adiantou, se pondo entre ela e o reptiliano.

 - Julie, não acha que precisamos pensar mais um pouco nisso? - Pediu ela, estendendo uma palma em sua direção. - Você viu como ele acabou de mudar de discurso em segundos. Não é melhor levarmos esse tópico à senhora Stella?

 - Sophie não tem tempo para isso, Amanda. - Retificou a garota, franzindo a testa. - Ele é a única esperança dela, e se precisarmos colocá-lo embaixo do nosso teto para isso, acho um sacrifício válido.

 - Eu quero salvar sua irmã tanto quanto você, acredite. - Se apressou em dizer a companheira. - Só que aceitá-lo na guilda é muito mais complicado do que isso. Além do mais, nenhuma de nós tem o cacife para aprovar uma ação dessas.

 - Então quem tem? - Perguntou a outra, já se estressando. Amanda virou lentamente a cabeça para Sasha, que continuava em silêncio meditativo. Julie imediatamente se desinflou, e a preocupação escureceu seu rosto.

 - Sasha, você... - Começou, mas a outra garota a ignorou, se dirigindo ao curandeiro.

 - Pegue suas coisas e nos acompanhe até Tinyanga. - Ordenou, cruzando os braços. - Saiba que isso não significa que está aceito em nossa guilda. Ainda precisa ter uma entrevista com nossa líder e eu farei questão de testar seus supostos conhecimentos. Irei fazer um teste antes que possa sequer pensar em operar Sophie.

 - Oh, fico extremamente agradecido. - Admitiu Kulela, aliviado. Ele abriu a porta que se encontrava ao seu lado, convidando as garotas. - Preciso de alguém para me ajudar com meu equipamento. Alguém se convida?

 - Ah, eu vou. - Disse Amanda, entreolhando as duas companheiras enquanto que caminhava apressada até o outro aposento, deixando que Julie e Sasha se encarassem em um silêncio constrangedor.

 - Escute, Sasha... - Começou a outra, passando a mão pelos cabelos. - Eu sei que temos nossos problemas e diferenças, mas fico extremamente agradecida que--

 - Não fiz isso por você. - Se adiantou a garota, descruzando os braços. - Fiz isso porque Sophie precisava de ajuda e a Aurora poderia usufruir de um curandeiro em sua própria sede ao invés de nos deslocarmos todo dia pela Estrada Verde. Se quiser, pode interpretar isso como um sinal. - Completou, se aproximando da companheira.

 - Eu não entendi o que quer dizer. - Disse Julie, estreitando os olhos.

 - Isso quer dizer que nós iremos ter alguém que vai curar de nossos ferimentos em nossa própria casa. O que hoje é uma necessidade. - Retrucou por entre os dentes, colocando o indicador no peito da outra garota. - E se chegamos a esse ponto, é porque nos machucamos com frequência. Isso acontece porque somos uma guilda. Arriscar nossa pele é o que fazemos como profissão.

 - O que quer... - Tentou replicar Julie, mas Sasha voltou a pressionar seu tórax, a impelindo dois passos para trás. 

 - Se você quer acreditar que podemos fazer missões felizes e seguras e continuarmos sobrevivendo com o pouco de pagamento que elas geram, isso é problema seu. - Interrompeu. - Só que nossas idas e vindas à Tinyanga deveriam te mostrar que vivemos vidas perigosas. Só que nenhum de nós tem problema com isso, apenas você. - Ela encarou Julie, apenas um pouco mais alta do que ela, bem fundo nos olhos - Esse é um excelente momento para você finalmente entender o que fazemos e o que somos. Se dessa vez não conseguir compreender, acho melhor sair da Aurora.

 Ao dizer isso, Sasha lhe deu as costas e partiu na direção de Kulela e Amanda, deixando uma pensativa Julie sozinha, com o queixo minimamente abaixado enquanto que seus olhos perdiam o foco.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Aurora: Capítulo 30 - Sombras e Luzes


AURORA
CAPÍTULO 30: SOMBRAS E LUZES

 Por algum tempo, ninguém naquela caverna se moveu. Sasha continuava com os joelhos dobrados e as mãos à frente do corpo, esperando um ataque que não vinha. Desaad por sua vez se mantinha onde estava, com a capa cobrindo a mão congelada e uma parte do peito ferido. Os dois se encaravam sem piscar, iluminados pela luz vermelha e fantasmagórica das esferas acima, e se estenderiam nisso por horas a fio se Sophie não os interrompesse, de joelhos no chão rochoso e úmido.

 - S-Sasha... - Começou, ainda surpresa pela presença súbita da companheira. A outra estreitou os olhos, atenta a qualquer movimento do adversário. Começou a retirar a mochila que carregava nas costas com uma das mãos, com cada movimento lento e suave como um rio tranquilo.

  - Sophie, cuide de Dalan agora mesmo. - Ordenou Sasha, atirando o objeto no colo da garota. Sophie se assustou com aquilo, sobressaltando para acordar do pequeno transe que se encontrava. Olhou desconfiada para Desaad de relance, mas o encapuzado continuou imóvel, firme com sua expressão sem emoções. A membra da Aurora murmurou algumas palavras de concordância e correu na direção do rapaz caído, abrindo a mochila no caminho para relevar alguns kits de primeiros-socorros. - Achei que iria atacá-la. Não me surpreenderia com esse comportamento covarde. - Voltou a falar com a voz ríspida.

 - Me surpreende que tenha essa impressão de mim. - Respondeu o homem, abrindo um mínimo sorriso. Ele no entanto se esfarelou rapidamente, fugindo do cenho franzido mais acima. - No entanto, admito que passei dos limites. Deixarei que aquela ali cuide de seu companheiro, para que não ocorra o mesmo que aconteceu com você. - Foi a vez de Sasha crispar a testa, dando chance para que o encapuzado continuasse. - Me surpreende que tenha vindo, garota. Um pouco pela coragem que demonstra diante de um adversário que já te deixou às portas da morte e um pouco por ter me achado. Pelo que eu sei, a localização da Caverna dos Reclusos é confidencial. - Sophie arregalou os olhos enquanto aplicava um pano verde à ferida de Dalan. Então era ali que estavam.

 - Tive sorte. - Respondeu secamente a garota de cabelos azuis. - Fui uma das pessoas que cumpriu a missão que você pediu aqui em Wildest. Além disso, encontrei meus companheiros em Helleon. Me disseram que o único lugar que a Aurora não havia derrotado o grupinho de vocês era aqui.

 - Derrotado? - Perguntou Desaad, manifestando um pequeno sorriso provocador. - Acho que só sabe de metade da história, pequena. Nós do Culto Púrpura não caímos em batalha.

 - Tanto faz o que vocês são ou o que acham que podem fazer. - Retrucou Sasha abaixando o queixo alguns centímetros, a ponto de seus olhos serem cobertos pela franja. - Só sei que minha guilda deu o máximo que conseguia para lutar contra vocês. Batalharam e quase morreram para defender minha honra, da minha mãe e da Aurora. - Seu corpo começou a tremer ligeiramente, com as mãos fechando em punhos. - Prometi ao meu pai que iria cuidar deles. E hoje irei provar isso. - Ela levantou a cabeça, mostrando um brilho forte no olhar. - Vou encerrar essa luta entre a Aurora e o Culto Púrpura, Desaad. Custe o que custar. - Pronunciou com a voz altiva, apontando o indicador esquerdo para o adversário. O homem pareceu genuinamente surpreso por algum segundo, voltando a franzir o cenho.

 - Isso é bastante engraçado vindo de alguém que... - Naquele momento, contudo, a garota disparou na direção do encapuzado. Desaad se calou e tentou rapidamente adotar uma postura defensiva, vendo que Sasha estava com o braço direito dobrado para trás. Ela irá atacar por aí, pensou ele levantando o antebraço esquerdo para bloquear o ataque. No entanto, uma segunda olhada mostrou que a membra da Aurora também havia dobrado o membro esquerdo. O homem travou alguns instantes, tentando adivinhar de que lado vinha o ataque. Optou por defender os dois lados, levantando os cotovelos. Ficou esperando o golpe de olhos bem abertos, mas foi só quando Sasha já estava aos seus pés que percebeu que ele não viria. Pelo menos não do jeito que esperava.

 A garota acabou por cabecear o inimigo, acertando seu peito congelado e o fazendo deslizar para trás. Desaad soltou os braços para se equilibrar, dando chance para que a outra, com algum esforço, o socasse com as duas mãos. Os punhos acertaram as costelas do rival, fazendo com que um filete de sangue espirasse de sua boca.

 O que é isso, se perguntou o homem enquanto que tentava se estabilizar novamente. Olhou para baixo e percebeu que sua adversária disparava novamente, desta vez mirando seu lado esquerdo. Desaad levantou a mão para tentar bloquear o golpe, mas imediatamente percebeu que isso não daria certo. Acabou deixando o soco acertá-lo no rosto, fazendo-o cuspir mais sangue.

 - Acho que eu tenho que agradecer Dalan por isso. - Disse Sasha com um ligeiro sorriso no canto da boca. A mão congelada do encapuzado reluziu na luz vermelha, entregando seu ponto fraco. Sua capacidade de se defender pelo lado esquerdo estava prejudicada, e essa pequena vantagem era tudo que a garota precisava. Tentou socá-lo novamente mas desta vez ele se abaixou, fazendo com que o golpe acertasse apenas o capuz.

 - Sinceramente, não acredito que esteja me subestimando. - Ameaçou o homem, limpando com o dedão o líquido vermelho que vertia pelo queixo. Ele chutou os joelhos da adversária, jogando-a ao chão. No momento em que Sasha batia a cabeça nas rochas, uma sola se afundou em seu rosto. Ela sentiu a cartilagem explodir e o sangue quente manchar seu rosto, mas rapidamente chutou a perna de apoio de Desaad. O homem loiro foi obrigado a fincar o outro pé no chão para não cair, dando chance para que a garota rolasse para o lado e voltasse a se levantar.

 A membra da Aurora passou as costas da mão na face para limpá-la e voltou a disparar, preparando um soco pelo lado direito. Seu inimigo reagiu instintivamente e levantou o outro braço para segurá-la, mas Sasha novamente se chocou contra ele, derrubando-o nas pedras.

  - Passei quatro dias desacordada. - Disse ela por entre os dentes, fincando os joelhos nos braços de Desaad para imobilizá-los, começando a socá-lo no rosto. - E mais quatro dias em viagem. Só consegui pensar em você. - O homem tentava se livrar, mas suas forças se esvaíam conforme os golpes aumentavam. Já estava ferido devido à luta contra Dalan, enquanto que sua adversária estava cem por cento. - Você me disse que eu era previsível em meus ataques. Obrigada pela dica.

 - CHEGA! - Gritou Desaad, abrindo os olhos com uma loucura descontrolada. Ele rugiu e conseguiu livrar o braço direito, usando-o para cotovelar Sasha bem no centro do peito. A garota foi jogada bem longe pela força do ataque, caindo fora do círculo de luz vermelha e caindo de costas. Se apoiou em um dos braços enquanto segurava a região ferida com o rosto em dor, respirando com dificuldades. Do outro lado, o encapuzado havia se levantado, parado na borda da região iluminada com o rosto sangrento e inchado. - Já chega de vocês, crianças insolentes. Tentei cooperar, mas vejo que não passam de animais. Se desejam tanto isso, farei questão de matá-las e recomeçar do zero com outra guilda. Que a Aurora seja extinguida depois desse dia.

 - Se acha que eu vou deixar... - Começou a garota, se pondo de pé. - Está mais louco do que nunca.

 - Heh. - De fato, Desaad parecia bastante insano. Ele tinha um sorriso incontrolável no rosto, assim como uma ligeira inclinação para frente, deixando os braços caídos ao lado do corpo. - Loucura é achar que vocês tem alguma chance aqui. Cada um dos territórios que libertaram para nós viraram nossos domínios. Lugares para experimentarmos rituais diversos, para no futuro conseguirmos libertar alcançar nosso mestre. - Ele se virou, olhando para as esferas vermelhas no topo do local. - Embora meus companheiros não tenham conseguido ter tempo para isso, eu aproveitei. Conheço a Caverna dos Reclusos como a palma da minhã mão. Deixei seus amigos terem uma chance, mas acho que vou retirar isso. - Com um aceno, a luz se apagou. Nos ínfimos de segundos antes do breu tomar conta da galeria, tudo que Sasha conseguiu identificar era a face ferida do encapuzado e seu olhar aterrorizador. - Que a escuridão seja seu túmulo.

 A primeira reação da garota foi gritar por Sophie, que estava do outro lado protegendo amedrontada o corpo de Dalan, mas se controlou no instante seguinte. Estava claro que o adversário tinha olhos apenas para ela, e era melhor não lembrá-lo que existiam outros membros da Aurora ali. Infelizmente, não estava em condições de se defender. A repentina queda da luz não havia lhe dado tempo para se acostumar com as trevas, tornando-a cega. Girou o corpo e respirou fundo, se concentrando na audição, único sentido que poderia ajudá-la agora.

 No entanto, estava longe de ser o suficiente. Percebeu o soco em seu estômago somente quando a dor já era insuportável. Foi ligeiramente levantada no ar, cuspindo sangue quente da garganta. Tudo o que conseguiu foi segurar a região ferida com as mãos antes de ser atacada novamente, desta vez uma cotovelada em suas costas. Arfou com a falta de ar e caiu no chão, fechando os olhos pela agonia que sentia.

  Percebeu a situação indefesa em que se encontrava e tentou rolar para o lado para se proteger, mas bateu em duas pernas no caminho. Antes que pudesse fazer qualquer coisa foi chutada para cima, desta vez voando três metros na vertical. Girou no ar e caiu com o estômago no joelho de Desaad, vomitando sangue nas pedras escuras abaixo. Isso é ruim, pensou a garota tremendo ligeiramente enquanto que procurava se afastar o joelho de si. O encapuzado recolheu a perna e ela caiu no chão de frente, procurando um ar que não chegava. Se lembrou da luta em Helleon, e um medo profundo tomou conta de seu coração.

 Um chute no rosto quase a fez perder os sentidos, rolando uma única vez para o lado com a face empapada de vermelho. - Eu estava pensando em terminar logo com isso, mas gosto da situação em que nos encontramos. - Disse a voz do homem acima dela, sentindo-o ajoelhar ao seu lado. - Em seus últimos momentos nessa dimensão, quero que saiba o erro que cometeu ao nos enfrentar. - Ele pegou sua mão esquerda e começou a empurrar o dedo mindinho para trás, forçando-o até o quebrar. Sasha soltou um grito abafado enquanto que o encapuzado partia para o anular.

 Não, isso não, pensou a membra da Aurora enquanto trincava os dentes. Não iria deixar ser humilhada e torturada. Girou o corpo para ficar de frente a Desaad, identificando seu contorno na escuridão. Infelizmente o movimento o ajudou a quebrar outro dedo, mas sua força de vontade já havia se manifestado, eclipsando a dor e o medo. Gritou e dobrou o corpo, chutando o homem na cabeça e quase o derrubando. Aproveitou o momento e se levantou em um salto, se apoiando na mão ferida. Enfiou o cotovelo no rosto já inchado do líder do Culto Púrpura, levando-o desta vez ao chão. Preciso aproveitar essa chance, pensou ela enquanto dobrava a perna para um novo golpe. Se o adversário havia caído, não poderia se levantar.

 No entanto, a situação não estava mais ao seu favor. O homem rolou para trás, se esquivando do pé de Sasha. A garota arregalou os olhos e correu em sua direção, temerosa em perder a vantagem. Era exatamente o que o encapuzado esperava. Ele aproveitou da velocidade da outra e estendeu a perna à frente, sendo auxiliado pela escuridão que o encobria. Sasha foi cega em direção à armadilha, não percebendo a sola de Desaad até que se fincou em sua canela. Ela caiu para frente, onde uma palma em riste a esperava.

 Conseguiu identificar a ameaça e se deslocar no ar, mas já era tarde. Os dedos do homem rasgaram o colante e a pele, abrindo um rombo na lateral da garota. O sangue verteu tal qual uma cascata, saindo do enorme ferimento e da boca da membra da Aurora, que caiu no chão quase desmaiada. Ela encarou o vazio com seus olhos abertos, segurando o chão com a mão sadia como se sua vida dependesse disso.

 Não percebeu que Desaad estava ao seu lado até que ele fincou o pé em cima do buraco em sua lateral, arrancando uma arfada da garota. O homem a empurrou para o lado, deixando-a de costas no chão. - Algo a dizer agora? - Perguntou batendo calmamente o pé no chão, com a sola chapinhando na poça de sangue. Ele inclinou ligeiramente a cabeça e cutucou com a ponta do pé o ferimento, provocando uma expressão de agonia na adversária. - Talvez agora finalmente perceba as consequências de por em meu caminho.

 Sasha, imersa em dor,  se viu à tona com seus pensamentos. Seria aquela sua morte? E depois, quem cuidaria da guilda? Lembrou do rosto de seu pai antes de sua derradeira missão, lhe confiando a Aurora. De alguma forma, apenas pronunciar mentalmente aquelas palavras lhe deram um jorro extra de energia. Não iriam cair daquela forma. Nem hoje, nem nunca. E estava nas mãos dela garantir isso. Usou o que lhe restava de energia para se forçar a se mover, se apoiando no chão com um cotovelo enquanto arfava repetidamente.

 - Oh. Ainda com disposição? - Zombou o encapuzado. Ah, cale a boca, pensou Sasha enquanto olhava para os lados em busca de qualquer auxílio. Lutar na escuridão era dar uma vantagem gigantesca para o adversário, portanto deveria dar algum jeito de conseguir luz. Notou um brilho roxo no horizonte, de alguma forma quase que imperceptível naquele breu. Sem nem pensar, a garota imediatamente ficou de pé e correu na direção daquilo, sentindo o rombo em sua lateral explodir em dor recém-renovada. Espere um pouco, implorou suando.

 Conseguiu alcançar a sala iluminada, notando uma coletânea do que pareciam cristais púrpuras em cima de um pequeno palanque de pedras. A membra da Aurora foi derrubada pelo sofrimento e caiu bem na entrada do aposento, segurando o ferimento como se ele quisesse explodir. Trincou os dentes e fincou a cabeça no chão. Só mais um pouco, tentou pedir enquanto respirava debilmente. Começou a se arrastar na direção dos artefatos, apenas para receber um pisão nas costas. Sangue novamente escapou pela boca, manchando as pedras úmidas.

 - Me surpreendo com a disposição de vocês. - Admitiu o homem, pressionando a coluna de Sasha com o pé direito. - Decidi que vou te deixar viva até Zaulin voltar. Ver você perdendo a esperança deve ser bastante... - Naquele momento, Desaad olhou para frente, notando os quatro cristais que rodavam lentamente. Seu rosto tomou imediatamente um quê de espanto, e ele começou a andar lentamente na direção do aposento. - O que fizeram com ele? - Perguntou com a voz fraca.

 - O quê? - Disse a garota com sangue na boca, tremendo enquanto se levantava. Deu alguns passos para frente, se apoiando no batente da entrada. Do outro lado, o encapuzado se virou com ódio no olhar.

 - Quem acham que são? - Indagou, lívido. - Hein? O que fizeram com Zaulin para ele ter que se prender em forma cristalizada?

 - Engraçado, a história que Amanda me contou era que tínhamos derrotado esse tal de Zaulin e ele se teletransportou com o rabo entre as pernas. - Começou Sasha, sorrindo com o canto da boca. Desaad engoliu em seco, e a garota olhou para o restante dos cristais. - Então esses são seus companheiros? O que é isso, uma forma de se protegerem? Do quê, exatamente?

 - E-eles... - Gaguejou o homem, mas a membra da Aurora o interrompeu, largando o batente.

 - Deixe eu adivinhar. Minha guilda acabou com eles e fugiram quando perceberam que não havia como vencer, não foi? - Perguntou, sem dar chance para resposta. - Bem, parece que faltou alguém. - Ela disparou, percebendo que a chance que havia esperado durante a luta inteira havia finalmente aparecido.

 Desaad tentou se proteger, mas seu choque havia retardado seus movimentos enquanto que Sasha tinha a vontade explodindo de seus poros. Ela conseguiu ser mais rápida do que o adversário, desferindo um pesado soco em seu rosto. O homem começou a cair, mas novamente a membra da Aurora foi mais veloz. Ela foi ao chão e se pôs na trajetória da queda, onde bateu com o cotovelo no pescoço que vinha em sua direção.

 Seu adversário grasnou um som abafado, impedido de respirar. O que se tornou ainda mais difícil quando uma mão segurou seu rosto e o impeliu para o chão, ficando-o nas pedras. Em seguida se seguiu uma profusão de socos em todos os lugares acima dos ombros, rápidos o suficiente para que o bloqueio se tornasse uma tarefa impossível e fortes o bastante para praticamente impedir Desaad de pensar em se defender. Ele havia até conseguido formular uma ideia de contra-atacar da mesma forma que havia feito antes, mas seu limite havia sido alcançado. Não lhe restavam forças.

 - ARRGH! - Gritou pela última vez Sasha, juntando as duas mãos e as afundando no rosto do homem. Foi a vez do nariz do adversário explodir, espalhando o sangue vermelho no ambiente púrpura. A garota respirou arduamente e se afastou, tentando se recompor. Abaixo dela, o rival jazia desacordado. Esperou alguns minutos com a cabeça pendendo para trás, sentindo o coração se acalmar.

 - S-Sasha? - Perguntou uma voz familiar atrás dela. A membra da Aurora se virou, avistando sua mãe adentrando o aposento. Estava bem mais magra do que antes, exaurida pelos dias de prisão. No entanto, seus olhos brilhavam com as lágrimas que começavam a sair dos olhos, dando uma sobrevida à expressão abalada da mulher.

 Stella não falou mais nada, apenas correu na direção da filha para a aninhar entre os braços. Sasha ficou alguns instantes de olhos arregalados enquanto a adrenalina ainda não abaixava, sem formular um movimento sequer. Depois de um tempo levou os braços às costas da mãe, fechando os olhos com calma.

 - Que tocante. - Disse Desaad. As duas se viraram rapidamente, percebendo que o homem já estava de pé, parado ao lado dos cristais. Seu rosto era uma massa disforme de carne e sangue, mas de alguma forma parecia sorrir.

 - Você está preso. - Alertou Stella, também se levantando. A filha se apoiou em seu ombro, sentindo a dor do ferimento voltar a agonizar. - Pela morte de Visandre, pelo ataque à Aurora e por lidar com magia de forma não-autorizada. Entre outros.

 - Eu? Preso? - O homem levou a mão ao peito congelado, com o sorriso desaparecendo. - Desconfio que eu tenha que discordar. - Ele estendeu o braço, agitando a capa atrás de si. - Estamos lidando com forças muito acima de qualquer justiça terrena.

 - Se está falando dos demônios pelos quais vendeu sua alma, peça-os para te ajudar quando os magos da Aliança te interrogarem. - Disparou a líder da Aurora.

 - Desculpe. Não respondo a estes covardes. - Respondeu Desaad, levantando as sobrancelhas. - Me ajoelho apenas perante meu mestre. Aquele que vocês aprisionaram.

 - Do quê está falando? - Perguntou Sasha, contorcendo o rosto.

 - De coisas que vocês não fazem a menor ideia. - Zombou o homem, abrindo os braços. - Sua Aliança acha que venceu meu senhor, mas não esperam pelo Culto Púrpura. Nós, que sacrificamos nossas vidas para que pudéssemos ser notados pelo grande lorde das trevas, seremos os responsáveis por resgatá-lo da prisão que se encontra. Vamos encontrá-lo, e com seu poder iremos mudar o mundo.

 - Você é apenas um insano. - Disse Stella, abaixando um pouco o queixo. - Acha mesmo que servir a um demônio irá te trazer alguma recompensa?

 - Nunca disse que servimos a um demônio. - Retrucou Desaad, manifestando uma expressão tranquila no que restava de sua face. - Somos companheiros. Os territórios que vocês conquistaram para nós eram apenas formas de trazê-los a este lado da Fronteira. Só que nunca disse que éramos seus subordinados. - Ele sorriu, mostrando a falta de dentes na bocja. - Apenas servimos a um mesmo líder.

 Os cabelos da nuca de Sasha se eriçaram. Sabia de quem o encapuzado estava falando. - Zemo...

 - Você está preso. - Repetiu Stella, franzindo a testa. - Depois do que disse, não sairá daqui sem que todos os magos da Aliança estejam presentes.

 - Me parece um pouco exagerado de sua parte. - Respondeu calmamente o líder do Culto Púrpura, espalmando a mão no cristal mais próximo. - Vejamos se seus companheiros tem o mesmo a dizer sobre isso. - Naquele instante, os artefatos luminosos apagaram. Um redemoinho de ar se atiçou no aposento, fazendo com que mãe e filha levassem os braços aos olhos, procurando se proteger. Quando Stella os abriu novamente, conseguiu ver que os cristais não estavam mais ali. Nem Desaad.

 - Onde estão Sophie e Dalan? - Perguntou com o rosto aterrorizado, se virando para trás. A garota disparou para fora, adentrando a escuridão profunda da caverna. Virou a cabeça para os lados, procurando desesperadamente algum sinal de vida.

 - NÃO! - Era um grito de Sophie, cortando a escuridão. Sasha disparou com tudo que tinha na direção daquele som, imprimindo o que restava de sua velocidade em suas pernas. Conseguiu identificar um vulto encapuzado na escuridão, agachado ao lado de outro. Era o suficiente para a garota, que se jogou na direção da figura com o manto, jogando-a ao chão.

 - Chega. - Rugiu por entre os dentes, pressionando os ombros de Desaad contra as pedras. - Não vai encostar um dedo em meus companheiros.

 - Engraçado você mencionar isso. - Respondeu o homem, com uma expressão tranquila através do rosto disforme. - Afinal, esqueceu da segunda membra de sua guilda que estava aqui. - Os olhos de Sasha se arregalaram em pavor, e seu pescoço virou para trás tão rápido que chegou a estalar. Havia uma terceira figura na escuridão, deitada de costas na pedra.

 - Sophie. - Soltou ela baixinho, correndo na direção da companheira. A garota não se movia, e mesmo naquela escuridão era possível ver que seus olhos anteriormente verdes estavam completamente negros, sem diferença entre a íris, a esclera e a pupila. Um peso gélido desceu pelo estômago de Sasha, que abriu minimamente a boca, sem resposta.

 - Irei te deixar cuidando dela. - Declarou Desaad se levantando. A membra da Aurora se virou com ódio em sua direção, ainda segurando a cabeça da outra.

 - Se acha que eu vou... - Começou por entre os dentes.

 - Sim, eu acho. - Interrompeu o homem, ajeitando a capa. - Prefiro sair daqui e me recolher para outro esconderijo sem que ninguém me persiga. Se quiser pode tentar me seguir, mas alguém tem que cuidar da garotinha. - Aconselhou, apontando com a cabeça para Sophie.

 - Seu... - Rosnou Sasha, tão lívida que chegava a tremer.

 - Vou assumir que isso é um adeus. - Disse Desaad, ajeitando a capa na cabeça. - Me disse antes que encerraria a luta entre a Aurora e o Culto Púrpura. Fico feliz que me despeço provando que estava errada.

 Ele começou a andar calmamente, passando ao lado das duas garotas. Sasha quase disparou em sua direção, procurando interceptá-lo, mas não podia deixar Sophie daquele jeito. Procurou avidamente a mãe, mas estavam tão imersas na escuridão que era impossível esperar que ela a achasse. Acabou por ficar calada, enquanto que Desaad dava seus derradeiros passos na direção da liberdade. Ele olhou para baixo e avistou, mesmo naquele mar de trevas, quatro pequenos cristais apagados na palma de sua mão direita. Fechou-a e olhou para frente, avistando a escadaria que o levaria para a superfície.

 Teria sua vingança. Algum dia, a Aurora estaria destruída, e ele estaria segurando a cabeça de Sasha nas mãos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Aurora: Capítulo 29 - Na toca do lobo


AURORA
CAPÍTULO 29: NA TOCA DO LOBO

 Dalan estava de olhos fechados, abraçado à cintura de Sophie enquanto que o mundo desmoronava ao seu redor. Flutuava sem controle pelo espaço, com os sentidos captando registros incongruentes à qualquer outra lembrança que possuía. Seu tato por exemplo estava maluco, registrando sensações que até então lhe eram desconhecidas. Uma das poucas que conseguiu discernir foram cócegas suaves no cotovelo, enquanto que o dedo mindinho registrava um calor intenso e o anular tremia de frio. Seus cabelos em uma hora estavam molhados e na outra ressecados, sempre agitados por um vento que não tinha direção nem temperatura. Sua perna direita começou a tremer violentamente, sendo em seguida coberta por algo gosmento e cheio de estática. Toda aquela insanidade havia o feito poupar a visão, protegida através das pálpebras bem espremidas. E o pior de tudo isso era que parecia estar lá por dias, sem nenhum descanso. Pelos deuses, que isso acabe, rezou ele intensificando o aperto na companheira, seu único resquício de normalidade naquela tempestade de loucura. 

 Os deuses pareceram atendê-lo, pois logo em seguida ele percebeu um ar frio e homogêneo que cobria seu corpo inteiro. Infelizmente a gravidade parecia também ter voltado, levando-o dolorosamente a um chão rochoso. Continuou imóvel onde estava, temeroso demais para saber onde havia parado. Se acostumou lentamente ao silêncio e à tranquilidade daquele local, juntando coragem para abrir os olhos.

 - Dalan... - Disse uma voz fraca e dolorida ao seu lado. - Acho que seu cotovelo está em cima do meu pescoço. - O rapaz abriu os olhos, vendo o rosto de Sophie ao seu lado. Com um rápido olhar para baixo, percebeu que estava esparramado em cima da companheira. Imediatamente grasnou e se afastou para o lado, corando tão forte quanto a garota.

 - Desculpa, desculpa, desculpa! - Sussurrou ele, se apoiando em uma parede rochosa com as mãos no chão. Sophie se sentou com dificuldades, massageando a traqueia. Ela olhou para os lados, abrindo uma expressão arregalada.

 - Onde estamos? - Perguntou, tateando para os lados enquanto procurava sua boina caída. Dalan olhou para trás, se deparando com uma cena bizarra. Quatro cristais púrpuras e luminosos levitavam à frente deles, rodando em torno de seus respectivos eixos em uma pequena plataforma de pedras. Suas luzes pulsavam e iluminavam o que parecia uma apertada caverna natural, formada por rochas negras e úmidas. O rapaz se virou para trás, avistando uma abertura na parede.

 - Eu posso estar dando um tiro no escuro. - Respondeu ele, se colocando em pé. - Mas apostaria o restante dos meus tens que estamos no esconderijo do tal grupo que invadiu a Aurora, já que o mascarado nos trouxe até aqui. - Sophie passou de vermelha para branca, olhando para os lados enquanto se levantava com uma das mãos no joelho.

 - Acha que ele ainda está aqui? - Questionou ela quase que sussurrando, se aproximando assustada do companheiro. Dalan se esgueirou até a abertura, tentando identificar alguma coisa. Só existia a escuridão do lado de fora, tão densa que a luz roxa que iluminava fracamente aquele aposento nem sequer poderia sonhar em romper. 

 - Eu não tenho mais certeza de nada. - Admitiu, rangendo os dentes irritado. Estava em uma situação bastante infeliz, jogado em lugar que não conhecia e nem fazia ideia de onde ficava. Isso não o agrava nem um pouco.

 - Então o que que a gente vai fazer? - Continuou a interrogar a membra da Aurora, torcendo as mãos de forma nervosa. Se Dalan se irritava com aquela conjuntura desconhecida, a garota tinha pavor. Havia passado muitos anos daquele jeito, sem saber o que fazer e com surpresas desagradáveis a cada esquina. A lembrança de sua infância nas ruas a fez pensar na irmã, desejando inconscientemente que ela estivesse ao seu lado. Todo aquele isolamento que fomentou nas duas últimas semanas parecia ter sido mais um erro para sua coleção, pensou franzindo o rosto.

 Ao seu lado, o rapaz pensava arduamente. Estavam em território desconhecido, aparentemente hostil. Se quisessem sair dali vivos, teriam que reverter a situação. Enquanto procurava alguma forma de fazer isso, sua mente o lembrou de algo mais importante. - Sophie, já sei o que precisamos fazer. - A garota saiu de seu momento de culpa, virando os grandes e arregalados olhos para o companheiro. - Se esse for mesmo o esconderijo do tal...

 - Culto Púrpura. - Interrompeu ela baixinho.

 - Isso. Se estivermos mesmo no lugar deles, talvez a senhora Stella esteja por aqui. - Ele se virou novamente para a escuridão, como se ela já estivesse esvanecido. - Precisamos resgatá-la. É a nossa prioridade no momento. E é aí que você entra. - Terminou apontando o dedo para ela.

 Sophie engoliu em seco, temendo o que vinha pela frente. - Eu? 

 - Sim, vou pedir que você fique invisível e procure ela por aqui. Eu sei que está escuro, mas não sabemos se eles enxergam melhor do que nós. Use isso para te ajudar. - Ele tirou a veste negra que usava por cima da camisa cinza-escura, colocando-a por cima dos ombros da companheira, que corou intensamente com aquele ato. - Deve te ajudar a se camuflar. Enquanto isso eu vou te dar cobertura.

 - Dar cobertura? - Perguntou ela, segurando as pontas da veste. - Como assim? O que você vai fazer?

 - Bem, eu vou chamar a atenção. - Respondeu, rindo pelo nariz pelo nervosismo. Sophie o encarou em silêncio, engolindo em seco. - Só vou te pedir uma coisa. - Acrescentou ele, olhando para fora mais uma vez. - Depois de tirar a senhora Stella desse lugar, seja qual for, quero que você volte. Seja lá o que eu vou enfrentar, conseguiram deixar Sasha às portas da morte. Não é algo que vou conseguir derrotar sozinho. - Ele se virou, encarando a companheira fundo nos olhos. - Vou precisar da sua ajuda.

 Sophie ficou em silêncio, mergulhada naqueles olhos negros. Se lembrou de Julie dizendo que ela a prendia na sede da Aurora. Se lembrou do distanciamento dos companheiros, firmes em um desconhecido pacto para deixá-la cuidar sozinha de seus problemas. Se lembrou da solidão e da inferioridade que havia sentido nos últimos dias. Agora, no entanto, alguém estava lhe estendendo a mão, pedindo seu apoio. A senhora Stella havia lhe confiado uma missão antes, mas isso era diferente. Daquela vez tinha Marcus como rede de apoio, estavam na familiar Helleon e não era uma situação de vida ou morte. Agora, estavam num lugar em que apenas os deuses conheciam, onde um passo errado poderia ser o último. E além disso, era Dalan quem pedia, a mesma pessoa que havia lhe causado tanta confusão e agora tornava as coisas tão claras. A garota acenou mínima e positivamente com a cabeça, ainda repleta de pensamentos para dizer alguma coisa.

 - Certo. - Disse o rapaz, um pouco aliviado. - Eu vou na frente para te dar cobertura. - Ele saiu para a escuridão, deixando a companheira sozinha naquela sala roxa. Não posso deixá-lo na mão, pensou ela enquanto se tornava invisível.

 Dalan começou a caminhar pela caverna, sem sequer conseguir enxergar um palmo à frente de seu nariz. Isso era burrice, pensou para si mesmo. Das grandes. Estava em território hostil e caminhando sem o auxílio da visão. Era uma questão de tempo até uma adaga cortar sua garganta, ou pior. Olhou para trás, como se conseguisse identificar Sophie se esgueirando pela escuridão. Presumivelmente não conseguiu enxergá-la, e considerou isso como uma boa notícia.

 Deixou um pouco do ar que guardava inconscientemente escapulir pelo nariz. Todo aquele silêncio o incomodava mais do que a escuridão. Esperava que alguma coisa já tivesse acontecido, mas nada o incomodava naquela caverna. Será que estavam o observando? Estariam ali mesmo ou haviam saído? O rapaz rangeu os dentes, desejando apenas que alguma coisa acontecesse naquele vazio sensorial.

 Atrás dele, um brilho roxo se acendeu.

 Enquanto isso, em algum outro canto da galeria, Stella Alba estava sentada com as pernas esparramadas em um chão frio e rochoso, com as costas apoiadas na parede. Estava em um espaço apertado, de quase três metros de diâmetro, praticamente um buraco na parede. Vestia um simples vestido cinza e manchado, e perto de sua canela direita havia um prato de barro e um copo vazio. A líder da Aurora tinha os olhos semi-abertos, concentrada em uma meditação de culpa e prece pelos membros da guilda.

 Ela notou uma forma escura se aproximando, mas não deu atenção. Provavelmente era Desaad querendo atormentá-la novamente. Apoiou o queixo no peito, voltando aos seus pensamentos. Estava prestes a adormecer quando uma voz extremamente familiar a chamou.

 - Senhora Stella? - A mulher levantou rapidamente a cabeça, certa de que estava sonhando. Reconheceu aquela boina branca pendurada no ar, e mesmo se não tivesse, o rosto de Sophie se materializou diante dela, parada na entrada de sua cela improvisada.

 - Sophie? - Perguntou com a boca seca, se levantando minimamente. - O que está fazendo aqui?

 - Vim resgatá-la. - Respondeu a garota, se adiantando. No entanto, esbarrou no que parecia uma barreira invisível, quase caindo para trás. Ela estendeu as mãos à frente, se adaptando àquela situação inusitada. - O que é isso?

 - Minha prisão. - Ela se levantou com um salto, se aproximando da companheira. - Você precisa sair daqui agora! Essa barreira é mágica, deve ter alertado o... o homem que está aqui!

  - Dalan disse que ia cuidar dele por enquanto. - Respondeu Sophie com o rosto nervoso, olhando para trás como se esperasse ser atacada a qualquer segundo.

 - Dalan também veio? - Stella também pressionou a barreira invisível, ficando cara a cara com a garota. - Preste atenção, Sophie. Tire ele daqui e corram. O homem que está aqui, Desaad, é o mesmo que atacou Sasha! - Seus olhos se arregalaram, e ela ficou em silêncio por alguns instantes. - Sasha. O que aconteceu com ela?!

 - Está em Tinyanga se recuperando, não se preocupe. - Tranquilizou rapidamente a outra, estendendo as mãos em palma. - Agora, quem é esse tal Desaad? O que ele tem de tão ameaçador?

 Do outro lado da caverna, Dalan foi arremessado para longe, rolando através das rochas úmidas e geladas. Começou a se levantar debilmente, e naquele momento uma luz vermelha penetrou através de suas pálpebras. Abriu os olhos, notando grandes esferas luminosas no teto da caverna iluminando uma extensa área ao redor dele. Voltou a olhar para frente, bem a tempo de ver um encapuzado disparar em sua direção. O garoto dobrou o corpo para sua diagonal traseira, esquivando de um soco em seu queixo. O adversário girou em torno de si e desferiu um chute, que foi bloqueado pelos antebraços do rapaz da Aurora. O golpe no entanto foi suficiente para arrastá-lo para trás, arrastando seus pés nas pequenas pedras do chão.

 - Você é bem treinado. - Disse o agressor, com seus traços finalmente visíveis. Era um homem alto de rosto fino, com loiros cabelos penteados para trás embaixo de um capuz que, naquela luz rubra, parecia ser de um tom magenta, decorado com adornos prateados nas pontas. - O que é sinceramente uma pena. - Ele voltou a atacar, com seu manto esvoaçando perto da cintura. Dalan ergueu as mãos perto do rosto e conseguiu bloquear um braço que vinha à sua esquerda. Logo em seguida veio um chute do outro lado, e o garoto deu um jeito de estender o antebraço direito para se proteger. Viu rapidamente que estava aberto para mais um ataque e saltou para trás, ganhando algum espaço. - Poderiam ser tão úteis.

 - Moço, eu acho que a gente não está falando a mesma língua. - Disse o rapaz para em seguida ser golpeado no queixo pelo pé do encapuzado, voando vários metros para trás. Bateu de costas em uma parede, segurando a região ferida enquanto tentava se apoiar. À sua frente, o homem mais velho se aproximava.

 - Quando soube que Visandre estava empregando uma guilda para cumprir meus pedidos, tive que vê-la com meus próprios olhos. - Começou ele com um tom de voz frio e sério, pisando forte nas rochas da caverna. - Observei seus companheiros em Tinyanga semanas atrás. Pareciam promissores. Teríamos uma bela história juntos se não decidissem pensar sem a cabeça. - Ele agarrou o colarinho de Dalan, levantando-o até ficar de frente com seus olhos irritados.

 - Eles, o tal Culto Púrpura... - Começava Stella com uma voz assombrada. - Começaram algum tempo atrás a pedir para que o prefeito de Helleon conseguisse esvaziar certos territórios para eles. Eu não sei o que queriam fazer, mas haviam convencido Visandre. - Ela engoliu em seco, demorando um tempo para continuar. - Só que ele acabou morto no dia que nos invadir, supostamente por se amedrontar e nos dar aquela agenda repleta de provas. - Sophie desviou os olhos, respirando com força.

 - Você acha que... - Começou ela, mas a líder a interrompeu.

 - Não adianta pensar nisso agora. - Tranquilizou a mulher. - Eles iriam causar uma confusão dessas de alguma forma. Não são pessoas sãs, Sophie. - Ela olhou para a escuridão, como se alguém estivesse ouvindo. - Pelo que eu sei, fizeram... pactos.

 - Pactos? Pactos com quem? - Perguntou Sophie depois do silêncio que se seguiu. A mulher mais velha fechou os olhos, procurando uma forma de dizer aquilo.

 - Demônios. - Sophie engoliu em seco, absorvendo aquela palavras. Demônios eram até então apenas uma lenda, uma invenção de pessoas histéricas. Só que ela se lembrou de Zaulin e seu sangue negro. Não existia nenhuma raça que conhecesse que sangrasse daquela cor. Do outro lado, Stella continuou. - Querem mudar o mundo com a ajuda deles. Desaad, o líder, disse que querem buscar uma entidade ainda mais forte para conseguir isso. - A líder da Aurora deixou as mãos deslizarem para baixo enquanto pendia o queixo no peito. - É culpa minha. Nunca deveria ter aceitado as missões de Visandre. Acabei trazendo vocês para esta insanidade.

 - Ninguém está te culpando, senhora Stella, e acho que nem é momento para discutirmos isso. - Disse distraidamente Sophie, ainda com a cabeça presa na revelação dos demônios. Se lembrou em um sobressalto de Dalan, que estava lhe dando cobertura sozinho. - Como é que eu te tiro daqui? - Perguntou ela, voltando sua atenção para a parede invisível.

 - Esqueça isso. Desaad, o líder deles, foi quem conjurou essa barreira. - Respondeu a outra.

 - Ótimo... - Começou a membra da Aurora, olhando para baixo enquanto juntava coragem. - Ótimo. Dois problemas resolvidos de uma vez só. - Ela fez uma careta e disparou para longe, correndo pela caverna.

 - Sophie! Sophie! - Tentou chamar a mulher, mas a garota já havia mergulhado na escuridão. Escuridão essa que era anulada apenas em um canto da caverna, um espaço rubro que servia como palco para uma luta feroz.

 Dalan foi arremessado para a beira desse círculo luminoso, massageando o pescoço ferido. Ouviu os sons do adversário se aproximando e rolou para o lado, bem a tempo de evitar um pisoteamento em sua cabeça. Ficou de pé desajeitadamente, mas não conseguiu defender o chute que o jogou novamente para o outro lado.

 Isso já está ficando um porre, pensou o garoto enquanto tentava mais uma vez se levantar. Tudo o que fazia era se defender, e nem isso era mais garantido. O encapuzado era bem mais rápido e forte do que um humano normal, e além disso parecia ter uma energia que não acabava nunca. Desaad ficou parado onde estava, ajeitando o capuz em sua cabeça. - Eu fico realmente feliz que Zaulin esteja a caminho. Quem sabe as cabeças que ele trará consigam convencer você e sua laia para que eu não perca toda essa força à minha disposição. - Deu um passo à frente, franzindo a testa. - Acredite, eu ainda tenho esperanças em vocês. Mesmo... espere. - O homem parou, estreitando os olhos. De repente girou corpo e puxou alguma coisa da escuridão, jogando-a até o meio da arena luminosa. O que parecia uma série de roupas no início foi revelado ser Sophie, que rolou dolorosamente até parar bem embaixo das esferas vermelhas. - Mesmo abusando de táticas tão covardes.

 - Sophie! - Gritou Dalan, se pondo de pé. Desaad começava a caminhar na direção da companheira, que jazia tremendo no chão. O garoto começou a correr na direção dele, conjurando seus poderes na mão direita. Estava esperando um momento oportuno para revelá-los, como fez na luta contra Sasha, mas não tinha muita escolha agora. Jogou o braço para frente e congelou uma trilha entre ele e o encapuzado, saltando no chão para que escorregasse com mais velocidade. Foi com os joelhos dobrados, preparado para atacar as canelas do outro. Infelizmente o homem deu um passo rápido para trás, saindo da direção do golpe, e pisoteou o peito do garoto quando ele passou à sua frente.

 - Vocês estão me subestimando? É isso? - Perguntou, afundando o pé nas costelas do rapaz. Ele grunhiu com um pouco de sangue escorrendo pelo canto da boca, tentando com as duas mãos afastar o calcanhar do adversário. - Não fazem ideia do que sou? Eu... - Ele não conseguiu terminar de falar, pois naquele momento Sophie havia pulado em seu pescoço.

 Desaad manifestou um ar de irritação em sua testa e agarrou a veste longa que a garota estava usando, se preparando para jogá-la para longe. Dalan no entanto aproveitou a distração e empurrou a canela do homem para baixo, se livrando do aperto. Imediatamente ficou de pé e, se utilizando do desequilíbrio do adversário, abriu as duas palmas e as bateu no peito dele, congelando o máximo que conseguia.

 O encapuzado grunhiu e usou da garota em seu pescoço como projétil para afastar o rapaz, arremessando-os para longe. Colocou em seguida a mão na região atingida pelo gelo, vermelho naquela luz, sentindo as roupas e a pele marcadas pelo gelo que as cobria. Tossiu, percebendo alguma dificuldade em respirar por causa da imobilização de seu tórax. - Uma pena, realmente. - Disse ele em voz baixa, voltando a encarar os membros da Aurora.

 Dalan disparou em sua direção, consciente de que não teriam uma chance melhor. Tentou um chute no lado esquerdo do adversário, que o bloqueou com o punho. Desaad esticou o outro braço para contra-atacar, mas Sophie surgiu de fora de seu campo de visão e agarrou seu pulso, jogando-o para trás. O companheiro aproveitou e deu dois socos no rosto do homem, ganhando tempo enquanto seu poder não recarregava.

 O líder do Culto Púrpura rangeu os dentes e jogou sua perna contra o rapaz, fazendo-o cair. Em seguida agarrou a garota que o segurava pela cabeça, fincando seus dedos em seu crânio. Ela gritou enquanto era levantada, no momento em que o encapuzado arregalava os olhos com uma sutil loucura e abria a mão direita em palma, preparado para atacá-la do mesmo jeito que havia feito com Sasha.

 No entanto, o breve delírio o fez ficar cego ao seu redor, não percebendo que Dalan se aproximava em velocidade. Ele segurou seu antebraço com as duas mãos, congelando-o de forma árdua. Desaad apenas arregalou os olhos e virou minimamente a cabeça para o lado, encarando o adversário. O brilho insano em suas órbitas refletiu a luz vermelha com intensidade, e o homem largou Sophie no chão.

 - Chega. - Ele instantaneamente agarrou o rosto do rapaz e girou o corpo, afundando-o nas pedras abaixo deles. Uma pequena cratera se abriu, e o sangue do membro da Aurora se misturou com o ambiente rubro. O encapuzado rugiu e bateu o crânio dele no chão novamente, e outra vez, e outra, e outra.

 - DALAN! - Gritou Sophie, correndo para tentar ajudá-lo. Tentou afastar o braço sadio do homem com as duas mãos, conseguindo puxá-lo para o lado. O companheiro continuou onde estava, com o rosto oculto pelo cabelo empapado do líquido vermelho e a boca levemente aberta. Desaad encarou com seu olhar louco a garota, dando-lhe uma cotovelada para longe.

 - Que você sirva de lição. - Exclamou o homem para o rapaz caído, e se ajoelhou em um ínfimo de segundo. Sangue espirrou para o alto, refletindo nos olhos arregalados de Sophie. Desaad se levantou, com a mão encharcada do fluído brilhante. Aos seus pés, Dalan estava estirado na pequena cratera, com um enorme rombo em seu estômago. Sua companheira não conseguiu esboçar uma reação, exceto por um ligeiro tremor em seu corpo. Só notou que o encapuzado estava se aproximando dela quando já estava à sua frente. Virou a cabeça lentamente para o homem, com pequenas lágrimas começando a se formar nas órbitas. A insanidade começava a abandonar o líder do Culto Púrpura, mas isso não o tornava menos ameaçador. - Agora, volte à sua guilda e conte o que aconteceu aqui. Espero que sigam minhas ordens a partir de hoje. - Ordenou com a voz ríspida.

 Sophie voltou a abaixar a cabeça e fitar o corpo caído de Dalan, com o tremor se intensificando. Acabou, pensou ela.

 Enquanto se desesperava lentamente, passos começaram a ecoar naquela caverna. Sophie olhou para trás com as lágrimas ainda se avolumando em seus olhos, se perguntando que desgraça iria ocorrer agora.

 Uma forma começou a se destacar no breu, caminhando calmamente na direção do círculo de luz. Parecia uma pessoa magra, um pouco baixa e com duas coisas que saíam da cabeça e chegavam até suas costelas. Quando a figura adentrou a arena, Sophie arfou de surpresa.

 Suas pernas eram cobertas por um colante preto, que cobria o corpo como uma segunda pele. No quadril, duas linhas brancas saíam em um ângulo agudo da região do baixo-ventre, e entre elas a cor do tecido era azul, na mesma intensidade das marias-chiquinhas ao lado da cintura. As linhas percorriam um caminho diagonal até chegarem à ombros magros, onde desceriam para desenhar a mesma forma nas costas. Havia uma mochila branca pendurada nas costas, e entre as alças saía um pescoço pálido, revelando mais acima um rosto fino e delicado. Uma boca séria e um nariz pequeno e arrebitado o ornamentavam, assim como dois olhos grandes cobertos por sobrancelhas baixas e sérias. No topo da cabeça, longos cabelos azuis, da mesma cor que as pupilas, desciam levemente desarrumados.

 Não havia dúvida de quem era, e Sophie sentiu uma sensação de esperança crescer em seu peito. Sasha havia chegado.

 Sasha passou os olhos pelo lugar, estreitando-os ao ver Dalan caído e Sophie ajoelhada. Se virou para Desaad, que parecia genuinamente surpreso com sua aparição. Ela limpou a garganta e flexionou os dedos, dobrando os joelhos para assumir uma postura de ataque. - Segundo round.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Aurora: Capítulo 28 - Demoníaco


AURORA
CAPÍTULO 28: DEMONÍACO

 Amanda engoliu em seco, conseguindo quebrar um pouco do terror que sentia. À sua frente o mascarado encapuzado continuava imóvel, nas portas da sede da Aurora com os braços ao lado do corpo e a capa balançando ao vento que havia chegado na praça. A fonte quebrada ainda pingava água, fornecendo o único som ali presente. A garota olhou para os lados, percebendo que os companheiros continuavam em transe. Respirou fundo, tentando expelir os últimos resquícios do estupor que havia tomado conta deles. 

 - Sophie, vá para trás do prédio e traga o outro Recon para cá. - Pediu ela, e a outra garota saltou ao ouvir aquela voz chamando-a. Se virou para a companheira, com os olhos arregalados e o corpo ligeiramente trêmulo.

 - Como? - Perguntou nervosa, voltando a encarar o mascarado que, naquele momento, continuava sem fazer nada. Wieder pareceu acordar também e virou a cabeça minimamente na direção das duas, ainda de olho no invasor.

 - Traga Sabre para cá. - Disse Amanda com a voz ligeiramente empostada, e o vento agitou seu vestido marrom revelando o short branco que usava até os joelhos. - Acho que vamos precisar de tudo que conseguirmos juntar contra esse cara.

 - Sim, mas... - Começou Sophie, engolindo em seco. - Alguém vai precisar distrair ele. Só tenho como entrar na sede pela porta da frente.

 - Não se preocupe com isso. - Avisou a outra, dando um passo à frente. O vento voltou a soprar, dessa vez balançando seus longos cabelos castanhos. Sentia uma irritação profunda se aquecer dentro de si, escondida no fundo de seu coração por todos os problemas que haviam surgido nos dias anteriores. Não podia antes descontar nos outros a raiva que sentia daqueles ataques, já que não seria a hora certa para isso. Só que agora parecia o momento ideal para se soltar.

 Novamente respirou fundo e correu à frente, gritando a todos os pulmões enquanto que se agachava e pegava uma pedra da fonte ainda quebrada. Ao seu lado, sentiu algo grande pisotear o chão e a ultrapassar. A Recon que Sophie havia montado rosnou e atacou o mascarado, tentando engolir sua cabeça. Ele apenas deu um passo para o lado, deixando que o animal abocanhasse o ar. Em seguida soltou o braço no réptil, jogando-o para as casas à beira da praça.

 Amanda desacelerou, sentindo o coração parar em seu peito. Aquele encapuzado não parecia ser do mesmo nível de Alana, a elfa da capa roxa e prata que havia os enfrentado naquele mesmo lugar uns dias atrás. O invasor aproveitou a chance e se adiantou, parando na frente da garota. Ela arregalou os olhos, sentindo novamente o terror tomar conta de si. O adversário não se movia, apenas a parecia encarar através dos espaços negros em sua máscara. A membra da Aurora sentiu uma gota de suor descer pelo seu rosto e procurou recuar, mas acabou tropeçando em um dos destroços espalhados pela praça e caiu no chão. 

 - EI! - Gritou uma voz grave, e um golem marrom surgiu em cena, desferindo um soco no mascarado. Ele girou o corpo, segurando o braço de Wieder enquanto fazia isso. Em seguida o atirou na fonte quebrada, fazendo-o bater de costas e cair na água. O encapuzado, ainda sem esboçar nenhuma reação ou som, virou a cabeça para encarar novamente a garota no chão, que ofegou audivelmente.

 Ela olhou para os lados em busca de qualquer coisa que pudesse a ajudar, e notou o que parecia uma boina e uma camisa brancas e uma calça azul penduradas no ar adentrando as portas da sede. Amanda soltou o ar que guardava e fechou com força os dedos na pedra que ainda carregava. Precisava conseguir tempo, concluiu. Por Sophie.

 - Q-quem é você? - Perguntou ela, tentando se arrastar para trás. O encapuzado a acompanhou, sem dar espaços.

 - Meu nome é Zaulin. - Respondeu, e aquela voz gutural voltou a eriçar os pelos da garota. - É tudo que saberá antes de morrer.

 - Espere! - Pediu ela, estendendo o braço à frente. O mascarado não se moveu, parecendo indiferente à situação em que se encontrava. - Você... - Amanda fechou os dedos da mão, se lembrando dos amigos que não haviam voltado. - Esteve em Thomas Galvan? Na ilha?

 - Ah. - Soltou Zaulin. - Deve estar falando dos dois garotos cujo navio derrubei, não? - Não era possível confirmar, mas pelo tom da última palavra pareceu com que o encapuzado havia dado um sorriso. A garota ficou vermelha e mordeu a bochecha por dentro, sentindo a ira novamente sobrepujar o medo.

 Antes de se levantar, no entanto, as portas da Aurora se abriram com um estrondo. O Recon remanescente havia disparado pela entrada, correndo na direção do invasor. O encapuzado se virou para confrontá-lo, e Amanda viu a oportunidade aparecer diante dos seus olhos.

 - Não vire as costas para uma dama! - Gritou ela, se levantando com um salto e girando o braço que segurava a pedra. Usou seus poderes de vento para impulsionar o projétil com mais força, acertando em cheio o lado da máscara do adversário. O golpe não pareceu tão forte a ponto de rachar o artefato, mas foi o suficiente para desequilibrar seu usuário.

 O réptil, alheio a tudo isso, rosnou e abocanhou o braço de Zaulin. Um líquido escuro começou a jorrar através das faixas de linho negro e os dentes que as rasgavam. Amanda estancou por alguns segundos, tentando entender o que era aquilo. Nenhuma das doze raças da Aliança tinha o sangue daquela cor. No entanto não havia tempo para pensar nisso, e ela se virou para chamar o companheiro caído. Wieder por sua vez, já estava saindo da fonte, com a água pingando através das frestas do ronatto, e ele correu para atacar o mascarado.

  O golem segurou o braço livre do invasor com as duas mãos, impedindo-o de se livrar o animal. Sabre por sua vez balançava a cabeça, querendo arrancar um pedaço de carne para si. A garota sentiu o coração bater mais forte com a chance inédita que tinham, e se virou para buscar um novo projétil entre os destroços. 

 Contudo, Zaulin ainda estava longe de ser imobilizado. Ele rugiu e girou o corpo, impelindo o Recon que o atacava na direção de Wieder. Os dois se chocaram e foram arremessados para longe, caindo em uma das casas abandonadas na beira da praça. Amanda se virou instintivamente naquela direção, e de repente sentiu o adversário ao seu lado. Tentou pular para longe, mas já era tarde. Ele a atacou com suas garras, lanhando o lado esquerdo de seu abdômen. A garota gritou, caindo de costas no chão que se manchava com o sangue vermelho. Tentou contê-lo com uma das mãos, rangendo os dentes. Sentiu que não era um corte muito fundo, graças aos deuses, mas era o suficiente para desestabilizá-la com a dor. Ao seus pés, o adversário se aproximava.

 - Acho que não entenderam o que se debruça sobre vocês. - Disse ele, passando a mão pelo seu membro ferido. Faltava um belo pedaço, mas isso não pareceu incomodá-lo. - Eu sou a morte. Tenho poderes que não se assemelham ao que demonstrei aqui. - Ao dizer isso, preparou o braço atacado, se movimentando como se estivesse saudável. - E vim buscar suas cabeças. - A garota fechou os olhos, pressentindo o golpe em sua jugular.

 Um som alto cruzou os ares, mas não foi barulho molhado e mortal que a membra da Aurora esperava. Ao invés disso, era agudo e metálico. Ela abriu os olhos, bem a tempo de ver Zaulin caindo para trás. Em seu campo de visão, um familiar bastão de madeira ornamentado com runas douradas ocupava uma área à sua esquerda. A conclusão veio antes da garota olhar para cima. Koga e Dalan estavam ao seu lado, imponentes e milagrosamente de voltas do reino dos mortos.

 - A cavalaria chegou! - Disse o garoto de tranças com um sorriso. O companheiro não compartilhava do mesmo humor, preferindo manter o rosto sério e focado. À frente deles, o encapuzado se levantava com algum esforço. - Foi você que nos atacou no Sete Chaves, não foi? - Perguntou o primeiro, apontando o bastão em sua direção. - Acho que a gente precisa retribuir essa gentileza com mais gentileza.

 Ao dizer isso, o golem de ronatto se colocou ao lado deles. Ela parecia aliviado pela presença dos dois, mas preferiu continuar encarando o adversário. O invasor se levantava, com dois dedos na máscara para conferir se havia algum dano no material. Um rosnado alto surgiu de uma das casas perto da sede da guilda, e Dalila voltou a disparar de encontro ao mascarado. Wieder e Koga imediatamente correram para auxiliá-la, enquanto que Dalan se reunia com Amanda.

 - Você está bem? - Perguntou ele, se ajoelhando ao lado da companheira. Ela fez uma careta de dor ao se mexer, mas rapidamente balançou a cabeça.

 - Se já estive melhor, não me lembro. - Riu ela, mantendo o sorriso para o garoto. - Estou feliz que estejam vivos.

 - É preciso só um pouco mais do que um navio sendo engolido no meio do oceano para acabar com a gente. - Disse ele, observando a luta à frente, que mais parecia uma dança. A Recon fêmea liderava os ataques e tomava toda a atenção do encapuzado, enquanto que os membros da Aurora tentavam impedir que ele a atacasse. - Escute, como foram as missões do pessoal? Verificaram todos os lugares? - Perguntou o rapaz.

 - A Torre de Marfim e a Garganta Cortada foram revistadas, e tudo que havia nos dois lugares era um membro do tal Culto Púrpura que conseguimos derrotar. - Respondeu ela. - Uma deles fez a questão de nos visitar novamente, me impedindo de ir para Wildest. Quanto à Thomas Galvan...

 - Nós chegamos a verificar. Não havia nada. - Se adiantou Dalan, ficando um pouco pensativo após aquelas declarações. - Bem, acho que vamos ter que tirar essa erva-daninha do nosso jardim antes de seguirmos adiante, não é? - Perguntou o garoto, sorridente. Amanda por sua vez apenas inclinou a cabeça para o lado, estreitando os olhos.

 - Me faz um favor? Não tente usar outra metáfora, tipo, nunca. - Pediu ela, se apoiando no ombro do rapaz para se levantar. O garoto, por sua vez, ficou com o rosto vermelho.

 - Desculpa. - Disse ele baixinho. Naquele momento Dalila foi arremessada de encontro à sede da Aurora, deixando Zaulin livre para enfrentar os outros. Ele segurou Koga pela trança e o arremessou de encontro à fonte em ruínas. Em seguida se virou para Wieder, mirando um soco em sua cabeça. O golem rapidamente voltou à forma de anão, conseguindo assim desviar do golpe. - Wieder! - Gritou Dalan, correndo em sua direção. O companheiro pareceu entender o que o outro queria, pois se transformou novamente e estendeu o braço, dando o apoio para que o garoto saltasse para atacar o mascarado.

 Zaulin viu seu adversário no ar, vindo em sua direção. Dobrou os joelhos para que elaborasse um contra-ataque, mas não percebeu a pedra que Amanda havia jogado em sua direção. O projétil acertou seu pescoço, o desestabilizando. O membro da Aurora aproveitou a chance e caiu de joelhos em cima do encapuzado, levando-o ao chão. Imediatamente pôs as mãos em seu peito, procurando usando seus poderes de gelo.

 O mascarado no entanto desferiu uma cotovelada nas costelas do rapaz, o arremessando para longe. As tiras de suas roupa estavam congeladas e quebradiças, dificultando sua respiração. Enquanto tentava se levantar Koga surgiu novamente na batalha, pulando com o bastão estendido atrás do corpo. O garoto acertou o tórax do adversário, quebrando o que encontrava pelo caminho. Um filete de sangue negro se derramou por trás da máscara enquanto que Zaulin jogava a cabeça para frente.

 - NÃO DEIXEM ELE LEVANTAR! - Gritou Amanda, sentindo um quê de empolgação crescer em seu peito. Tinham uma chance agora. O rapaz de tranças se preparava para atacar novamente o encapuzado caído, enquanto que Dalan e Wieder se aproximavam. A garota correu na direção da peleja com os punhos fechados, mirando um chute na cabeça do invasor. Só precisavam mantê-lo caído e tudo daria certo.

 - Chega. - Disse Zaulin no chão. Naquele momento o ar ao redor dele pareceu se dobrar, como se a própria realidade fosse uma folha de papel. Em seguida ela estourou, explodindo com um estouro monstruoso e deslocando tudo que estivesse ao redor com uma força terrível. Dalan e Wieder foram arremessados de encontro às casas vazias ao redor da praça, varando as paredes. Koga foi jogado ao ar, subindo vários metros antes de cair terrivelmente com o lado direito do corpo. Amanda por sua vez rolou diversos metros, parando do outro lado da praça. Sentiu uma dor aguda no cotovelo esquerdo, quase fazendo-a desmaiar. Rangeu os dentes e se apoiou com a mão direita, olhando para frente através do sangue que se derramava sobre seus olhos. As próprias paredes da sede da Aurora estavam em pedaços, e as portas duplas haviam se partido. No entanto, havia uma pessoa de pé. O mascarado parecia incólume à toda aquela destruição, parado no centro de um círculo de pedras rachadas.

 - Eu disse. - Começou ele com sua voz gutural, andando na direção da garota. Chutou um caído Koga em seu caminho, jogando-o para longe. - Eu sou uma força da natureza. Se por em meu caminho é o mesmo que desafiar a própria morte. E agora... - Disse ele, flexionando os dedos da mão. - Recolherei quatro cabeças ao invés de três.

 - Objeção. - Disse uma voz cortando a praça. Zaulin parou ao lado dos resquícios da fonte, se virando para encarar quem vinha em seu encontro. Para a surpresa de Amanda, era Dalan quem havia falado, saindo aparentemente incólume da casa abandonada. De fato, ele estava coberto de reboco e um filete de sangue descia pela sua testa, mas comparado a todo o resto, aquilo não era nada. - Ainda falta me derrubar. - Disse ele, apontando com o dedão para o próprio peito.

 - Sua sorte já foi gasta, garoto. - Disse o encapuzado, dando um passo à frente. - Não ache que os deuses irão te favorecer uma segunda vez. - O rapaz engoliu em seco, com sua bravata rapidamente escoando através dos poros. Realmente, foi uma chance em um milhão. Não conseguiria algo assim de novo. Manteve a expressão focada, mesmo com uma gota de suor descendo pela testa, e olhou para os lados em busca de qualquer coisa que pudesse o ajudar.

 Para a sua surpresa, encontrou. Uma boina e uma camisa brancas e uma calça azul, aparentemente penduradas no ar, se moviam por trás do mascarado. Perto delas, havia o bastão decorado de Koga. Dalan arregalou minimamente os olhos e continuou esquadrinhando a praça, com medo de que o adversário descobrisse a única chance que tinham naquele momento.

 - Não sei, acho que os deuses não acabaram comigo. - Disse ele com a voz esganiçada. Impressionante como sempre se metia em situações que precisava usar uma lábia que não tinha. Fez uma nota mental para evitar esse tipo de coisa no futuro, caso sobrevivesse àquele dia. O invasor continuava em sua direção, com o bastão flutuante se aproximando lentamente.

 - Sempre tive um apreço especial em matar tipos como você. - Alertou ele, com sua voz gutural chegando ao âmago de Dalan. O garoto se viu paralisado, com os pés afundados no chão. Sophie, seja o que for que você faça, seja rápida, implorou ele internamente. - Pessoas que se julgam especiais demais para morrer em batalha. Gosto de ver o brilho em seus olhos desaparecer com o desespero gravado que os acompanhará no além-vida.

 O rapaz não conseguiu responder, sentindo o coração parecer sair de seu peito. O encapuzado agitou o braço, afastando a mão do corpo. Enquanto isso, as roupas no ar se aproximavam cada vez mais. Era agora uma corrida lenta para ver quem chegaria primeiro. Dalan já não conseguia mais fazer nada, estático e prostrado. O bastão levantou um pouco mais, como se alguém o estivesse preparando. Zaulin ficou frente a frente com o membro da Aurora, flexionando os dedos. De repente ele avançou, e o bastão girou.

 O golpe que chegou primeiro foi o que acertou a máscara de Zaulin, tão forte que arrebentou o material e fez com que ele tropeçasse para o lado, segurando o rosto. Naquele momento Sophie se materializou, largando o bastão com nervosismo. Ela estava suada e trêmula, observando o adversário rugir enquanto que os pedaços do artefato caíam por entre seus dedos.

 - Não... não... - Começou ele, um pouco agachado. Parecia que metade de sua máscara havia se esfarelado, revelando seu rosto em um ângulo que apenas Dalan conseguia enxergar. Se a voz do invasor já tinha um efeito sobrenatural, não era nada comparada ao que o garoto enxergava. Havia uma pele vermelha e ressecada, sem nenhum pelo à vista, mas o que chamava a atenção era o olho. Uma órbita amarela e arregalada, com uma pupila negra e vertical, tal qual um felino. O rapaz não conseguiu nem mesmo engolir em seco, paralisado de uma maneira que se assemelhava à morte. Zaulin olhou para os céus, como se esperasse que as nuvens caíssem em cima dele. - Preciso... sair daqui...

 Do outro lado da praça, Amanda conseguiu ver o que estava a caminho, graças ao seu embate com Alana alguns dias atrás. - ALGUÉM O IMPEÇA! AGORA! - Gritou ela desesperada.

 - Aoena Ortaris. - Com essa frase, a capa que cobria o mascarado começou a se agitar e expandir, formando um redemoinho roxo e prata.

  - SOPHIE! DALAN! ELE VAI FUGIR! - Gritou Amanda para os companheiros. Sophie por sua vez ficou alguns milésimos de segundos parada, com o medo tomando conta de suas ações. No entanto, seus companheiros contavam com ela para não deixá-lo escapar. A garota se viu impelida por uma desconhecida força interior a segurar a capa esvoaçante, tentando puxá-la para trás.

 A visão daquilo fez com que Dalan saísse de seu estupor. Sophie estava sendo arrastada para a tempestade de linho que cobria o corpo de Zaulin, incapaz de se segurar. O rapaz também agiu sem pensar, pulando na direção da outra para a afastar do caos iminente.

 No mesmo instante em que os dois se tocaram, contudo, o tecido foi engolido por si mesmo, sendo sugado em um buraco no ar, no mesmo lugar em que o mascarado havia estado antes. Ele se sacudiu com força, mas a membra da Aurora não soltou. Apertava com tanta força que acabou sendo puxada pelo linho, junto com o companheiro que a agarrava pela cintura. Os dois foram aspirados pelo vazio, desaparecendo na frente dos membros remanescentes da guilda.

 Para onde foram, nenhum deles sabia.