quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

RN Nuzlocke Y - Capítulo 5: A primeira queda

RECINTO NERD NUZLOCKE - Y - 
CAPÍTULO 5: A PRIMEIRA QUEDA

 - Eu disse que deveríamos ter saído mais rápido da rota 2. - Disse Frog, segurando um pedaço de pão na pata. - Aprendeu agora?

 - Frog, se você falar mais uma palavra, quem vai pro fogo é você. - Reclamou Kari, carrancuda. Era noite, e o grupo estava reunido ao redor de uma fogueira, jantando as sobras do que havia na mochila da treinadora. Kari, Frog e Paola estavam acompanhados por Peter, o Pansage que haviam capturado na floresta, e Bob, um Burmy que havia se juntado à equipe naquele mesmo dia.

 - Nós podíamos ficar uma refeição sem brigar? - Perguntou Paola, mordiscando o pão, irritada. - Só uma vez?

 - Isso mesmo, gente. Um pouco de paz, por favor. - Disse Peter, bocejando. Ele reclinou na tora de madeira onde estava sentado enquanto Kari e Frog trocavam olhares ameaçadores. - Ei, novato! Você não vai comer não? - Ele se dirigia à Bob, que estava um pouco mais afastado, e sua comida, intocada.

 Como se tivesse acabado de sair de um transe, o Burmy se assustou, olhando ao redor. Quando viu o resto da equipe o encarando, ele começou a comer, embora se mantivesse afastado.

 - E então? O que faremos amanhã? - Perguntou Frog, terminando seu prato. - Não temos o suficiente para comer por nem mais um dia. Não pra todo mundo.

 - Teremos que nos adiantar. - Respondeu Kari, limpando a boca com as costas da mão. - Se tivermos sorte, poderemos recolher algumas frutas à beira da estrada.

 - É isso? - Estranhou o Froakie, franzindo a testa. - Em que época do ano você acha que estamos? Acabamos de sair do inverno.

 - Não vejo você dando uma sugestão. Que tal começar a fazer isso, ao invés de reclamar o tempo todo? - Disse a treinadora, ríspida. Paola e Peter se entreolharam, tensos.

 - Q-que tal um p-pequeno jogo? - Disse o Pansage, nervoso, tentando melhorar o clima. - Ou uma conversa saudável? Ou adivinhas? Caramba, adivinhas são... - Naquele momento o pequeno estômago do Pokémon roncou audivelmente, e ele se calou. - Oh, que coisa...

 Naquele momento, Kari ficou sombria. Ela levou o prato para mais perto da fogueira, se levantando em seguida. - Comam a minha parte. Perdi a fome. - Mesmo com os protestos de Paola, ela começou a se afastar para o norte, caminhando com passos firmes. Não parou até chegar a um barranco, de onde fitou o caminho que os aguardava. O céu imensamente estrelado cobria a estrada serpenteante, e um pequeno conjunto de luzes ao longe marcava o destino deles. Santalune.

 Kari se sentou, deixando as pernas ficarem soltas no desfiladeiro. As coisas definitivamente não pareciam promissoras. Mal tinham comida para passar a noite, que dirá o resto da estrada, pensou. Seu estômago vazio se retorceu, embora o motivo fosse muito diferente da fome. A quem queria enganar, se perguntou a garota. Tentou se forçar em uma aventura com um objetivo bastante tênue, e agora três vidas estavam dependendo dela, e a cada segundo os colocava mais em perigo. Burra, burra, burra.

 Envolta em seus próprios pensamentos, não percebeu a chegada de Paola ao seu lado.

 - Kari... você está bem? - Perguntou a Pokémon. A treinadora demorou para responder, com os olhos fixos no horizonte.

 - Eu juro que vamos chegar na cidade sãos e salvos. - Disse ela, sem saber para quem.

 - Nós sabemos. - Kari se virou para a Pidgey. - Ninguém ali duvida de você. Nem mesmo Frog. Digo, ele tem algumas... desavenças em relação ao jeito de liderar, mas se ele ainda não desistiu, é porque realmente te respeita.

 Kari soltou uma risada pelo nariz. - Acho que Frog não desistiu porque ele teria que me matar para conseguir fazer o que quer. E por enquanto isso daria um belo trabalho.

 - Bem, então de qualquer jeito todos estamos presos com você, não? - Riu Paola. - Vamos lá, Kari. A jornada acabou de começar, não adianta ficar depressiva com todos os pequenos obstáculos que encontrarmos. Afinal, temos motivos para sermos Campeões, não é?

 Mesmo com suas ressalvas, Kari se viu obrigada a levantar. Paola tinha razão, se fosse ficar lamentando por cada erro que cometer, nunca chegaria ao final. - E qual é o seu motivo para seguir em frente, Paola? Digo, pra que ser Campeã?

 A Pidgey sorriu, voando até o ombro da treinadora. - É engraçado, mas um pouco vergonhoso. Talvez um dia eu te conte. - A garota seguiu pressionando enquanto andava de volta à fogueira, mas não obteve sucesso. De qualquer forma, o princípio de depressão havia sumido. Por ora.

 No dia seguinte, a equipe começou a descer a rota em direção à cidade de Santalune, ao norte. A estrada possuía diversas curvas e descidas íngremes, portanto Kari não esperava chegar ao seu destino ainda naquele dia. No entanto, suas reservas de comida estavam assustadoramente críticas, e a pressa era fundamental. Assim, eles seguiram com passo apertado, movidos pelo desejo de comida de verdade.

 O sol já estava se pondo no oeste, e o cansaço era plenamente visível neles. Kari tentava liderá-los, mas as pernas já não conseguiam caminhar sem ameaçar desabar.  Estava vestindo uma das duas únicas roupas que Shauna havia lhe dado, uma camisa preta e sem mangas, que se colava em seu corpo magro, e uma saia vermelha, presa perto do umbigo e que descia até um palmo acima dos joelhos. Não era exatamente uma vestimenta que agradasse à garota, mas não havia muita escolha. As outras roupas haviam se rasgado na floresta.

 Estava tão cansada que nem viu a patinadora chegar.

 - Cuidado! - Gritou Paola, mas já era tarde. Uma outra garota veio descendo pelo declive acima, e estava rápida o suficiente para evitar o choque. A Pidgey se jogou para proteger a treinadora, empurrando-a para o lado e a desequilibrando. Kari, exausta, acabou caindo no mato ao lado da encosta, se embrenhando no mato alto. Ela bateu a cabeça com força em uma pedra, e antes de desfalecer sentiu o sangue escorrer pelo ferimento enquanto o corpo rolava. Sem forças, não conseguiu exclamar um som.

 Acabou acordando poucos minutos depois, envolta de grama rasgada e terra revolvida. Se apoiou no cotovelo direito, colocando a mão na cabeça com cuidado, sentindo o sangue ainda úmido na testa. Suas pernas e braços doíam, e o vestido havia rasgado na coxa direita. Mesmo assim a adrenalina a fez levantar, olhando ao redor em busca de sua equipe.

 - Frog? - Gritou, alheia à dor. - Paola? Peter? - Ela girou em torno de si, aguardando uma resposta. O mato era quase de seu tamanho, e a única direção que tinha era o caminho que pelo qual havia caído,

 - Kari? - A voz de Peter conseguiu ser ouvida baixinha, quase que imperceptível. A garota se virou para os lados, tentando identificar de onde vinha. - Kari? - Esquerda. Com certeza. Ela correu, afastando as plantas que teimavam em impedir seu progresso. Conseguiu ver o familiar tom azul de Frog ao longe, e começou a correr mais rápido.

 Quando chegou à clareira, não percebeu que havia parado, nem que havia caído de joelhos. Pois à sua frente, envolta por um círculo composto do resto da equipe, havia o corpo de Paola. A Pidgey estava ligeiramente queimada, mas seus olhos estavam abertos, fitando o vazio.

 - O... o... - Kari não conseguiu completar a frase. Naquele momento uma outra cena brotou em sua mente, onde um Bellsprout jazia morto no chão. Ela levou as mãos à cabeça, e a cena mudou, indo para uma fuga corrida de uma caverna, e ela estava gritando. Gritou também no mundo real, e novamente a cena se alterou, e estava segurando uma Jolteon falecida em seus braços.

 De repente não havia mais nada em sua cabeça, mas ela não se levantou. Agarrou com força a grama, arrancando-a com truculência. Pois, mesmo prometendo que levaria todos de forma sã e salva até Santalune, ela havia mentido. Mesmo sabendo que Paola tinha um motivo para seguir em frente, nunca saberia. Mesmo com todos aparentemente confiando nela, havia cometido um erro.

 E seu erro havia custado uma vida.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Aurora: Capítulo 4 - Quatro Luas

AURORA
CAPÍTULO 4: QUATRO LUAS

 O beco era um lugar sujo e apertado. Paredes de tijolos negros se encontravam inconfortavelmente próximas uma da outra, presas a um chão ladrilhado e levemente irregular. Os prédios altos em volta impediam que a luz do sol chegasse com toda sua força, tornando a água fétida no piso terrivelmente gelada. Um pé pisou com força na poça, respingando as gotas fedidas por todas as direções. Dalan sequer se importou, correndo para não perder seu alvo de vista. Dobrou a esquina, apressado, mas acabou por perder o rastro do animal que perseguia. 

 Ofegante, ele se sentou na calçada para recuperar o fôlego, soltando os braços por cima dos joelhos. O centro da cidade de Helleon possuía os mesmos prédios altos altos da vizinhança onde ficava a sede da Aurora, mas esses eram pelo menos cheios de vida. Vida em sua maioria pobre e em grande quantidade. Todas as construções por perto eram feitas de tijolos, e as ruas eram ladrilhadas com pedras negras, constantemente pisoteadas por animais de carga e comerciantes barulhentos. Mesmo assim, a zona central de Helleon era onde a cidade pulsava, muito diferente do sudoeste, a área abandonada onde ficava a Aurora, e do norte, onde os poucos ricos e membros do governo moravam. O mar banhava aquela parte com grande força, e o comércio portuário mantinha a cidade em pé.

 Toda essa agitação acabava por atrapalhar a missão de Dalan. Havia aceitado a tarefa sob o pretexto de que iria procurar algo muito importante que uma mulher, chamada apenas de Senhora Cattuveis, havia perdido. Quando chegou em sua casa, ela revelou o que era: um gato malhado. Dalan havia gastado metade do dia procurando o felino, e finalmente o achou alguns minutos antes. Agora, no entanto, o havia perdido de vista. E o sol começava a se pôr no oeste.

 Deveria ter descansado, censurou o garoto a si mesmo. Havia passado dias na estrada antes de chegar em Helleon, e ainda lutara com Sasha de manhã. Parecia que esses acontecimentos estavam semanas longe um do outro, mas seu corpo sabia a verdade. Suas pernas estavam doloridas e o estômago ainda doía dos golpes da garota, principalmente depois de correr. Talvez seja melhor descansar antes de continuar, concluiu ele.

 Antes mesmo de fazer menção de se levantar, Dalan sentiu um corpo peludo e quente em sua bochecha direita. Se virou apressado e viu o gato malhado o encarando de forma mau-humorada, agarrado pela pele atrás do pescoço. Ele levantou a cabeça e percebeu que havia uma garota atrás dele. Reconheceu-a pela boina que usava como uma dos membros da Aurora.

 - Oh. - Disse ela, recuando um pouco pelo contato visual. Dalan se apoiou no joelho esquerdo e se levantou, tendo a oportunidade de analisar a pessoa agora à sua frente. A garota era baixa, com um metro e sessenta e poucos, uma cabeça de altura a menos do que Dalan. Era magra e bastante pálida, e aparentava possuir dezoito anos. Estava calçando uma bota de cor rubra e vestia uma calça negra e colada por baixo de uma saia vermelha presa por um cinto escuro. Também usava uma camisa branca e uma jaqueta vermelha, aberta no meio. Suas roupas pareciam torná-la menor do que realmente era. No entanto, o que mais chamava atenção era seu rosto. Tinha olhos grandes e verdes, juntos com um nariz pequeno e arrebitado. Seus lábios eram finos e com uma bela cor rosa natural. Seu cabelo era liso e loiro-sujo, assim como as sobrancelhas caprichadas, e desciam próximos do rosto até chegar ao queixo. Sua boina completava a visão, vermelha como a camisa. A garota pareceu assustada, desviando os olhos para o lado enquanto ajeitava uma mecha do cabelo para trás da orelha com a mão livre. - E-eu... você é o garoto novo, não é? - Perguntou ela com a voz suave.

 - Eu... sou! - Disse Dalan, recobrando a consciência, perdida com o rosto angelical da pessoa à sua frente. Ele pensou um pouco e estendeu a mão. - Meu nome é Dalan. Dalan Glacius.

 - Ah... Sophie Helder. - Ela segurou brevemente a mão do garoto e agarrou o gato com as duas mãos, segurando-o à frente de seu peito. - Você pegou a missão da senhora Cattuveis, não foi? - Ela levantou minimamente o gato até a altura do rosto, e apenas seus olhos eram visíveis através do felino.

 - Foi... era para pegar esse bichano. - Respondeu ele, apontando para o bicho. Quem diz "bichano" hoje em dia, se censurou Dalan imediatamente, franzindo levemente o rosto. Sophie esticou o animal até ele, que tentou segurá-lo. O gato se agitou e quase se soltou, mas o garoto o agarrou com os braços para impedir sua fuga. Sophie também agiu por reflexo, e acabou segurando o braço do rapaz. Ela rapidamente recolheu as mãos, ficando vermelha.

 - Eu... eu vi ele correndo pela rua, e imaginei que alguém da guilda estava procurando por ele. - Começou Sophie, desviando o olhar e ajeitando o cabelo. - Não é a primeira vez que a senhora Cattuveis pede por uma missão assim. Imaginei que... imaginei que você fosse precisar de ajuda... digo, não que eu não achasse que você precisar! - Acrescentou ela rapidamente, agitando as palmas para Dalan enquanto arregalava os olhos e ficava ainda mais vermelha. - É só que eu sou... sou boa com animais!

 - Na verdade eu provavelmente não conseguiria. - Admitiu o rapaz, cansado. - Tive uma semana longa, e esse gato corre muito rápido. - Ele inclinou minimamente a cabeça, franzindo o lado direito do rosto. Em suas mãos, o gato tentou uma nova fuga.

 - Ah. - A garota o encarou com seus grandes olhos. - Nós... nós estávamos indo jantar no bar Quatro Luas. Tivemos um dia difícil... - Ela voltou a encarar o chão, e Dalan se lembrou do homem que havia saído da guilda mais cedo. - .. mas... se quiser vir com a gente... - A voz de Sophie se tornou mais aguda conforme o fim da frase ia chegando, e o garoto notou que ela fez um meio círculo com a perna direita por trás da esquerda, apoiando-a com a ponta do pé.

 - Eu... eu posso. - Disse o rapaz, surpreso pelo convite. - Acho que eu vi esse bar quando passei pelo cais. É um pé-sujo no litoral, não é? - Parte dele esperou estar errado, considerando o estado deplorável do estabelecimento, mas Sophie concordou com a cabeça.

 - Então... estou indo para lá, tudo bem? - Ela girou o corpo, fazendo menção de ir. - Eu... digo, a gente vai estar te esperando lá. - Com isso ela saiu, andando apressadamente pela rua. Dalan esperou um pouco para ver se ela se virava, mas isso não aconteceu. Suspirou pesadamente e foi para o outro lado, em direção da casa de Cattuveis.

 - Não iria conseguir pegar o gato, não é? - Disse ele para si mesmo com a voz forçadamente aguda. - Que tal da próxima vez falar que não consegue dormir sem uma luz acesa? Isso iria impressionar as pessoas tão bem quanto. - Impediu o gato de fugir novamente e continuou seu caminho.

 Acabou chegando no bar meia-hora depois, com a comprovação de conclusão da missão no bolso e uma série de arranhões fundos nos braços. Era realmente um estabelecimento sujo e apertado, com diversas garrafas vazias decorando as paredes. Todos os móveis eram de madeira, e havia um odor impregnado de peixe e álcool em cada um deles. O bar estava razoavelmente cheio, e Dalan ficou procurando os membros da guilda. Eis que uma mão se levantou no meio das pessoas.

 - Aqui! - A voz não era conhecida, mas o rosto sim. Era uma das pessoas no saguão da Aurora, o rapaz com trança longa e comprida que descia por detrás de sua cabeça. Ele estava acompanhado em uma mesa redonda por Sophie e sua irmã gêmea, e as duas encaravam Dalan com sorrisos. Satisfeito, embora um pouco nervoso, o garoto desviou de pessoas e objetos para sentar na mesa. - Finalmente uma desculpa para sairmos desse assunto mórbido. - Completou o rapaz das tranças quando o outro se sentou. Ele estava vestindo uma simples camisa preta, que marcava seu corpo forte, porém magro. Seu rosto possuía um nariz um tanto quanto adunco, porém reto. Sua boca era grande e a pele era bronzeada, e para completar seus olhos eram grandes e negros. O cabelo, também da cor do ébano, era penteado para trás e enrolado para formar a já descrita trança, que descia longa por suas costas. Ele encarou Dalan com um sorriso alegre do outro lado da mesa.

 - Você acha tão fácil simplesmente ignorar o que aconteceu? - Perguntou a gêmea de Sophie, à sua esquerda na mesa. Ela não vestia boina, e usava uma camisa grossa da cor amarela, completa com pequenos botões brancos. De longe, parecia que a vestimenta era a única coisa que a diferenciava da irmã, mas um olhar mais atento revelasse a maior diferença entre as duas, a expressão. Enquanto Sophie tinha um olhar tímido e contido, sua gêmea mantinha uma expressão aberta, com um toque de severidade embora não fosse necessariamente ameaçadora.

 - Koga Sabin, ao seu dispor! - Disse o garoto das tranças, ignorando a outra garota. Ele se esticou por cima da mesa e estendeu a mão para Dalan, esticando as sobrancelhas enquanto aguardava com um sorriso.

 - Ah... - Se surpreendeu Dalan, olhando momentaneamente para a irmã de Sophie, que agora fuzilava Koga com os olhos enquanto ficava vermelha. O garoto notou um pouco de maquiagem borrada ao redor de seus olhos. - Dalan Glacius.

 - Dalan tem um ar... anão. - Disse Koga, virando o lado direito do rosto para o outro garoto com um sorriso e um franzir da sobrancelha. - E eu tenho certeza de que Glacius é élfico. De onde você veio, Dalan?

 - Você é impressionante. - Censurou a outra garota com um sussurro audível enquanto balançava minimamente a cabeça. - Qual é a sua incapacidade de demonstrar alguma emoção pela saída de Samuel? - Perguntou com um tom um pouco mais alto do que antes.

 - Estou tentando dar as boas-vindas ao novato, Julie. - Disparou Koga, e sua voz sibilou enquanto ele encarava de forma séria a garota, mesmo com as sobrancelhas esticadas. - Que tal nós simplesmente deixarmos isso de um lado, apenas por alguns instantes, só para oferecer um pouco do velho acolhimento da Aurora? - Não houve resposta, apenas um olhar gélido e demorado por parte de uma cada vez mais vermelha Julie, mas o garoto não esperou resposta. Se virou para Dalan, voltando a mostrar uma expressão alegre. - Então, Dalan. De onde você veio?

 - Ah... - Dessa vez ele olhou de relance para Sophie, como se esperasse uma confirmação dela. A garota estava com o rosto virado para ele, mas os olhos pousados em sua irmã. De uma forma ou de outra o silêncio já parecia atingir níveis muito longos. - Sou de Gamora, uma ilha no mar de Cellintrum. Não sei a ascendência exata do meu nome, mas...

 - Gamora? - Disse Koga, se inclinando para trás até apoiar as costas na cadeira, cruzando os braços por detrás da cabeça. - Já ouvi falar, mas nunca cheguei nem perto. É verdade que é um recanto de bestas?

 - Um pouco. - Admitiu Dalan. - Elas normalmente ficam mais pro interior da ilha. Como eu morava no litoral, não cheguei a encontrar muitos deles. - Novamente, a lembrança de sua casa o fez ficar quieto, e Julie pareceu ter notado.

 - Eu... soube o que aconteceu. - Ela o encarou, e estava claro que estavam pensando no mesmo assunto. - Sinto muito. - Disse, esticando a mão para segurar a dele. Dalan sorriu constrangido, tentando parecer melhor do que se sentia.

 - Tudo bem. - Ele pensou em retirar a mão, mas o toque era extremamente agradável. - Foi por isso que entrei na guilda. Preciso saber o que aconteceu com minha casa.

 - Temos um problema mais ou menos parecido. - Disse a garota, recolhendo sua mão até o queixo, passando a encarar a irmã. - Queremos saber o que aconteceu com nosso pai. Ele desapareceu quando tínhamos sete anos, e desde então... - Ela ficou quieta por alguns segundos, encarando a mesa como se as respostas da vida estivessem talhadas na madeira. - ... desde então nós o procuramos.

 - Ah. - Disse Dalan. A atmosfera da mesa rapidamente esfriou, com as gêmeas parecendo melancólicas e Koga, incomodado. Parabéns, disse o garoto sarcasticamente a si mesmo. - Sinto muito.

- Não precisa se preocupar. - Respondeu Julie, tentando trazer a animação de volta à sua fisionomia. - Todos na guilda estão lá por algum motivo, não? É só seguir em frente então. - Koga se movimentou, e quando Dalan o encarou novamente ele já estava com um sorriso no rosto.

 - Cacete, gente. Qual a dificuldade de manter a depressão para longe hoje, hein? - Ele se reclinou na cadeira, virando o rosto para o bar. - Ei, Harold! Vê pra gente uns quatro Lunares Extravagantes, por favor! Caprichados!

 - Dois, Harold! - Gritou Julie, sorrindo com para Koga. - Você sabe muito bem que eu e Sophie não bebemos essa droga, seu animal.

 - O.K, mas o novato bebe, não é? - Ele se virou para Dalan, levantando uma sobrancelha enquanto soltava um sorriso provocativo. - Quer dizer, se quiser seguir o exemplo das garotas, sinta-se à vontade.

 - Tudo bem. - Disse Dalan, olhando de relance para Sophie. - Não pode ser mais forte do que as misturebas que fazem nos portos ao norte de Cellintrum.

 - Na verdade são. - Disse Sophie, sorrindo timidamente enquanto falava baixinho. - O Dom, lá da guilda, já rodou por todo o mar e disse que o Lunar Extravagante é a coisa mais forte que ele já bebeu.

 - Lembrando que Dom é um beberrão e que o bar é cheio justamente por causa dessa bebida em particular. - Acrescentou Julie, cruzando os braços enquanto sorria. - Não são sinais animadores, Dalan.

 - Tudo bem, não há problema. - Agora não havia como voltar. - Além do mais, eu sou forte com a bebida. - Mentira.

 - Então não tem o que temer. - Disse Koga. - Só vou avisando: não venha me processar depois. Está avisado de que essa bebida é bem pesada. - Ele colocou as palmas na frente do peito, como se estivesse se protegendo.

 - Agora é você que parece querer desistir. - Zombou Dalan, se inclinando na mesa. - Sophie e Julie olharam para os rapazes com sorrisos no canto das bocas.

 - Novato, considere isso seu trote. - Um homem barbudo chegou na mesa, depositando dois copos na madeira. Dentro deles havia uma substância azul com brilhos brancos, densa o suficiente para não ser transparente. - Só estou com medo de você não achar o caminho de casa pra Aurora.

 - Veremos. - Dalan pegou o copo e brindou com Koga, bebendo-o em seguida.

 Na cena seguinte, ele se viu em cima de uma substância irregular, cheia de pequenas pedrinhas que pinicavam seu corpo. Havia uma dor de cabeça que parecia furar seu crânio, e qualquer movimento parecia amplificá-la. Dalan levou a mão aos olhos, pressionando-os fracamente com os dedos.

 - Você acordou! - Disse uma voz baixa, e ele abriu os olhos com dificuldades. Demorou um pouco para focalizar o céu estrelado acima de si, e muito mais para notar o rosto sorridente de Sophie contra às luzes.

 - O... o que houve? - Perguntou ele com a voz grogue, tentando se levantar de forma lenta. A garota o ajudou a se sentar, e Dalan notou que estava em cima de areia. Uma olhada ao redor o fez perceber que estava em uma praia, e havia um baú ao seu lado.

 - Bem, você bebeu. - Disse Sophie, sorrindo com a cabeça inclinada. - Depois do primeiro copo veio o outro, e no quarto Koga e você decidiram caçar tesouros. Acho que tinha alguma coisa a ver com piratas. Cada um foi correndo pra fora do bar, e eu te encontrei aqui depois de algumas horas.

 - De onde veio o baú? - Perguntou ele, mas Sophie apenas deu de ombros. Ela continuava a sorrir abobalhada. - O que é tão engraçado?

 - Ah, nada! - Ela começou a corar, desviando o olhar. O sorriso, no entanto, se mantinha em pé. - Só que... bem, foi bastante engraçado. Geralmente Koga fica bêbado sozinho, e isso geralmente termina com ele chapado na mesa. Acho que uma pessoa a mais torna tudo mais divertido.

 - Imagino. - A dor de cabeça já começava a diminuir, mas Dalan continuava se sentindo fraco. - Onde ele está?

 - Não sei. Julie foi atrás dele, e eu fui te procurar. - Ela esticou a mão, ajudando-o a se levantar. Logo depois Sophie ficou vermelha, falando rapidamente. - Quero dizer, normalmente é Julie quem sabe por onde Koga se esconde, e achamos melhor garantir que você voltasse pra guilda, e...

 - Tudo bem. - Tranquilizou Dalan, cansado. - Foi a melhor coisa a se fazer. Agora, se não se importa, vamos pra guilda. - Eles começaram a andar pela areia, indo em direção à cidade. Quando voltaram a pisar nas pedras negras, Sophie parou, quebrando o silêncio.

 - Dalan, é verdade que você já foi um pirata? - Perguntou ela. Dalan se virou, percebendo o olhar de admiração dela, com as pálpebras esticadas. Por um momento o garoto pensou em conservar a mentira, mas a voz da consciência o fez repensar a ação.

 - Sophie, uma dica para o futuro: - Ele mostrou o indicador, como se a ação validasse suas palavras. - Nunca acredite em nada do que eu digo bêbado.

 - Ah. - Os dois recomeçaram a andar, duas figuras solitárias na rua vazia. O sol começava a subir, iluminando o caminho. Dalan quase tropeçou, sendo salvo pelo braço de Sophie, que o agarrou pelo pescoço.

 - Obri... - Ele a encarou, e percebeu seu rosto incrivelmente vermelho. No momento seguinte ela acabou o soltando, e o garoto caiu com a cara nas pedras.

 - Me desculpa, me desculpa, me desculpa! -  Repetiu Sophie, mas a consciência de Dalan voltou a se esvair. Não esperava que seu primeiro dia na Aurora fosse acabar assim, caído na sarjeta da cidade. Seu orgulho tentou buscar forças do além, bombeando energia para o corpo. No entanto, o cansaço finalmente o tomou, e ele desmaiou. Sophie, ao seu lado, continuava disparando desculpas. 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

RN Nuzlocke Y - Capítulo 4: A Floresta de Santalune

RECINTO NERD NUZLOCKE - Y -
CAPÍTULO 4: A FLORESTA DE SANTALUNE

 A vegetação, de um verde vivo, crescia quase que selvagem, pressionando a estrada de terra de forma violenta, chegando até mesmo a invadi-la em determinados pontos. Um córrego corria à esquerda, separado por alguns metros de despenhadeiro da estrada. A região era normalmente tranquila, mas aquele não era um dia normal.

 - ESTOU DIZENDO QUE É PARA TREINARMOS AQUI ANTES DE AVANÇAR PARA A FLORESTA! - Gritou Kari, vermelha. A discussão já se prolongava por longos minutos, mas nem ela nem Frog pareciam estar cientes do tempo.

 - VOCÊ QUER FICAR AQUI PARA SEMPRE? ESTOU DIZENDO, JÁ DEVERÍAMOS TER SEGUIDO ONTEM! - Gritou de volta o Froakie.

 - Eeergh... - Começou Paola, a Pidgey. Ela havia sido capturada no dia anterior, e toda aquela explosão dos outros dois a deixava desconcertada. - Eu acho que -- Naquele momento, Frog e Kari a encararam com um olhar fulminante, e a pequena Pidgey se calou.

 -  Escute. - Começou Kari, tentando se acalmar. - Uma jornada dessas não é um simples passeio no parque. Precisamos nos preparar de forma adequada antes de arriscarmos nossas vidas.

 - E eu estou dizendo que há um limite para isso. - Respondeu Frog com a voz incisiva. - De quê adianta ficar treinando com peixes pequenos por tanto tempo? Nossos adversários precisam ser melhores para que possamos ser mais fortes ainda.

 - Gente... - Recomeçou Paola.

 - O QUE É? - Perguntaram Kari e o Froakie ao mesmo tempo, se virando para a Pidgey. Paola sustentou a encarada, mesmo engolindo em seco, e apontou a asa para trás deles.

 Os dois se viraram, bem a tempo de ver Calem e Shauna se aproximarem, conversando entre si. Shauna segurava uma Pokébola com as duas mãos, e parecia bastante feliz com o objeto. Kari imediatamente se arrumou, alisando com as mãos as roupas amarrotadas pelos dias na floresta. Percebeu que havia um pequeno galho em seus cabelos, e o arrancou com tanta violência que sentiu alguns fios indo junto.

 - Oh, vocês por aqui. - Disse Calem depois que levantou a cabeça. - Qual é a chance disso acontecer nessa estrada tão grande?

 - Kari! - Exclamou Shauna, se agitando. - Olha para isso, eu capturei um Pokémon! - Ela lançou a Pokébola ao chão, revelando um Skitty. - Ele deve ter se perdido, porque o hábitat dele é a Rota 4. Acho que foi meu dia de sorte! - Calem encarou Kari, e encolheu os ombros com suavidade.

  - Puxa! - Conseguiu dizer Kari, forçando um sorriso. A questão era que Skittys eram extremamente fracos, assim como sua evolução, Delcatty. Mesmo assim, Shauna parecia bastante satisfeita com sua captura. - Que bom, Shauna!

 A outra garota sorriu, mas parou ao ver Paola ao lado de Kari, adotando em vez disso uma expressão exasperada. - Você também conseguiu um, Kari?

 - É... - Na mente da treinadora, capturar Pokémon era um ato tão natural quanto respirar, mesmo com a amnésia bloqueando a origem do ensinamento. Era como se estivesse impregnado em seu ser. Shauna parecia não ter isso, ou era facilmente impressionável. Kari concluiu que era um pouco dos dois. - Fiquei acampando na Rota por algum tempo. Capturei-a ontem.

 - Uau... - A admiração dela já começava a assustar Kari, assim como Paola, que foi para trás da perna da treinadora. Frog ficou apenas a encarando com uma expressão séria no rosto.

 - Que tal entrarmos na floresta de Santalune? - Disse Calem, se colocando entre as duas. - Já estamos meio atrasados. Acho que Trevor e Tierno já estão muito na nossa frente.

 - O.K. - Concordou Kari, ao ponto que Frog a olhou exasperação.

 - Você só pode estar de saca -- Kari nesse momento lhe ofereceu um discreto chute, e começou a andar pela rota com os outros, enquanto as árvores ao redor ficavam mais densas. Paola voou para seu ombro, enquanto o Froakie os seguia mais atrás, resmungando.

 - Eu... vou tentar me esforçar. - Disse Paola no ouvido da treinadora. - Sei que você... adiou essa passagem porque eu não estava pronta.

 - Não precisa se preocupar com isso. - Disse Kari, girando a cabeça. - Realmente queria deixar vocês dois mais fortes antes de seguirmos... mas ficaremos muito para trás. Frog está certo.

 - Eu ouvi isso mesmo? - Gritou o Froakie atrás deles. A treinadora fechou os olhos e suspirou, tentando acertar um coice no Pokémon, sem sucesso.

 - Então, qual era o motivo de vocês terem demorado? - Perguntou ela para Calem e Shauna, se aproximando um pouco mais dos dois.

 - Acredite se quiser, mas alguém se perdeu em Aquacorde. - Disse Calem, sorrindo. - Procurei por essa pessoa por dois dias até achá-la choramingando perto da fonte.

 - Ei, não foi engraçado! - Reclamou Shauna enquanto o garoto mantinha o sorriso. - Eu só fui pra Aquacorde duas vezes. Como esperava que eu achasse o caminho certo?

 - Shauna, a cidade tem uma praça e duas ruas. Não é exatamente necessário um diploma em geografia para se localizar. - A garota amarrou a cara, e Kari soltou um sorriso também. Andaram até uma clareira, onde alguns Pokémon selvagens se encontravam. Um pássaro vermelho voou bem perto da cabeça deles, e se embrenhou na floresta.

 - Aquilo era um... - Começou Shauna, mas Calem a interrompeu.

 - Um Fletchling! Esperem aqui enquanto o capturo! - Ele saiu correndo, retirando a Pokébola do cinto. Kari olhou para o lado, e reparou que havia um pequeno Pansage a encarando.

 - Falando em capturas... - Ela lançou Paola para atacar. A Pidgey voou, e se chocou contra o adversário. Ele caiu, mas Paola conseguiu manter o vôo, subindo enquanto Kari lançava a Pokébola. Três segundos depois, havia um novo membro em seu time. Ela guardou a Pokébola, sorridente, e quando se virou encontrou Shauna boquiaberta.

 - U-uau... isso foi... tão rápido. - A admiração fez Kari corar, e ela desviou o olhar.

 - Ah... talvez. Um pouco. Foi fácil. - Ela acariciou a própria nuca, sem jeito. Shauna engoliu em seco, ainda mantendo a expressão de assombro.

 - Kari, você... você é incrível! Consegue ser mais incrível do que Calem, e ele era o melhor treinador de Vaniville! - Ela se aproximou, e Kari deu um passo hesitante para trás. - Caraca, eu mal te conheço, mas... eu acho que você conseguiria fazer qualquer coisa! De verdade!

 Isso estava definitivamente passando dos limites que consigo aceitar, pensou a treinadora, corando fortemente. Felizmente Calem saiu da floresta um pouco depois, rompendo o silêncio enquanto ajeitava o casaco cheio de gravetos.

 - Senhoritas, desconfio que tenho um novo Pokémon para batalhar. - Ele levantou a cabeça, e encontrou Shauna ainda encarando Kari. - O que aconteceu?

 - Nada, nada! - Respondeu a garota, se afastando e dando um último olhar de admiração a Kari. - Acho que você tem uma verdadeira adversária, Calem!

 - O que você quer dizer com isso? - Pela primeira vez desde que o conheceu, Kari viu desconcertamento na expressão de Calem. Naquele momento, no entanto, um som veio de mais à frente, revelando Trevor e Tierno.

 - Eeeei! Olha quem encontramos aqui! - Gritou Tierno. Shauna correu para eles, e Calem deu uma longa olhada para Kari, que encolheu. Os outros dois garotos novamente quebraram a tensão, se aproximando do restante do grupo.

 - Quais eram as probabilidades? - Perguntou Trevor, sorrindo. Calem desfez sua expressão e adotou um sorriso tranquilo, passando a conversar com o garoto ruivo. No entanto, de tempos em tempos desferia um olhar atento a Kari, como se a garota fosse fazer algo diferente. Desconcertada, ela se pôs a conversar distraidamente com Tierno, embora ainda encarasse o outro garoto. O que era aquilo, perguntou a si mesma. Era como se outra pessoa estivesse na pele de Calem, pensou.

 Ainda absorta em seus pensamentos, ela notou vagamente que Shauna estava os apressando, apontando para o restante da floresta. Se puseram a andar, e Calem parou de prestar atenção em Kari, o que não foi um ato recíproco. Desde que havia saído do Caminho de Vaniville, era a primeira vez que a treinadora havia encontrado tamanha hostilidade em um olhar, e sobretudo de quem menos esperava.

 Ajeitou a bolsa no ombro, quase derrubando Paola de sua posição.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

RN Nuzlocke Y - Capítulo 3: Cabeças-Duras

RECINTO NERD NUZLOCKE - Y -
CAPÍTULO 3: CABEÇAS-DURAS

 - Qual é a sua? - Perguntou Frog subitamente, lançando um olhar mal-encarado a Kari. Os dois estavam andando pelo Caminho de Vaniville, cercados pela grama, pelas flores e pelas grandes árvores que tapavam o caminho do sol. A treinadora desviou os olhos e fez um muxoxo, começando a perder a paciência.

 - O que foi? - Perguntou a garota, devolvendo o olhar irritado com o canto do olho. Todo o estresse da perda de memória estava finalmente chegando ao auge, muito pelo fato da situação ter sido razoavelmente resolvida. Agora que ela tinha um objetivo a cumprir, as outras emoções além do medo conseguiram seu espaço.

 - Você não me parece confiável. E eu tenho olfato para esse tipo de coisa. - Respondeu o Froakie, estreitando as pálpebras.

 - Ah, sério? Seu olfato disse que eu não sou confiável? - Perguntou Kari, ajeitando a bolsa no ombro com a voz pingando ironia. - Era mais fácil dizer que era um sexto sentido, sabia? Não ia parecer tão imbecil.

 - Ei, qual é o seu problema? - O Froakie avançou e parou, ficando na frente de Kari. - Treinadores Pokémon não deveriam agir assim com sua equipe! - A garota apenas o encarou como se não acreditasse na situação.

 - E os próprios Pokémon deveriam ter alguma pingo de respeito pela droga dos treinadores. - Disse finalmente. Ela deu um passo à frente. - E, que eu saiba, você ainda é um mordedor de tornozelos azul com problemas de língua solta. Eu ainda posso te colocar em formas infinitas de castigo, tantas que você teria que passar dias contando.

 -  Quero ver você tentar. - Começou Frog, se colocando em uma postura de luta. - Eu sou o futuro Campeão de Kalos, e você nem -- O que ele iria falar nunca ouvido, pois Kari se adiantou e afundou seu rosto na grama, prendendo-o com a mão direita.

 - Oh, desculpe. - Disse ela calmamente enquanto o Froakie se debatia. - Você tem que ter uma altura mínima para -- Mais uma frase incompleta, pois Frog conseguiu soltar um jato d'água nos pés de Kari, que se desequilibrou e caiu. O Pokémon aproveitou o momento e pulou em cima dela, e ambos ficaram se degladiando no chão.

 - Porteiro de maquete! Carcereiro de gaiola! Alpinista de calçada! - Grunhiu a treinadora no meio da luta, girando o corpo para tentar prendê-lo.

 - Tábua! - Conseguiu dizer Frog, e algo estalou na mente de Kari, produzindo ainda mais raiva. Os dois ficaram rolando e lutando, até que uma voz rompeu o ar.

 - Ora, ora, o que temos aqui? - Os dois pararam e se levantaram a cabeça, bem a tempo de ver um enorme Rhyhorn quase em cima deles. No lombo do Pokémon havia uma mulher alta e magra, com cabelos castanhos curtos e um prendedor amarelo para decorá-los. Ela os encarava com uma expressão totalmente séria. - Acho que você tem uma carta para mim, garota. - Disse a mulher. Kari se levantou, ainda tentando compreender o que estava acontecendo.

 - V-você é a senhora Luco? - Perguntou a treinadora, limpando discretamente a terra que impregnava suas roupas. A mulher disse que sim com a cabeça, e Kari pegou atrapalhada a carta do bolso. - Isto é para você.

 Luco ficou a encarando, analisando-a de cima a baixo do alto do Rhyhorn. Ela se esticou para pegar a carta e guardou-a no bolso. - Escutem, vocês dois. - Começou ela, olhando para Kari e Frog com severidade. - O caminho de um Treinador Pokémon não é fácil. Para ninguém. Então, ou vocês aprendem a se respeitar, ou acabarão morrendo. Entendidos? - O Rhyhorn soltou um rugido, e os dois imediatamente acenaram positivamente com a cabeça. - Ótimo. - Respondeu Luco. - Avisem a Sycamore que eu mandei um oi. - E com isso ela deu meia-volta no Rhyhorn e começou seu caminho a Vaniville. Kari e o Froakie ficaram quietos, e se viraram para voltar a Aquacorde. Nenhum dos dois sequer olhou para o outro, muito menos falou.

 Estavam terminando de atravessar Aquacorde quando o silêncio foi interrompido. Frog parou perto da ponte que ligava a cidade à rota seguinte, que se embrenhava no meio da floresta. Havia um pequeno abismo à sua frente, e um rio que corria mais abaixo.

 - O que você quer fazer? - Perguntou ele. Kari suspirou, se abaixando para se sentar na beira do caminho.

 - Eu não sei. - Disse ela, cansada. - Só sei que a idéia de ser uma treinadora Pokémon me parece um caminho bastante familiar. E é tudo que eu tenho agora. - Ela acabou por recolher as pernas e segurar os joelhos, contemplando a floresta. Novamente o silêncio veio, e Frog o interrompeu pela segunda vez.

 - Imagino que você vá seguir em frente, então? Talvez... até a Liga? - Kari refletiu sobre isso. Não tinha a menor idéia se iria recuperar sua memória daquele jeito, muito menos quando isso aconteceria. No entanto, o caminho que iria seguir era bastante claro. E tinha um fim bem definido.

- Talvez. - Se limitou a dizer a garota. - Não sei o que vai acontecer comigo quando eu recuperar a memória. Posso ter outros objetivos, mas... vou considerar isso. Tudo bem? - Ela se virou para seu Pokémon, que voltou a encarar a floresta.

 - Acho que é o melhor que posso esperar. - Respondeu Frog.

 - Ei, pelo menos você tem um objetivo na sua vida. - Acrescentou a treinadora. - É muito mais do que eu posso dizer.

 - Realmente, estou muito melhor do que você. - Disse o Froakie, e no segundo seguinte Kari o empurrou contra o rio, fazendo-o cair quase cinco metros. Ele submergiu com ódio profundo, e começou a xingar a garota em voz alta. Kari, por sua vez, retribuiu no mesmo tom.

 E assim o céu ia se pondo no céu, e o primeiro dia de Kari em Kalos estava no fim. Para muitos pedestres que passavam perto da ponte de Aquacorde, a garota e seu Pokémon eram objetos mesclados ao ambiente. Muitos franziam a testa para o barulho dos dois, mas a maioria simplesmente os ignorava.

 Exceto uma pequena figura, que os encarava com interesse. Ela se mantinha nas sombras, e continuou onde estava mesmo quando Kari e Frog levaram sua briga até a ponte, indo em direção à Rota 2.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Aurora: Capítulo 3 - A Sede

AURORA
CAPÍTULO 3: A SEDE

 - Acho que é tudo que precisamos. - Disse Stella no momento em que Dalan terminava de rabiscar sua última rubrica. Ela recolheu os papéis do contrato, encarando os móveis de sua sala enquanto parecia procurar por algo. O garoto largou a pena e movimentou o punho, cansado da sessão de assinaturas.

 - E agora? - Perguntou ele, massageando a região dolorida. Stella se levantou e foi até um armário, bem próximo da peculiar corrente morfo cromática que havia atiçado Dalan anteriormente. Assim que a mulher abriu o armário, no entanto, uma nuvem branca saiu de dentro do móvel, rapidamente preenchendo a sala inteira.

 - MALDIÇÃO! - Praguejou o vulto de Stella, balançando as mãos com violência na tentativa de dispersar a névoa grossa. - Dalan, me faça um favor. Vá até Lyra lá embaixo e peça para ela te dar o passeio pelo prédio. Ela normalmente fica atrás do balcão. É a que tem cabelos roxos. Aproveite e peça para ela marcá-lo. 

 - Eu... - O garoto se sentiu um pouco receoso de descer sozinho. No entanto, quando ia proferir sua vontade um pássaro amarelo saiu do armário, piando e voando por toda a extensão do pequeno aposento. Stella começou a praguejar de forma mais intensa, deixando claro que Dalan não seria notado tão cedo. Assim, ele saiu da sala e encarou o salão.

 O aposento estava agitado, mesmo com tão poucas pessoas presentes. As duas gêmeas loiras estavam em uma das mesas no centro da sala, acompanhadas de um rapaz com longos cabelos negros enrolados em uma única trança. O homem semi-grisalho de outrora, por sua vez, tinha o rosto afundado no balcão do bar, no outro lado da sala. Roncava audivelmente, sentado de forma desajeitada em um banco alto enquanto segurava um grande copo de cerveja. Do outro lado do bar, a garota de corpo escultural de antes lavava animadamente um prato, cantarolando com os olhos semi-abertos e um sorriso no rosto.

 Conforme descia os degraus de madeira e ia se aproximando da mulher de cabelos roxos, Dalan ia notando sua beleza. Só era possível enxergar de sua cintura para cima, mas era claro que seu corpo, cuidadosamente esculpido em formato de ampulheta, era invejável. Ela era curvilínea onde era necessitado, e delicada no restante. Seu rosto tinha a forma de uma gota de cabeça para baixo, e nele haviam grandes olhos negros, um nariz mirrado e uma boca com lábios finos. Seus cabelos eram suavemente ondulados e desciam até os ombros. Dalan percebeu que estava vermelho assim que chegou no balcão, e as palavras engasgaram em sua boca. A moça continuou a cantarolar, guardando graciosamente o prato na pia de pedra lixada e desligando a torneira enferrujada. Perto deles, o homem grande continuava a roncar.

 - Bem-vindo à Aurora! - Disse ela com a voz doce e animada. Dalan se sobressaltou, muito pelo fato de estar encarando o decote no vestido simples verde da mulher, descoberto ao notar o colar de prata que ela usava. O garoto ficou ainda mais vermelho, e cambaleou um pouco para trás.

 - Gaah. - Grasnou ele, imediatamente se arrependendo do som que fez. Pelo menos a mulher havia fechado os olhos em sua frase, inclinando a cabeça para o lado enquanto esperava docemente a resposta, assim não pôde ver o rubro que manchava o rosto pálido de Dalan. - Ah... obrigado. - Disse o jovem, rapidamente.

 A mulher abriu os olhos e aumentou o sorriso, estendendo rapidamente a mão por cima do balcão. - Meu nome é Lyra Nilla, e sou a ajudante da senhora Stella. Muito prazer! - Ela voltou a fechar as pálpebras e inclinar a cabeça, enquanto esperava o movimento do outro rapaz.

 - Ah... obrigado. - Respondeu ele, apertando a mão dela. - Meu nome é Dalan Glacius. O p-prazer é todo meu. - Isso parecia o correto a se dizer, pensou ele na hora. Lyra soltou sua mão e se apoiou no balcão para se aproximar. Os olhos de Dalan quase correram de volta para o decote, mas ele suportou bravamente a tentação.

 - Devo te dizer, você deu uma nova injeção de ânimo aqui! Estávamos em um belo clima fúnebre antes de você chegar. - Ela saiu detrás do balcão, revelando o resto de seu vestido que alcançava os joelhos. - Stella deve ter me pedido para te mostrar a guilda, não é? - Dalan concordou com a cabeça, ainda chocado pela tamanha beleza de Lyra. - Bem, venha por aqui. - Ela o chamou pela mão enquanto andava para trás, atravessando uma porta dupla de madeira.

 - Essa é a cozinha. - Disse ela assim que Dalan entrou no aposento. O local era apertado e coberto de azulejos brancos, muitos deles cobertos de gordura e outros resquícios alimentares. O garoto teve a impressão de que a cozinha era ampla, mas haviam tantos objetos pendurados nas paredes que era difícil ter certeza desta afirmação. Armários de madeira se espalhavam de forma aparentemente aleatória, e panelas sujas se equilibravam nas duas pias, embora estivessem peculiarmente ajeitadas. Havia uma grande abertura na parede para o salão, e perto do homem grande havia um barril aparentemente vazio. - Ah, esse é o Dom. - Disse de forma alegre Lyra, percebendo o olhar de Dalan. - Esse é o lugar favorito dele, então já deixo um barril de cerveja separado. Quando ele acordar irei te apresentar. - Pelo ronco forte, o garoto teve a impressão de que não seria apresentado tão cedo. - Você pode vir aqui comer na hora que quiser, mas em determinados horários do dia eu preparo uma refeição mais completa. São três por dia, se quiser saber. - Percebeu Lyra se afastando, e se virou para acompanhá-la.

 Voltaram ao salão principal, e a mulher se virou para a direita em direção a um corredor repleto de portas. - Me diga, Dalan, você veio de onde? - Perguntou ela na mesma voz animada. O garoto sentiu um aperto no coração ao se lembrar de sua casa, mas a alegria contagiante de Lyra fez a sensação durar pouco.

 - Sou de Gamora. - Respondeu ele. Lyra se virou, e ele rapidamente colocou um meio-sorriso no rosto.

 - Gamoriano? Nossa, é a primeira vez que vejo um aqui no continente. - Ela ampliou o sorriso, e Dalan sentiu o rosto corar ardentemente. Lyra voltou a olhar pra frente no momento em que atravessavam o portal do corredor. - E quantos anos você tem?

 - Dezenove. - Estavam atravessando o corredor naquele momento, passando por várias portas de madeira.

 - Ah, eu sou um pouco mais velha. Tenho vinte e um. - Isso não era um problema, pensou espontaneamente a mente de Dalan. À sua frente, Lyra estancou subitamente, e o garoto quase a acertou. - Essas portas dão para nossos aposentos particulares. Inclusive, este é o seu. - Ela retirou um molho de chaves do bolso e começou a procurar por uma específica. Enquanto isso, o rapaz encarou a porta de madeira puída. 016, dizia o símbolo de metal enferrujado no topo. - Ah, achei.

 A garota abriu a porta, revelando um pequeno quarto quadrado de três metros e meio. Ele entrou, notando o estado de abandono no lugar. A poeira pintava de cinza os poucos móveis, e teias de aranha eram vistas nos cantos superiores. O armário de madeira era grande, ocupando toda uma parede, mas uma das portas estava estranhamente bamba. Do outro lado do quarto, uma janela grande oferecia a luz do sol. Um criado-mudo e uma cama terminavam a sequência de móveis, e em cima da última havia um colchão magro e descolorido. Não haviam lençóis nem mesmo travesseiros.

 - Eu vou emprestar algumas coisas do meu quarto enquanto você não comprar o que precisa, tudo bem? - Disse Lyra, percebendo o olhar desolado de Dalan. O garoto se virou tão rápido que quase caiu, novamente com o rosto em chamas.

 - V-v-v-você não precisa! - Gaguejou ele, arregalando os olhos. A garota apenas sorriu, voltando a inclinar a cabeça com os olhos fechados.

 - Claro que eu preciso. Acha mesmo que eu iria te deixar dormindo nessas condições? Afinal, somos companheiros de guilda agora. - Ela começou a vasculhar o molho de chaves novamente, procurando uma cópia da que havia aberto a porta. - Devo separar alguns lençóis e travesseiros hoje de noite. - Ela olhou para cima, encarando Dalan através da cabeça abaixada. - Se te faz sentir melhor, encare como se fosse meu trabalho na guilda. O que não deixa de ser verdade.

 - O que você faz? - Perguntou o garoto, ainda chocado de existir uma pessoa tão perfeita quanto a que estava à sua frente. Lyra deu de ombros.

 - Ah... eu sou a segunda em comando da senhora Stella. Ou seja, mantenho toda a infra-estrutura da Aurora. - Ela retirou a chave, estendendo-a para Dalan. - Tudo o que a guilda precisar, lá estarei eu para fazer. Cozinhar, arrumar, servir como tesoureira ... esse tipo de coisa. - Ela andou até a porta, e o garoto a acompanhou. - Não sobra tempo para fazer nenhuma missão, mas procura ajudar da maneira que consigo.

 - Entendo. - Disse Dalan, ainda desconcertado com a boa-vontade da garota. Os dois caminharam até um corredor perpendicular ao que estavam, e viraram para a esquerda. O rapaz procurou alguma coisa para preencher o silêncio, ávido na esperança de manter a outra falando. - Nessas horas a resistência extra da Yullian ajuda, não?

 - Ah, eu não sou uma Yulliana. - Respondeu Lyra, abrindo uma porta de madeira no fim da galeria, um pouco maior do que as anteriores. - Esse é um dos motivos de eu procurar ajudar a guilda do jeito que faço.O mundo lá fora não é tão... seguro para humanos comuns.

 - Oh. - Burro, burro, burro, censurou-se Dalan. - M-me desculpe. - Lyra, ainda absorta em sua procura pela chave correta, balançou a cabeça para acalmá-lo.

 - Não precisa se preocupar. Não ter a Yullian em meu sangue não significa que não sei me virar na hora do aperto. - Ela finalmente abriu a porta, revelando um aposento mais amplo, de quase cinco metros de comprimento por oito de largura. Ele tinha as paredes pintadas de negro, e diversos equipamentos de musculação rudimentares se espalhavam pelo recinto. Alguns halteres estavam encostados no canto, juntos com dois bastões e uma pilha de colchões finos. Dois bancos enferrujados se espalhavam no centro do quarto, junto com um tatame verde. - Essa é a sala em que treinamos a forma física. Normalmente ela não fica fechada, portanto você pode vir na hora que quiser.

  A garota não estendeu seu tempo na sala, preferindo avançar até uma porta no canto direito. Diferente das outras, esta estava aberta, e assim os dois saíram para os fundos do prédio, local mais familiar para Dalan.

 - Aqui nós temos uma pequena oficina, mas infelizmente ela está fora de uso desde que nosso mecânico saiu da Aurora. - Os equipamentos enferrujados pareciam estar imóveis há meses, com camadas e mais camadas de pó por cima deles. Lyra se aproximou do pequeno quiosque de ferramentas, retirando um grande arco de madeira lustrado. - E é com isso que eu me viro. - A arma tinha quase dois metros, e possuía as pontas recurvadas para dentro, acentuando a barriga no centro. A garota puxou a corda fina e negra, apontando com um sorriso para o chão.

 - Maneiro. - Elogiou Dalan, e Lyra guardou o arco, parecendo desconcertada.

 - Não é grande coisa. - Acrescentou ela rapidamente, enrolando o dedo no cabelo. - Só o suficiente para me virar quando for necessário. - Pelo visto falei a coisa certa, parabenizou Dalan a si mesmo. Com um sorriso, ele continuou a falar.

 - Escuta... eu procurei essa guilda por causa de um homem que veio até Gamora há alguns anos, mas... - Lyra levantou a mão para interrompê-lo, e grande parte da alegria pareceu ter fugido de seu rosto.

 - Deixe-me adivinhar. - Disse ela com a voz calma e um sorriso amarelo, embora o tom parecesse cansado. - O nome dele eram Adam, não era?

 - S-sim. - Respondeu Dalan, sentindo que havia tocado em um assunto delicado. Lyra andou cabisbaixa até um banco perto da parede, convidando o garoto a se sentar, ainda com o sorriso triste.

 - Ele era o Mestre de Aurora desde o início da guilda. - Recomeçou ela quando Dalan se sentou ao seu lado. Ela se inclinou para frente e começou a brincar distraída com seus próprios dedos. - Era marido da senhora Stella e pai de Sasha. Faz dois anos que ele morreu.

 - Ah. - O rosto de Dalan se avermelhou novamente. Pra quê foi perguntar sobre esse assunto? - M-me desculpe. - Gaguejou ele. Lyra virou a cabeça para encará-lo.

 - Tudo bem. - Ela fitou o horizonte por alguns segundos, envolta em pensamentos. Suspirou. - Ele era um bom homem, sabia? Costumava resgatar crianças abandonadas que encontrava em suas missões. Dos dez membros da guilda hoje, incluindo você, seis foram... adotados por ele. Talvez seja por isso que não abandonamos Aurora quando as coisas começaram a ficar ruins depois da morte de Adam.

 - Faz dez anos desde o dia em que vim para cá. - Continuou ela. - Era uma criança pobre em Savarat, uma cidade ao sul daqui. Adam me resgatou e me trouxe para a Aurora. Desde aquele dia decidi retribuir aquele ato, e comecei a trabalhar aqui. Depois da... morte dele... - Ela inclinou a cabeça para baixo. - ... fiz de tudo para ajudar a senhora Stella. Faço isso até hoje.

 Um silêncio incômodo surgiu entre eles, enquanto Dalan procurava avidamente algo para dizer. No entanto, quem quebrou o comedimento foi Lyra, se ajeitando na cadeira e se virando para o garoto. - Nossa, que fúnebre, não? Vamos pular essa parte, afinal você acabou de entrar e isso é um motivo de comemoração! - Seus olhos continuavam tristes através do sorriso, mas Dalan procurou fazer o que ela pediu.

 Os dois se levantaram e voltaram até o edifício, adentrando em um corredor que os deixava no saguão de entrada. Lyra apontou para o andar superior. - Ali ficam as salas de administração, como a tesouraria e o escritório da senhora Stella. Ela e Sasha também moram ali. - Dalan inclinou a cabeça para cima, e só percebeu que a outra garota tinha se afastado quando ela já estava do outro lado do saguão, perto do bar.

 - Dom, eu deixei o carimbo da guilda com você, não foi? - Perguntou a garota. O homem resmungou, se levantando do balcão com dificuldade. Seus olhos castanhos estavam vermelhos por cima do nariz pontudo e por baixo da grande testa. Ele se espreguiçou sem dizer uma palavra e piscou com vontade, encarando Dalan.

 - Ah, o novato está aqui! - Disse ele com a voz esganiçada. Dom se levantou cambaleante e se pôs à frente do garoto. Ele era definitivamente gigante, com quase dois metros e um corpo musculoso e tatuado que acentuava seu tamanho. Sua veste verde não cobria o peito nu, e era acompanhada por uma calça de tecido negro e uma faixa branca na cintura. Seus cabelos eram bem curtos e se alteravam entre negro no topo e grisalho nas laterais. Ele estendeu a mão para Dalan, sorrindo abertamente. - Dominic Weitern, garoto. Pode me chamar de Don, se quiser.

 - Dalan Glacius. - Respondeu o garoto, apertando a mão. Por um instante pensou que seus dedos seriam estraçalhados, mas o aperto teve uma força normal. Dom se virou então para Lyra, retirando um objeto do bolso.

 - Aqui, garota. - Ele jogou o objeto para Lyra, que o segurou com as duas mãos enquanto agradecia.  Dalan percebeu que ele era parecido com um carimbo, do tamanho de sua mão. Dom voltou a se sentar perto do balcão, e a garota se aproximou do garoto, girando o suporte do carimbo.

 - O braço direito, por favor. - Pediu ela, e Dalan retirou o braço da capa, estendendo-o para Lyra. Ela pressionou o objeto contra a pele, produzindo um brilho roxo e azul por alguns segundos. Quando ela recuou o carimbo, havia uma tatuagem na pele do garoto. Ela era composta por três linhas de cor verde, roxa e azul, todas em formato de "S", e uma estrela branca de quatro pontas no canto inferior esquerdo. - Essa é a Marca da Aurora. - Disse a garota. - Agora você é um membro oficial da guilda. Essa marca irá te identificar para qualquer pessoa, como se fosse uma identidade.

 - Entendi. - Disse Dalan, entortando o braço para poder ver a marca. Sua pele formigava por debaixo da tinta, mas não chegava a doer. Lyra começou a andar até o outro lado do saguão, e o garoto a acompanhou.

 - Por último, vou te mostrar um dos lugares mais importantes daqui, o Mural de Missões. - Ela indicou um painel de tecido amarelo, preso na parede. Haviam dois papéis de cor cinza colados na superfície, pregados por uma tachinha roxa. - Cada uma das missões contém os detalhes necessários, como o pagamento, o Tempo de Contrato e a descrição do trabalho. Assim que escolher uma, vá até mim no balcão e eu a aprovo para que você possa cumpri-la. Receberá o pagamento no início da semana, quando eu for até o Conselho Local comprar novas missões com a senhora Stella. - Ela colocou as mãos no quadril, parecendo satisfeita consigo mesma. - E é isso! O seu pequeno tour acabou. Agora faça-se em casa!

 - Ah. - Disse Dalan, surpreso com o fim abrupto. Lyra sorriu com os habituais olhos fechados e cabeça inclinada, e se virou para voltar ao balcão.

 O garoto ficou onde estava, sentindo a realidade descer sobre si. A parte fácil de sua missão havia terminado. Entrou na Aurora, e agora precisaria fazê-la crescer. Sua família e todos os que conhecia estavam contando com ele. Gamora estava em suas mãos.

 Um plano se formulou em sua cabeça. Estava claro que, nas condições atuais da Aurora, não conseguiria nunca descobrir o que havia acontecido com sua ilha, e duvidava que teria condições de entrar em uma guilda maior. Assim, precisava dar o máximo de si para que a Aurora crescesse. Teria que realizar o máximo de missões que conseguisse, e se aliar com todos ali dentro. Afinal, não saberia quando o apoio deles seria importante em suas próprias ambições.

 Sentiu o corpo cansado e dolorido, resquícios da viagem longa até Helleon e da luta contra Sasha. Uma voz em sua cabeça o mandou descansar, mas outra o lembrou de sua missão. Não havia ninguém que pudesse descobrir o que aconteceu com sua ilha, exceto ele. Não poderia perder o foco, principalmente agora que estava bem encaminhado.

 Pegou uma missão do Mural e se encaminhou até Lyra.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Aurora: Capítulo 2 - O desafio de Sasha

AURORA
CAPÍTULO 2 - O DESAFIO DE SASHA

 Dalan acompanhou Stella até os fundos do prédio, encontrando uma grande área externa coberta por grama. Logo atrás do edifício havia uma piscina modelada com rochas à direita da porta que haviam saído, e uma pequena oficina ao ar livre à esquerda. Mais à frente, um enorme campo os aguardava, com quase setenta metros de comprimento e quarenta de largura. Uma pequena elevação natural, de quase dois metros, marcava o lado esquerdo do campo, e lá o restante da guilda estava sentado na relva. Dalan contou seis pessoas, doze olhos que agora o encaravam enquanto ele atravessava a distância curta até o campo. E Sasha aguardava no centro da arena.

 - Não se preocupe. - Disse Stella, sentindo o nervosismo do garoto. - Sasha tenta se fazer mais forte do que é, mas há uma grande diferença entre o que ela acha de si mesma e a realidade.

 - E o que é a realidade? - Perguntou Dalan, engolindo em seco. Stella ficou em silêncio, refletindo consigo mesma, até soltar um sorriso amarelo.

 - Ei, se as coisas saírem do controle, nós iremos intervir, tudo bem? - O garoto definitivamente não gostou daquela frase, mas não disse nada. Quando chegaram no campo, Stella se encaminhou até os companheiros na elevação, deixando Dalan com Sasha.

 De perto, a garota parecia bem mais baixa, com no máximo um metro e sessenta e cinco de altura. Ela estava de braços cruzados com o corpo um pouco inclinado para o lado enquanto o vento agitava suas maria-chiquinhas, mas o rosto continuava impassível ao encarar Dalan. O garoto parou cinco metros afastado dela e tentou soltar um sorriso nervoso, mas ele sumiu ao enfrentar o olhar gélido de Sasha.

 - Vamos tornar isso bem simples. - Disse ela com sua voz aguda, soltando os braços. - Aquele que desmaiar primeiro será o perdedor. Entendido? - Dalan concordou com a cabeça, ajeitando os dois pés na grama para apoiar melhor o corpo. Estendeu também os braços um pouco para frente, protegendo o tronco e o pescoço. Não fazia ideia do que Sasha poderia fazer, mas de qualquer jeito era melhor se preparar para um ataque físico. A garota não se moveu, e Dalan sentiu um nervosismo na garganta.

 - Você já pode -- Começou ele, mas não chegou a terminar a frase. No meio das palavras Sasha avançou, se aproximando como um raio até atingi-lo com um soco na boca, impelindo sua cabeça para o lado com violência até desequilibrá-lo. Dalan sentiu o sangue vazar da língua mordida, e antes que ele caísse a garota desferiu outro soco, desta vez acertando-o nas costelas, na direção oposta do último golpe. O garoto caiu, desajeitado, segurando o tronco.

 - O que é isso? - Perguntou ele com os dentes trincados, mas sua mente já trabalhava em achar uma resposta. Se lembrou da cena anterior, onde Sasha percorreu a distância entre eles em um meros décimos de segundo até desferir o soco. Ele entendeu o que estava acontecendo um pouco antes de Sasha falar.

 - Supervelocidade. Você nem mesmo vai me ver chegando. - Respondeu ela com a voz arrogante. Isso não é exatamente verdade, pensou Dalan enquanto cuspia o sangue em excesso da boca. Embora Sasha fosse muito mais rápida do que um ser humano normal, ele conseguiu enxergá-la se aproximando, embora a surpresa tivesse retardado sua reação. O garoto segurou a grama abaixo de si com força, pensando em usar seu poder para contra-atacar. No entanto, antes que ele conseguisse se concentrar sofreu um chute na boca, fazendo-o rolar para o lado.

 - Raios. - Praguejou baixinho, e rapidamente se pôs de pé. Conseguiu adotar uma posição de defesa razoável antes de Sasha começar uma série de socos e chutes, procurando minar suas defesas. Mesmo na confusão, a mente de Dalan se pôs a calcular. A adversária realmente não era tão rápida quanto dizia, mas naquele cenário isso não importava muito. Ela tinha velocidade o suficiente para acertá-lo com força e impedindo um contra-ataque adequado, forçando o jovem a ficar na defensiva. Além disso, Sasha tinha habilidade o suficiente para acertar seus pontos desprotegidos, mas não o bastante para desferir uma série de golpes no local antes do garoto rearmar a defesa.

 Um golpe no rosto fez com que Dalan perdesse momentaneamente os sentidos, recobrando-os um pouco antes de acertar a cara na grama. Rolou para o lado instintivamente, desviando de um pisão de Sasha. Ouviu o som do golpe martelar a relva e chutou o ar com violência, sorrindo satisfeito ao senti-lo acertar uma magra canela. Se levantou com rapidez enquanto a garota caía no chão e saltou para imobilizá-la, mas ela já estava de joelhos. Sasha acabou por acertar um forte soco no queixo do garoto, que mais uma vez mordeu a língua. Enquanto Dalan tentava se recuperar, a adversária colocou as mãos na grama e virou o corpo para chutar seu estômago, expulsando todo o ar e fazendo o sangue espirrar da boca. Dalan acabou por cair no chão.

 - Desista, você não vai conseguir me vencer. - Disse ela, ficando de pé. O garoto respirou fundo, considerando suas opções. Dificilmente venceria no mano a mano, e a única esperança era seu poder. No entanto, ele precisaria do elemento-surpresa se quisesse derrotar Sasha. Dalan se levantou, limpando uma mancha de terra da testa. Considere o ambiente, pensou para si mesmo. Precisaria usar tudo que tivesse acesso ao seu favor. No entanto, não tinha nada ali. Apenas ele, a grame e Sasha. A arrogante Sasha...

 Eis que um plano surgiu em sua mente. Era quase desesperado, mas era sua única chance de vencer. Precisava fazer aquilo dar certo. Sua casa estava perdida, e o único que poderia encontrá-la era ele. Necessitava mudar as regras do jogo. E pra isso precisava de sua lábia, o que definitivamente não era seu ponto forte.

 - É só isso? - Perguntou ele, soltando um sorriso nervoso na esperança de ser zombeteiro. Por um instante esperou ver Sasha avançando contra ele, mas ela apenas inclinou a cabeça e estreitou as pálpebras.

 - O que você disse? - Perguntou a garota com a voz lenta e pontuada.

 - Estou dizendo que você é realmente muito menos do que acha. - Sua voz estava um pouco mais aguda e alta do que o normal, reparou. Por favor, que isso dê certo, rezou Dalan aos deuses. - Eu conseguiria agarrar você a qualquer momento naquela cena que tivemos. Para uma velocista, você abre completamente a guarda.

 - Acha mesmo que vou cair nessa? - Perguntou Sasha, e Dalan sentiu um peso gelado descer pelo esôfago. - Eu te coloquei completamente na defensiva. Não havia jeito de escapar dos meus ataques.

 - I-isso é o que você acha. - Droga! Não era o momento de gaguejar. O garoto voltou a limpar a sujeira da testa, tentando recompor seu teatro. - Eu conseguiria segurá-la quando quisesse.

 - Então que tal tentar, garotão? - Disparou Sasha, com seu rosto começando a se tingir de vermelho. - Vamos fazer o seguinte. Se você conseguir me imobilizar no chão, te deixarei vencer. Só que, se for derrotado, eu não vou querer ver nem um fio de seu cabelo por todo o Mar de Cellintrum! - Ela apontou para ele, encarando-o com raiva. - Entendeu?

 - Tudo bem. - Dalan estava tão aliviado que seu plano havia funcionado que quase abaixou a guarda. Controle-se, ordenou a si mesmo. O momento da decisão seria a qualquer instante.

 Assim que o garoto terminou sua frase mental, Sasha disparou contra ele com o punho em riste, mirando seu rosto. No entanto, daquela vez, Dalan estava a postos. Ele estendeu as duas mãos com as palmas viradas para o chão, concentrando cada pingo de seu ser em seu ataque. Imediatamente uma aura gélida saiu de suas palmas, disparando até a grama. O contato congelou a relva, e a área glacial se expandiu até formar uma faixa de quase três metros. Bem no caminho de Sasha.

 A garota escorregou com o gelo, e sua velocidade a impediu de recuperar o equilíbrio. Ela voou, acertando no caminho Dalan, que havia aberto os braços de modo a se preparar para o impacto. Sasha acertou a cabeça no peito do adversário, e os dois rolaram juntos na grama em velocidade, levantando punhados de terra no trajeto. Dalan se segurou com força na garota, sem sequer saber onde colocava as mãos, se concentrando apenas em mantê-la por perto.

 Finalmente os dois pararam de rolar, e o rapaz, atento, rapidamente se colocou em cima de Sasha, pondo os joelhos ao lado do quadril da garota e segurando suas mãos com força. Ela demorou um pouco mais para recuperar os sentidos, mas quando entendeu o que estava acontecendo, se viu imobilizada por Dalan.

 - Eu disse, não disse? - Soltou o garoto, sem conseguir evitar o sorriso. O rosto de Sasha se tornou imediatamente púrpura, e ela se libertou com violência. Dalan caiu para trás, e ela ficou em pé, revoltada.

 - O que... o que você acha que está fazendo? - Gritou ela, espanando a terra das roupas.

 - Vencendo. - Respondeu Dalan, se levantando enquanto apoiava o joelha na grama. - Você disse isso, não é? Se eu conseguisse imobilizá-la, estaria na guilda?

 - E-e-e-eu... - O rosto de Sasha, se era possível, ficou ainda mais corado, e ela se agitou novamente enquanto pensava em uma resposta. No entanto, ela não veio. - Ah, saco! - Gritou finalmente, se virando de costas para caminhar com passos fortes até a guilda. Houve um pequeno agito ao longe, e Dalan se virou para ver o resto da guilda assobiar e gritar, e Stella se aproximar com um sorriso no rosto.

 - Meus parabéns. - Disse ela, parando de frente ao garoto. As outras pessoas passaram pelos dois, conversando animadamente entre si. Alguns faziam menção de ir falar com Dalan, mas um olhar calmo de Stella os fez continuar o caminho até o prédio da Aurora. - Me diga, onde aprendeu a lutar daquele jeito? - Perguntou a mulher, se virando para o rapaz. - Não me parece um trabalho de principiante.

 - Meu pai me ensinou um pouco. O suficiente para me defender de piratas ou assaltantes. - Respondeu Dalan, sem jeito. Ele estava imensamente aliviado, mas tentou manter uma postura respeitosa com a Mestra. - Não sei se é uma arte marcial de verdade, apenas... apenas é eficaz. - Completou enquanto esfregava a nuca com a mão direita.

 - Bem, é uma forma de classificá-la. - Pelos seus olhos ela não considerava exatamente os movimentos do garoto um trabalho de mestre, mas foi educada o suficiente para manter isso para si mesma. - De qualquer jeito, sinta-se satisfeito. Passou no teste de Sasha.

 - Isso... isso significa que entrei na guilda? - Perguntou ele ansioso. Stella sorriu, mostrando de novo um olhar calmo e materno.

 - Mas é claro. Bem-vindo à Aurora.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Aurora: Capítulo 1 - Dalan Glacius

P.S: Você, que está começando Aurora agora (muito obrigado), irá encontrar uma versão muito mais caprichada e compilada no PDF DE AURORA. Recomendo.

AURORA
CAPÍTULO 1: DALAN GLACIUS


 O barulho do cascalho esmagado era o único som que ecoava na estreita rua urbana, e o jovem que caminhava por essa viela era a única alma viva no local, seguindo de forma lenta e constante seu caminho através do sol forte.

 Ele tinha cabelos negros e revoltos que alcançavam a altura do queixo, mas no momento estavam cobertos por um longo capuz azul com detalhes bordados em branco. Seu rosto era duro e angular, com um queixo fino e curto. Possuía olhos da cor do ébano, e sobrancelhas finas que lhes davam um ar de seriedade, assim como a boca reta. O jovem vestia um traje branco semelhante a um quimono, embora mais fino e sem mangas. Por cima disso havia o previamente mencionado capuz, que fazia parte de uma longa capa que alcançava os joelhos, quase alcançando em certos pontos os pés, que calçavam um simples tamanco de madeira. Seu nome era Dalan Glacius, e ele vinha de muito longe.

 De fato, embora a viagem tenha sido cansativa e pontuada por momentos de frustração e tensão, ele não demonstrava sinais de cansaço. Seguia adiante com os passos firmes, atravessando casas com um ar de abandono, a maioria com dois andares cobertos de poeira e ervas-daninhas. A região oeste da cidade de Helleon era muito menos movimentada do que a parte leste, banhada pelo Mar de Cellintrum e responsável pela única atividade econômica da cidade, a pesca, embora a própria não conseguisse tornar o povoado de um pouco mais de cinco mil habitantes próspero. Não que Dalan soubesse disso. Ele havia vindo do norte, caminhando e pegando carona desde o pequeno vilarejo pesqueiro de Gorla, atravessando sete dias de viagem, sempre acompanhando o mar à sua esquerda. E agora, estava extremamente perto do final. Embora seus passos continuassem firmes, seu coração batia mais forte. No fundo, Dalan esperava uma resposta negativa às suas preces, mas não havia outra maneira. Não possuía mais lar para voltar.

 Chegou até uma praça, e a construção que procurava surgiu à sua frente. Mesmo com baixas expectativas, ainda assim se sentiu desiludido. Embora fosse um prédio de tamanho considerável, com duas fileiras de andares com dez janelas na superior, estava em estado deplorável. Parte do terraço havia ruído, e rachaduras se proliferavam como vermes em um corpo morto. No entanto, havia sinais de vida, o que era mais do que podia ser dito dos outros prédios da região.

 Dalan atravessou a praça, dando uma rápida olhada para o relógio solar no centro da área. Dezesseis marcas, pensou ele. Seu estômago roncou, como se tivesse lembrado que não havia almoçado. Ignorando-o, o jovem se aproximou das portas duplas de madeira decorada, o único adereço que parecia limpo e intacto. Quando faltavam cinco passos, no entanto, as portas se abriram com violência.

 - SAMUEL! - Gritou uma voz feminina de dentro, e um homem saiu do edifício com passos irritados e apressados. Ele não vestia uma camisa, e sim uma calça de tecido grosso e marrom, assim como um cinto brilhante. Tinha o cabelo raspado e olhos castanhos, mas passou por Dalan antes que o garoto conseguisse olhá-lo melhor. Na porta, uma mulher com longos cabelos azuis-claros e um vestido cinza recomeçou a gritar. - VOLTE AQUI! AGORA! - No entanto, Samuel não olhou para trás. 

 Dalan ficou um pouco desconcertado com a cena, mas voltou a andar logo em seguida. A mulher da porta continuou onde estava, encarando desolada o homem que se afastava ainda mais. De perto, o garoto conseguiu estimar sua idade por volta dos quarenta anos, a partir das rugas finas que marcavam a região perto de seus olhos. Ela tinha olhos da mesma cor forte que os cabelos ondulados, e o rosto tinha traços delicados porém constituição geral firme, transparecendo uma beleza exótica, embora difícil de ser captada de primeira. Ela não percebeu Dalan se aproximar, perdida em profundos pensamentos.

 - É... - O garoto ficou desconcertado, sem saber exatamente como reagir. Decidiu aguardar a mulher se recompor para recomeçar a falar, e assim aguardou por longos segundos. Finalmente, como se tivesse acordado de um sonho, ela estremeceu e reparou no jovem ao seu lado.

 - Oi! - Disse ela, e sua agitação pareceu rejuvenescê-la cerca de dez anos. - E-eu... em que posso ajudá-lo? - Perguntou com os olhos arregalados enquanto ajeitava o cabelo.

 - Olá. Meu nome é Dalan Glacius. - Ele esticou a mão de forma apressada e robótica, e a mulher demorou alguns segundos para retribuir o aperto, também desconcertada. - Esta é a guilda Aurora?

 - Ah... sim! - Ela encarou de relance o interior do prédio, e Dalan acompanhou o seu olhar. Havia uma sala ampla, composta por diversas mesas de madeira e um balcão empoeirado. Também haviam algumas pessoas, mas o garoto não teve tempo de identificá-las. - Bem-vindo à melhor guilda de Helleon e suas regiões adjacentes! Meu nome é Stella Alba, e sou a Mestra de Aurora! - Ela sorriu, embora seus olhos demonstrassem uma pontada triste. - Em que podemos ajudá-lo?

 - Eu... - Dalan havia pensado naquela frase desde que saiu de Gorla, mas na hora apenas crocitou outras palavras. - ... gostaria de entrar na sua guilda!

 Um movimento no interior do prédio surgiu, mas o garoto não estava prestando atenção. Estava inteiramente focado na reação de Stella, rezando internamente por uma resposta afirmativa. A mulher recuou um pouco a cabeça para trás e piscou, como se não tivesse entendido direito.

 - Você... quer entrar na Aurora? - Perguntou ela com a voz lenta. Dalan acenou positivamente com a cabeça, nervoso, e Stella desviou o olhar por um momento, mordendo o lábio. Finalmente, abriu um sorriso. - Venha até meu escritório, por favor.

 Os dois caminharam pelo salão, e Dalan percebeu os rostos virados para ele. Ninguém falava. Uma mulher jovem, de corpo escultural e cabelos longos e roxos o encarava do outro lado do balcão, acompanhada por um homem com cabelos curtos e negros com detalhes em grisalho, que vestia uma longa veste alaranjada. Nas mesas haviam duas gêmeas de cabelos curtos e louros, diferenciáveis apenas pela boina marrom que uma delas usava. Enquanto subiam as escadas de madeira, o garoto percebeu um rapaz nas sombras do corredor do segundo andar, mas a iluminação ali era tão pouca que não conseguiu observar nenhum detalhe. Finalmente, Stella entrou em uma porta à direita, e Dalan a acompanhou, apressado.

 - Sinta-se à vontade. - Era um quarto apertado, de teto baixo e com armários e mesas apinhando as paredes, cobertas de papéis, penas e outros objetos. O garoto poderia jurar que ouviu um cacareco de uma das gavetas, mas não o ouviu novamente. Havia uma mesa de madeira no centro, forrada de tecido verde e com um amontoado de papéis e moedas espalhados pela superfície. Dalan se sentou em um banco enquanto Stella tentava arrumar tudo rapidamente, ao mesmo tempo em que abria as gavetas em busca de algo.

 - Ah, achei. - Disse ela para si mesma, afastando as moedas com a mão esquerda enquanto puxava um contrato com a direita. A mulher suspirou, se ajeitou na cadeira e encarou o garoto com um sorriso simpático enquanto tateava em busca das penas e do tinteiro. - Agora, apenas para confirmar: você deseja mesmo se juntar à Aurora?

 - Sim. - Respondeu Dalan, absorto pela quantidade de coisas no quarto. Seus olhos captaram uma corrente de bronze no topo de um armário que se movia sozinha.

 - Tem certeza? - Parecia que Stella estava aguardando uma pegadinha ou algo do tipo, mas não era o caso de Dalan, que apenas concordou com a cabeça. - O.K... me desculpe, mas qual é o seu nome mesmo?

 - Dalan. Dalan Glacius.

 - Certo, Dalan. - Ela finalmente conseguiu pegar a jarra do tinteiro e uma pena, mergulhando a ponta no líquido escuro. - Você sabe como guildas funcionam?

 - Ah... - Começou o garoto, desconcertado e nervoso. - Elas fazem o trabalho que as outras pessoas pedem? Me desculpe, de onde venho não existem guildas. - Acrescentou ele de forma apressada. Stella apenas sorriu calorosamente, fazendo-o se acalmar.

 - Não se preocupe, eu te informarei o básico. - Ela abaixou a cabeça e começou a preencher diversas partes do contrato enquanto continuava a falar. - Você sabe da guerra, não sabe? - Ela levantou ligeiramente a cabeça apenas para ver o aceno positivo de Dalan. - Bem, todos os nossos recursos há gerações estão sendo investidos na Fronteira, e isso gera uma falta de apoio policial gigantesca no interior da Aliança. Assim, há vários anos, um grupo de elfos em um dos territórios élficos criou a primeira guilda, Fulgen'ere, Estrela Radiante na língua deles, para suprir a defesa das leis. Com o tempo começaram a surgir outras guildas e o conceito se expandiu, abrangendo a realizações de missões para o povo comum em troca de incentivo financeiro.

 - Hoje todas as guildas oficializadas pertencem a um conselho regional, e a cada semana nós compramos algumas missões em leilão de acordo com diversos critérios que variam de uma guilda para a outra. Temos um tempo para resolvê-las, e se metade desse tempo, chamado Tempo de Contrato, se passar a missão será encaminhada para a próxima guilda da lista. As missões são categorizadas em diversos níveis, e para impedir que organizações pequenas tentem missões acima de seu nível existe o Preço das Missões, que ficam mais caras conforme mais difíceis são. Claro, não é exatamente a melhor forma de resolver isso, mas por enquanto é funcional. - Stella parou para rabiscar uma errata no contrato, mastigando a língua enquanto fazia isso. - Cada membro de guilda pega a missão que quiser dentro de sua própria organização, e parte do pagamento dela, oferecido por quem a registrar no conselho, vai para a própria guilda, fazendo com que ela consiga comprar novas missões. Com o tempo, teoricamente ela consegue mais reconhecimento, conseguindo entre outras coisas atrair as raras missões encaminhadas, que seriam oferecidas diretamente para a guilda. Esse crescimento é extremamente importante para a manutenção dela, mas irei entrar nesses detalhes depois. Qual é a sua idade? - Ela levantou a cabeça, esperando a resposta de Dalan. O garoto se assustou, ainda absorvendo toda aquela informação, mas tentou balbuciar rapidamente a resposta.

 - D-dezenove.

 - Certo. - Ela anotou a idade no contrato. - Você possui controle de Yullian? - A Yullian era uma substância rara e misteriosa que garantia habilidades extraordinárias ao usuário. Era tão importante para a guerra que a maior parte dos chamados Yullianos era convocada diretamente para o fronte.

  - Sim. - Respondeu Dalan.

 - Ela é natural, você controla, deriva de um item especial.... - Ela estreitou os olhos, juntou os lábios e inclinou minimamente a cabeça, balançando as mãos em movimentos circulares enquanto aguardava a resposta.

 - Natural. - Disse casualmente o garoto, encarando uma corrente que mudava de cor.

 - Excelente. - Disse ela, riscando uma marca no contrato. - Eu não sei se você sabe, mas nascer com a Yullian é bem raro entre nós, humanos. - Dalan apenas acenou positivamente com a cabeça, observando os elos mudarem lentamente de verde para amarelo. - Só que, em nosso ramo de trabalho, nascer com a Yullian é quase um pré-requisito. Quase, visto que temos membros em nossa guilda que vão contra essa tendência. - Ela girou o contrato habilmente com uma das mãos, empurrando-o para Dalan. - Tome.

 - O que é isso? - Perguntou o garoto, finalmente desviando sua atenção da corrente. No papel havia uma série de tópicos com porcentagens monetárias e suas destinações.

 - Nosso sistema financeiro. Temos a política de detalharmos o pagamento para os novos membros, de modo a evitar confusões. - Stella se inclinou, apontando para o topo do papel. - Como você vê aqui, há o salário mínimo de quinhentos e cinquenta tenes mensais. - Dalan não conseguiu conter um olhar de descontentamento. Sua família costumava faturar mil e trezentos tenes, e viviam à margem da pobreza. Stella captou seu olhar e acrescentou rapidamente: - Claro, nenhum membro de guilda se contenta com o mínimo. Por isso fazemos missões. Você receberá trinta por cento do pagamento delas, uma taxa condizente com as outras guildas ao redor do Mar de Cellintrum, assim como manterá qualquer bonificação extra. Aqui... - Ela apontou para os tópicos. - ... você poderá ver aonde os setenta por cento restantes irão. Manutenção, compra de novas missões, está tudo aí. - Dalan passou os olhos pelas palavras, e aceitou o que viu. Percebeu a possibilidade de ter sido mal compreendido pela outra mulher, e rapidamente se pôs a falar.

 - Eu... não quis dizer nada de mal. Não estou nessa pelo dinheiro. - Disse ele, sentindo o rosto se pintar levemente de vermelho. Stella ofereceu um olhar calmo e um sorriso aquietante, e voltou a puxar o contrato para si.

 - Somos uma guilda pobre, Dalan. Não irei negar isso. - Ela virou a página, chegando à final. - Agora, eu gostaria de saber uma coisa muito importante. - Stella se ajeitou na cadeira e encarou fundo nos olhos do garoto, que quase desviou o olhar. - Qual é o motivo de estar entrando em uma guilda? Especificamente na Aurora. Sendo bastante sincera, há diversas outras guildas mais ao norte que são muito mais estáveis do que a nossa. Por que nós?

 - Eu... - Dalan se sentiu desconfortável com aquela seriedade repentina, e afastou minimamente o corpo.

 - Eu preciso perguntar isso, Dalan. - Sua voz estava mais reconfortante, mas os olhos azuis-claros continuavam sérios e frios. - Várias pessoas já entraram aqui em busca de dinheiro fácil, mesmo que seja pouco. Precisamos saber se você não é uma dessas. E além disso, deve haver um motivo para ingressar nessa carreira tão arriscada. Se quiser entrar, precisamos te conhecer antes.

 Dalan respirou fundo, conseguindo manter o olhar. Os últimos dias voltaram à sua mente, e ele se lembrou do motivo de sua jornada. Algo brilhou no fundo de seus olhos, e ele retribuiu o olhar sério de Stella. Só esperava que ela acreditasse. - Você conhece o arquipélago de Gamora?

 Algo passou pelos olhos de Stella, como se ela tivesse se lembrado de algo feliz. No entanto, logo em seguida a tristeza mascarou seu olhar. - Sim, eu... passei lá. Faz quase vinte anos.

 - Eu nasci lá. - Dalan respirou fundo antes de continuar, sentindo o coração bater forte. Havia pensando nas palavras durante toda sua jornada até Helleon, mas elas de repente haviam sumido, restando apenas uma simples frase. - O arquipélago inteiro sumiu. - Disparou ele, ofegante.

 Stella estreitou os olhos e movimentou a cabeça um pouco para trás. - ... Sumiu? - Perguntou ela, com a voz cuidadosa.

 - Eu sei que parece bizarro. - Disse Dalan, com a voz cada vez mais aguda e veloz. - Só que você tem que acreditar em mim. Meus pais me mandaram fazer uma entrega em Gorla, no continente. Quando eu voltei para Gamora, ela não estava mais lá!

 - Você tem certeza que navegou para o lugar certo? - Perguntou Stella, inclinando a cabeça.

 - Sim! - A voz de Dalan se elevou, e ele se controlou forçadamente. Perguntaram a mesma coisa em Gorla,  e acabaram por zombar dele. Era vital que Stella acreditasse nele. - É sério! Faço essa viagem desde que completei quinze anos, e nem uma vez errei o caminho! Gamora realmente sumiu do mapa! - Ele percebeu que estava segurando os braços da cadeira com tanta força que a madeira chegava a estalar. Respirou fundo e deixou a cabeça pender, sentindo pequenas poças de lágrimas se juntarem ao redor dos olhos. Passara tanto tempo na viagem que havia praticamente esquecido a força daquela constatação. Era como se inconscientemente acreditasse que tudo estaria resolvido quando chegasse em Helleon, deixando que a dura realidade o acertasse naquela sala apertada.

 Stella ficou em silêncio, entrelaçando os dedos e utilizando-os de apoio para o queixo enquanto franzia as sobrancelhas para Dalan. Finalmente ela falou, fazendo com que o garoto levantasse a cabeça. - Bem, isso é bastante sério. Não me lembro de terem noticiado isso em nenhum lugar, então devem haver forças ocultas nessa história. Precisamos pesquisar isso.

 - Você... acredita em mim? - Perguntou Dalan, sem conseguir acreditar.

 - Seus olhos não mentem, querido. - Respondeu ela, oferecendo um olhar caloroso. As lágrimas quase voltaram ao rosto do garoto, mas ele limpou-as com as costas da mão. - Imagino que você queira descobrir o que aconteceu. - Continuou Stella.

 - É por isso que quis entrar na Aurora. - Disse ele com a voz grogue. - Com os contatos certos, poderei saber a verdade.

 - Bem, para isso precisaremos crescer um bocado. - Acrescentou ela, se ajeitando na cadeira. - No entanto, minha outra pergunta continua. Por que a Aurora? Digo, outras guildas maiores poderiam solucionar seu problema de forma mais rápida, mesmo que quisesse entrar em uma delas.

 - Eu... pensei nisso. - Ele começou a coçar o pescoço, parecendo desconfortável. - Só que não acho que conseguiria entrar em uma guilda grande, e não tenho dinheiro para pagar uma missão desse nível. Além do mais... um homem da Aurora me salvou quando era criança. Ele me disse para procurar essa guilda caso tivesse problemas.

 - E qual era o nome dele? - Perguntou Stella, subitamente tensa. Era como se soubesse a resposta.

 - Adam. Adam Alba. - Respondeu Dalan.

 - Oh. - Disse Stella, e sua expressão imediatamente desvaneceu, e as rugas voltaram a pontuar seus olhos. Ela respirou fundo, soltando um sorriso sem emoção. - Ele era meu marido. Costumava dizer esse tipo de coisa para todos que encontrava. Ele... morreu há dois anos. - Completou, desviando o olhar, passando a mão pelos cabelos ondulados.

 - Eu... sinto muito. - Gaguejou o garoto, sem saber exatamente o que dizer.

 - Não se preocupe. - Stella voltou a sorrir, mas novamente não havia emoção no gesto. - Agora, sobre sua ilha... - Ela suspirou e passou novamente a mão pelos cabelos, apoiando os cotovelos na mesa enquanto encarava o contrato. - Não vou mentir e dizer que será fácil. Precisaremos de bastante poder político para pesquisar algo que está claramente escondido. Se um arquipélago inteiro sumiu e ninguém falou nada, está claro que há manipulação externa. Só que, para conseguirmos essa influência, precisaremos crescer. E, visto o estado atual da guilda... - Ela atravessou a sala com os olhos. - ... isso demorará. Quanto tempo eu não sou capaz de dizer, mas preciso de sua compreensão. Eu e meu marido fundamos essa guilda para realizar os sonhos de outras pessoas, ser a aurora em suas noites escuras. Acredite, como membro da Aurora, sua busca será a nossa busca. Estamos entendidos?

 Ela encarava Dalan com um olhar ardente, e isso conseguiu transbordar na alma do garoto. A excitação em fazer parte daquilo, de lutar pelos seus sonhos e finalmente ter um caminho a tomar acenderam uma chama em seu peito. Ele concordou levemente com a cabeça, e Stella sorriu.

 - Ótimo, agora só precisamos --

 - SAMUEL SAIU? - Houve um estrondo na porta, e uma voz feminina e aguda encheu o pequeno aposento, fazendo com que Stella e Dalan saltassem. O jovem se virou e percebeu uma garota da sua idade, com longas maria-chiquinhas azuis-claras que saiam do lados da cabeça e desciam até a altura das costelas inferiores. Ela tinha um rosto fino e delicado, com o nariz pequeno e arrebitado. Seus grandes olhos tinham a mesma cor do cabelo, e eram acompanhados por sobrancelhas baixas, dando um olhar de seriedade eterna. A garota era magra e tinha uma pele bem branca, e vestia um colant predominantemente preto que cobria o corpo inteiro, decorados com duas linhas em branco que subiam da região do baixo-ventre e subiam até os ombros em formato de V, e entre elas o tecido era pintado do mesmo azul-claro dos cabelos dela. - SÉRIO MESMO?

 - Sasha, eu estou com alguém no escritório. - Disse Stella, encarando a garota com a cabeça baixa. Sua voz transpirava ordem, mas Sasha não se importou.

 - Ele disse que iria ficar. Disse que meu pai havia sido muito importante para ele abandonar a guilda. - Ela respirou fundo, e seus grandes olhos ficaram cheios de raiva. - Maldito traidor.

 - Sasha, Samuel era um homem movido pela ganância. - Disse Stella, e era visível que suas palavras traziam dor. - A amizade dele com seu pai era a única coisa que o mantinha debaixo deste telhado. Francamente, fico surpresa que tenha ficado tanto tempo. - Era claro que isso não era suficiente para Sasha.

 - Eu vou atrás dele. - Disse ela, ficando vermelha. - Vou atrás dele e obrigá-lo a voltar de joelhos.

 - Sasha, por que ao invés de brigar com águas passadas, não dá boas-vindas ao nosso novo membro? - Stella acenou para Dalan, que se encolheu instintivamente por trás da cadeira. Havia algo no olhar reprovador de Sasha que faria qualquer pessoa tremer.

 - Ele? Você pretende substituir Samuel por... ele? - Ela escaneou novamente Dalan com seus grandes olhos azuis, parecendo atravessar até mesmo a cadeira que bloqueava a maior parte do corpo do garoto. - Você só pode estar de brincadeira.

 - Sasha... - Começou Stella com a voz reprovadora, mas a filha pareceu ignorá-la.

 - Já não temos pessoas improdutivas o suficiente por aqui? - Falou a garota, se virando para a mãe. - Acha mesmo que vamos conseguir crescer assim? Noventa por cento da guilda fica de braços cruzados no salão enquanto espera o pagamento mínimo, ou faz uma missão vagabunda que não vai nos ajudar em nada! Pelo menos Samuel fazia missões decentes!

 - O que quer dizer com isso, garota? - Perguntou Stella, franzindo as sobrancelhas. Sasha se virou com Dalan, que se encolheu novamente.

 - Ele tem que provar seu valor. Se... se conseguir me derrotar poderemos trazê-lo. - Ela encarou o garoto com uma expressão completamente séria, como se Dalan tivesse feito algum mal terrível.

 - Que eu me lembre, eu sou a Mestra de Aurora. E essa guilda agirá do jeito que eu quiser. - Disse Stella, elevando a voz a cada palavra. Sasha se virou novamente para a mãe.

 - Essa guilda é tanto responsabilidade minha quanto sua! - Gritou ela também. - Desde que o papai se foi, só temos perdido força e membros!

 - E ACHA QUE EU NÃO SEI DISSO? - Vociferou Stella, se levantando bruscamente. O tinteiro da mesa se derramou, lançando seu conteúdo pela superfície. Dalan se encolheu, se sentindo terrivelmente deslocado. Atrás dele, Sasha não recuou.

 - Então prove. Pare de agir sem pensar e considere suas ações. Faça algo pela guilda ao invés de qualquer um que atravessa a rua. - Ela lançou um olhar demorado na direção de Dalan, que desta vez conseguiu retribuir. - Estarei te esperando nos fundos.

 Sasha bateu a porta com força, derrubando a corrente que mudava de cor. Stella ficou ainda algum tempo em pé, bufando, até que deslizou para voltar à cadeira. - Aquela garota às vezes me deixa à beira de um ataque cardíaco... mas o pior é admitir que ela tem razão. - A mulher encarou Dalan com um olhar de pesar demorado antes de continuar a falar. - Infelizmente estamos com pouquíssimos recursos, querido. Não conseguiremos aguentar mais três meses sem alguém mais... ativo. Por isso, entendo a proposta da minha filha de testar sua força.

 - Eu... entendo. - Respondeu Dalan, voltando à familiar posição de não saber o que falar. Stella apenas sorriu.

 - Ei. Não precisa se preocupar. Quem irá dar a palavra final serei eu, não importa o quanto ela grite. - A mulher ofereceu outro de seus sorrisos calorosos, que conseguiu acalmar Dalan. - Agora é melhor irmos. Quanto mais cedo decidirmos isso, melhor.

 Dalan se levantou com a mente a mil. Stella não havia dito, mas estava claro que precisava se esforçar para conquistar seu lugar na Aurora. Se quisesse reencontrar sua família e seu lar, precisava dar o seu máximo. Precisava fazer isso para seguir em frente.

 E havia o pior tipo de adversário em seu caminho. Uma garota irritada.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

RN Nuzlocke Y - Capítulo 2: Companhia

RECINTO NERD NUZLOCKE - Y - 
CAPÍTULO 2: COMPANHIA

 O trio andava pelo Caminho de Vaniville, uma rota em linha reta, cercada de flores e árvores altas, perfumando o ar à volta. Calem e Shauna iam na frente, conversando de forma efusiva, enquanto Kari andava um pouco mais atrás. A garota estava distraída, com os olhos desfocados e expressão cabisbaixa, e demorou um pouco até perceber que estava sendo chamada.

 - Kari... Kari! - A voz de Shauna a fez estancar, piscando os olhos com força, como se tivesse acabado de acordar.

 - O-o que foi? - Perguntou ela. Os dois estavam parados a sua frente, encarando-a de forma preocupada.

 - Você... você está bem? - Ela olhou para Calem, e pelo visto estavam conversando sobre a garota. -  Digo, sobre a amnésia e tal... - Disse Shauna, diminuindo a voz conforme falava. Calem não tirou os olhos de Kari, mas a preocupação pareceu genuína.

 - Eu... eu não sei. - De fato, se sentia horrível. Sua mente era um espaço predominantemente branco, e mesmo as partes preenchidas não ofereciam a ela nenhuma resposta, apenas perguntas sobre como vieram parar ali. Sentia como se estivesse em um sonho, e toda vez que tentava reafirmar a realidade, sentia um pavor terrível. Não sabia onde estava nem quem era. Não possuía uma identidade. No entanto, não se sentia à vontade de compartilhar isso com os outros dois.

 - Ei, não se preocupe. - Disse Shauna de forma doce, parecendo adivinhar o que se passava através da expressão de Kari. - Tenho certeza de que você vai recuperar sua memória. É apenas uma questão de tempo. - Ela parecia genuinamente preocupada, percebeu Kari. Com isso, aliviou um pouco as feições.

 - Além do mais... - Começou Calem. - Nós dois vamos estar aqui para qualquer coisa que precisar. - Ele sorriu, e Kari se sentiu obrigada a retribuir o sorriso. Se sentindo um pouco mais leve, acompanhou os dois até finalmente chegarem a Aquacorde.

 Aquacorde era uma cidade pequena, e transpirava uma sensação de imensa tranquilidade. O chão, até onde Kari conseguia enxergar, era ladrilhado e composto de cores simples, assim como as casas e outros edifícios. Havia também uma grande fonte, visível até mesmo do inicio da cidade, assim como um rio ao norte, completo com uma ponte de pedra por cima.

 O bairro em que o trio entrou era recheado de restaurantes, e quase todos continham grandes áreas externas. O cheiro doce do ar acentuava o clima de tranquilidade ali, e os três andaram de forma lenta, apreciando a simplicidade dos prédios e da cidade. Finalmente, avistaram um pequeno restaurante com cadeiras acolchoadas e mesas de metal na área externa, onde duas pessoas acenavam para Calem e Shauna.

 - Aqui! Shauna! Calem! - Disse um garoto grande, com barriga avantajada e pele clara. Ele vestia uma camisa preta com uma estampa de um Vanillite, assim como uma calça laranja que ia até os calcanhares. O garoto parecia careca, mas usava uma touca pontuda na cabeça, mascarando a calvície e acentuando o rosto de bebê. Havia outra pessoa ao seu lado, muito menor do que o grande amigo. Ele era ruivo, e usava um corte de cabelo que envolvia toda a cabeça, deixando um pequeno espaço para o rosto, cercado por quase todos os lados de cabelo. Ele usava uma colete verde por cima de uma camisa branca, e carregava uma mochila de um verde mais forte nas costas. Shauna correu até eles, abraçando-os. Quando Kari e Calem chegaram, ela já estava envolvida em uma conversa.

 - ... nossa, eu não consigo nem esperar por essa jornada! Já imaginou, conhecer toda Kalos? Imagina quantas fotos e memórias você... AH! - Ela parou de falar quando Kari se aproximou, parecendo ter esquecido completamente da garota. - Gente, mil perdões! Essa é a Kari... Corlux, não é? Nós a conhecemos em Vaniville.

 - Prazer. - Disse o garoto ruivo. Kari percebeu que ele segurava um pequeno tablet na mão, e parecia estar envolvido em sua leitura. - Meu nome é Trevor.

 - E o meu é Tierno! - O garoto gordo se levantou, cumprimentando Kari com um aperto de mão. Para alguém tão grande, percebeu a treinadora, ele se movia de forma bastante leve. Ela sorriu de forma desajeitada, sem saber exatamente o que dizer. Por sorte, foi salva por Calem.

 - Vejo que já se esqueceram de mim, não é? - Disse ele sorrindo, e se sentou em uma cadeira. Kari o acompanhou, juntando as pernas e colocando as mãos sobre os joelhos. Tierno começou a falar, parecendo agitado demais para ficar sentado.

 - Gente, acho que nunca estive mais preparado na minha vida. Acreditem, vocês verão outro Tierno daqui a alguns meses. - Ele fechou o punho, e seus olhos brilharam.

 - Até parece. - Respondeu Calem de forma zombeteira. - Um cara que nunca saiu da própria cidade tem mais chance de cair e bater a cabeça na primeira árvore que encontrar do que encontrar o caminho certo. Shauna se adiantou, encarando os amigos com um rosto sorridente.

 - Ei, se lembram quando Tierno pulou na fonte da cidade porque nós falamos que tinha uma Galvantula nas roupas dele? - O quarteto começou a rir, e Kari tentou acompanhá-los, sorrindo de forma desajeitada. Naquele momento desejou fortemente um copo para ocupar as mãos. Shauna pareceu perceber a presença dela novamente, e ficou desconcertada.

 - Ah, Kari, você... - Ela olhou para os outros, procurando as palavras. Felizmente, Tierno começou a falar.

 - Kari é um nome muito simples. - Disse ele, coçando o queixo e encarando o céu. - Que tal... um apelido? Algo mais chamativo.

 - Aah... não, obrigada. - Respondeu ela, acenando negativamente com as mãos abertas e fechando os olhos. - Só Kari está bem. Acredite.

 - Bem, é a sua escolha. - Ele abaixou e retirou uma mala debaixo da mesa, colocando-a na superfície metálica. - Trouxe o que vocês pediram. Por sorte tenho um terceiro, para nossa nova companheira.

 Calem e Shauna se adiantaram, e Tierno abriu a mala. Dentro, haviam três Pokébolas, acomodadas no material acolchoado. Vê-las daquele jeito fez uma lembrança piscar na mente de Kari, em que três Pokébolas estavam em uma bandeja em um laboratório. Isso durou um segundo, no entanto, e logo ela voltou a esquecer.

 - Ah... eu escolho primeiro! Eu escolho primeiro! - Shauna enfiou a mão na mala rapidamente e pegou uma Pokébola, segurando-a perto do peito. Calem, mais calmo, selecionou a sua, sobrando uma. Tierno incentivou Kari com um aceno da cabeça, e ela esticou a mão, agarrando a esfera.

 Instintivamente ela lançou a Pokébola no chão, e um Pokémon saiu de dentro dela. Um pequeno sapo azul, chamado Froakie, se libertou, encarando os humanos ao redor com um olhar sério, até identificar Kari como sua treinadora. Ele a encarou sem piscar, mantendo a expressão focada, deixando a garota extremamente desconfortável.

 - Ahn... - Ela olhou ao redor. Shauna acariciava seu Fennekin enquanto Calem se ajoelhava perto de seu Chespin. Kari decidiu tentar se aproximar de seu Pokémon, se aproximando dele. - Meu nome é Kari. Qual é o seu?

 - Frog. - Respondeu o Froakie, continuando a encará-la sem piscar. - Você não me transpira confiança.

 Ah, que ótimo, pensou a garota. Ela revirou os olhos, sentindo a situação extremamente familiar. Trevor se levantou e começou a distribuir pequenas pulseiras para o trio.

 - Essa é uma Pokédex. Ela será útil para manter um registro de cada Pokémon capturado por vocês, ao mesmo tempo que também servirá para batalhar. Isso se quiserem se afastar do objetivo que o professor Sycamore nos deu.

 - Fale o que quiser, Trevor, eu irei lutar bastante com essa coisa. - Disse Calem, prendendo o objeto no pulso. O garoto ruivo se virou para Kari, estendendo a pulseira.

 - Shauna me contou sobre sua situação. Não se preocupe, falei com o professor, ele conseguiu falar com uns superiores e resolver a questão de forma bastante rápida. - Kari pegou a pulseira, e logo depois Trevor lhe estendeu um cartão. - Isso é um Trainer ID. Ele servirá para registrar seus Pokémon em sua posse, manter uma conta bancária e funcionar como uma identidade. - A garota girou o objeto nas mãos. Percebeu seu rosto no metal plastificado, como em uma foto três por quatro.

 - Espere. Como ele conseguiu uma foto minha? - Trevor deu de ombros.

 - Isso você terá que perguntar a ele. Só há uma coisa a mais... - Ele mostrou uma carta, selada com um carimbo vermelho. - Você pode entregar isso para a senhorita Luco em Vaniville? O professor fez questão de pedir isso para você.

 - C-claro. - Disse Kari, recolhendo a carta. De algum modo, toda aquela situação com a Pokébola e o Trainer ID lhe eram extremamente familiares, colocando-a em um pequeno torpor. Calem se levantou, encarando o horizonte.

 - Acho que iremos começar nossa jornada. Que conquistemos nossos objetivos. - Os outros sorriram, mas desta vez a garota não os acompanhou. Não tinha nenhum objetivo.

 O quarteto saiu do restaurante em uma conversa animada, e Kari hesitou em se despedir. Tentou tomar o caminho para Vaniville de fininho, sem saber exatamente como agir. A fala ficou presa em sua garganta enquanto o grupo se afastava cada vez mais, mas ela não soube qual era. Quando finalmente se virou para retornar à cidade ao sul, ouviu seu nome ser gritado.

 - Kari! - Era Shauna, correndo até a garota. Kari se sentiu estranhamente aliviada ao ver a outra se aproximando, e sorriu levemente. - Que tal uma batalha para começarmos a nossa jornada com o pé direito?

 - Ah... certo. - Se atrapalhou Kari, olhando para baixo. Seu Froakie continuava a seguí-la, silencioso como uma sombra. A treinadora verificou a Pokédex no pulso, e um pequeno menu surgiu na tela. - Preparada?

 - Como nunca. - Respondeu Shauna, com um grande sorriso no rosto. - Vá, Fennekin! - Seu Pokémon correu para frente rapidamente, esticando a pata para arranhar o rosto de seu adversário, que recuou com o impacto.

 - Ah, saco. - Disse Kari, parando de pensar. Seus dedos se movimentaram pela Pokedéx e sua voz saiu da sua boca, muito mais firme do que antes, guiados por uma força superior, que era mais rápida do que o pensamento. - Conquiste terreno e ataque, Frog!

 Seu Pokémon saltou para longe, ficando em cima de uma grade negra que demarcava a área externa do restaurante em que estavam. Quando se empoleirou, ele soltou uma rajada de bolhas da boca, acertando o Fennekin.

 O Pokémon de Shauna reagiu, se aproximando da grade. Kari mandou o Froakie saltar por cima do adversário, e em pleno ar acertá-lo com uma nova rajada de bolhas. O Fennekin conseguiu se virar a tempo e disparou uma labareda, se encontrando com o outro golpe. Chamas e água espirrada voaram para todos os lados, conseguindo acertar seus alvos.

 - Ai, ai... - Disse Shauna, se embolando com sua Pokédex. O Fennekin disparou para frente em direção ao Frog, mas o Froakie conseguiu dar um passo para o lado, fazendo com que apenas o rabo do adversário deslizasse sem perigo por seu corpo. O Pokémon de Shauna fincou os pés no chão para cessar o movimento, mas antes que parasse completamente Frog se adiantou, derrubando-o com um soco. A batalha havia acabado.

 - Uau. - Disse Shauna baixinho, recuando seu Pokémon para a Pokébola. - Isso foi... incrível! - A emoção voltou ao seu rosto, e ela abriu um grande sorriso. - Kari, você foi demais!

 - Sério? - Perguntou a garota, parecendo ainda alheia à partida, como se tivesse acabado de acordar de um sonho.

 - Sério! Caraca, eu só tinha visto os profissionais lutarem assim! Acho que nem Calem conseguiria derrotá-la! E olha que ele treina batalhas Pokémon desde que tinha idade para falar! - Os olhos dela brilhavam, e Kari se mostrou constrangida com a admiração.

 - Aah... que isso. - Ela olhou para o lado e riu, ficando vermelha. Acabou por se despedir de Shauna com um aceno, seguindo com Frog o caminho de volta a Vaniville.

 Mal sabia ela que uma sombra nas árvores acompanhava seus movimentos.