AURORA
CAPÍTULO 4: QUATRO LUAS
O beco era um lugar sujo e apertado. Paredes de tijolos negros se encontravam inconfortavelmente próximas uma da outra, presas a um chão ladrilhado e levemente irregular. Os prédios altos em volta impediam que a luz do sol chegasse com toda sua força, tornando a água fétida no piso terrivelmente gelada. Um pé pisou com força na poça, respingando as gotas fedidas por todas as direções. Dalan sequer se importou, correndo para não perder seu alvo de vista. Dobrou a esquina, apressado, mas acabou por perder o rastro do animal que perseguia.
Ofegante, ele se sentou na calçada para recuperar o fôlego, soltando os braços por cima dos joelhos. O centro da cidade de Helleon possuía os mesmos prédios altos altos da vizinhança onde ficava a sede da Aurora, mas esses eram pelo menos cheios de vida. Vida em sua maioria pobre e em grande quantidade. Todas as construções por perto eram feitas de tijolos, e as ruas eram ladrilhadas com pedras negras, constantemente pisoteadas por animais de carga e comerciantes barulhentos. Mesmo assim, a zona central de Helleon era onde a cidade pulsava, muito diferente do sudoeste, a área abandonada onde ficava a Aurora, e do norte, onde os poucos ricos e membros do governo moravam. O mar banhava aquela parte com grande força, e o comércio portuário mantinha a cidade em pé.
Toda essa agitação acabava por atrapalhar a missão de Dalan. Havia aceitado a tarefa sob o pretexto de que iria procurar algo muito importante que uma mulher, chamada apenas de Senhora Cattuveis, havia perdido. Quando chegou em sua casa, ela revelou o que era: um gato malhado. Dalan havia gastado metade do dia procurando o felino, e finalmente o achou alguns minutos antes. Agora, no entanto, o havia perdido de vista. E o sol começava a se pôr no oeste.
Deveria ter descansado, censurou o garoto a si mesmo. Havia passado dias na estrada antes de chegar em Helleon, e ainda lutara com Sasha de manhã. Parecia que esses acontecimentos estavam semanas longe um do outro, mas seu corpo sabia a verdade. Suas pernas estavam doloridas e o estômago ainda doía dos golpes da garota, principalmente depois de correr. Talvez seja melhor descansar antes de continuar, concluiu ele.
Antes mesmo de fazer menção de se levantar, Dalan sentiu um corpo peludo e quente em sua bochecha direita. Se virou apressado e viu o gato malhado o encarando de forma mau-humorada, agarrado pela pele atrás do pescoço. Ele levantou a cabeça e percebeu que havia uma garota atrás dele. Reconheceu-a pela boina que usava como uma dos membros da Aurora.
- Oh. - Disse ela, recuando um pouco pelo contato visual. Dalan se apoiou no joelho esquerdo e se levantou, tendo a oportunidade de analisar a pessoa agora à sua frente. A garota era baixa, com um metro e sessenta e poucos, uma cabeça de altura a menos do que Dalan. Era magra e bastante pálida, e aparentava possuir dezoito anos. Estava calçando uma bota de cor rubra e vestia uma calça negra e colada por baixo de uma saia vermelha presa por um cinto escuro. Também usava uma camisa branca e uma jaqueta vermelha, aberta no meio. Suas roupas pareciam torná-la menor do que realmente era. No entanto, o que mais chamava atenção era seu rosto. Tinha olhos grandes e verdes, juntos com um nariz pequeno e arrebitado. Seus lábios eram finos e com uma bela cor rosa natural. Seu cabelo era liso e loiro-sujo, assim como as sobrancelhas caprichadas, e desciam próximos do rosto até chegar ao queixo. Sua boina completava a visão, vermelha como a camisa. A garota pareceu assustada, desviando os olhos para o lado enquanto ajeitava uma mecha do cabelo para trás da orelha com a mão livre. - E-eu... você é o garoto novo, não é? - Perguntou ela com a voz suave.
- Eu... sou! - Disse Dalan, recobrando a consciência, perdida com o rosto angelical da pessoa à sua frente. Ele pensou um pouco e estendeu a mão. - Meu nome é Dalan. Dalan Glacius.
- Ah... Sophie Helder. - Ela segurou brevemente a mão do garoto e agarrou o gato com as duas mãos, segurando-o à frente de seu peito. - Você pegou a missão da senhora Cattuveis, não foi? - Ela levantou minimamente o gato até a altura do rosto, e apenas seus olhos eram visíveis através do felino.
- Foi... era para pegar esse bichano. - Respondeu ele, apontando para o bicho. Quem diz "bichano" hoje em dia, se censurou Dalan imediatamente, franzindo levemente o rosto. Sophie esticou o animal até ele, que tentou segurá-lo. O gato se agitou e quase se soltou, mas o garoto o agarrou com os braços para impedir sua fuga. Sophie também agiu por reflexo, e acabou segurando o braço do rapaz. Ela rapidamente recolheu as mãos, ficando vermelha.
- Eu... eu vi ele correndo pela rua, e imaginei que alguém da guilda estava procurando por ele. - Começou Sophie, desviando o olhar e ajeitando o cabelo. - Não é a primeira vez que a senhora Cattuveis pede por uma missão assim. Imaginei que... imaginei que você fosse precisar de ajuda... digo, não que eu não achasse que você precisar! - Acrescentou ela rapidamente, agitando as palmas para Dalan enquanto arregalava os olhos e ficava ainda mais vermelha. - É só que eu sou... sou boa com animais!
- Na verdade eu provavelmente não conseguiria. - Admitiu o rapaz, cansado. - Tive uma semana longa, e esse gato corre muito rápido. - Ele inclinou minimamente a cabeça, franzindo o lado direito do rosto. Em suas mãos, o gato tentou uma nova fuga.
- Ah. - A garota o encarou com seus grandes olhos. - Nós... nós estávamos indo jantar no bar Quatro Luas. Tivemos um dia difícil... - Ela voltou a encarar o chão, e Dalan se lembrou do homem que havia saído da guilda mais cedo. - .. mas... se quiser vir com a gente... - A voz de Sophie se tornou mais aguda conforme o fim da frase ia chegando, e o garoto notou que ela fez um meio círculo com a perna direita por trás da esquerda, apoiando-a com a ponta do pé.
- Eu... eu posso. - Disse o rapaz, surpreso pelo convite. - Acho que eu vi esse bar quando passei pelo cais. É um pé-sujo no litoral, não é? - Parte dele esperou estar errado, considerando o estado deplorável do estabelecimento, mas Sophie concordou com a cabeça.
- Então... estou indo para lá, tudo bem? - Ela girou o corpo, fazendo menção de ir. - Eu... digo, a gente vai estar te esperando lá. - Com isso ela saiu, andando apressadamente pela rua. Dalan esperou um pouco para ver se ela se virava, mas isso não aconteceu. Suspirou pesadamente e foi para o outro lado, em direção da casa de Cattuveis.
- Não iria conseguir pegar o gato, não é? - Disse ele para si mesmo com a voz forçadamente aguda. - Que tal da próxima vez falar que não consegue dormir sem uma luz acesa? Isso iria impressionar as pessoas tão bem quanto. - Impediu o gato de fugir novamente e continuou seu caminho.
Acabou chegando no bar meia-hora depois, com a comprovação de conclusão da missão no bolso e uma série de arranhões fundos nos braços. Era realmente um estabelecimento sujo e apertado, com diversas garrafas vazias decorando as paredes. Todos os móveis eram de madeira, e havia um odor impregnado de peixe e álcool em cada um deles. O bar estava razoavelmente cheio, e Dalan ficou procurando os membros da guilda. Eis que uma mão se levantou no meio das pessoas.
- Aqui! - A voz não era conhecida, mas o rosto sim. Era uma das pessoas no saguão da Aurora, o rapaz com trança longa e comprida que descia por detrás de sua cabeça. Ele estava acompanhado em uma mesa redonda por Sophie e sua irmã gêmea, e as duas encaravam Dalan com sorrisos. Satisfeito, embora um pouco nervoso, o garoto desviou de pessoas e objetos para sentar na mesa. - Finalmente uma desculpa para sairmos desse assunto mórbido. - Completou o rapaz das tranças quando o outro se sentou. Ele estava vestindo uma simples camisa preta, que marcava seu corpo forte, porém magro. Seu rosto possuía um nariz um tanto quanto adunco, porém reto. Sua boca era grande e a pele era bronzeada, e para completar seus olhos eram grandes e negros. O cabelo, também da cor do ébano, era penteado para trás e enrolado para formar a já descrita trança, que descia longa por suas costas. Ele encarou Dalan com um sorriso alegre do outro lado da mesa.
- Você acha tão fácil simplesmente ignorar o que aconteceu? - Perguntou a gêmea de Sophie, à sua esquerda na mesa. Ela não vestia boina, e usava uma camisa grossa da cor amarela, completa com pequenos botões brancos. De longe, parecia que a vestimenta era a única coisa que a diferenciava da irmã, mas um olhar mais atento revelasse a maior diferença entre as duas, a expressão. Enquanto Sophie tinha um olhar tímido e contido, sua gêmea mantinha uma expressão aberta, com um toque de severidade embora não fosse necessariamente ameaçadora.
- Koga Sabin, ao seu dispor! - Disse o garoto das tranças, ignorando a outra garota. Ele se esticou por cima da mesa e estendeu a mão para Dalan, esticando as sobrancelhas enquanto aguardava com um sorriso.
- Ah... - Se surpreendeu Dalan, olhando momentaneamente para a irmã de Sophie, que agora fuzilava Koga com os olhos enquanto ficava vermelha. O garoto notou um pouco de maquiagem borrada ao redor de seus olhos. - Dalan Glacius.
- Dalan tem um ar... anão. - Disse Koga, virando o lado direito do rosto para o outro garoto com um sorriso e um franzir da sobrancelha. - E eu tenho certeza de que Glacius é élfico. De onde você veio, Dalan?
- Você é impressionante. - Censurou a outra garota com um sussurro audível enquanto balançava minimamente a cabeça. - Qual é a sua incapacidade de demonstrar alguma emoção pela saída de Samuel? - Perguntou com um tom um pouco mais alto do que antes.
- Estou tentando dar as boas-vindas ao novato, Julie. - Disparou Koga, e sua voz sibilou enquanto ele encarava de forma séria a garota, mesmo com as sobrancelhas esticadas. - Que tal nós simplesmente deixarmos isso de um lado, apenas por alguns instantes, só para oferecer um pouco do velho acolhimento da Aurora? - Não houve resposta, apenas um olhar gélido e demorado por parte de uma cada vez mais vermelha Julie, mas o garoto não esperou resposta. Se virou para Dalan, voltando a mostrar uma expressão alegre. - Então, Dalan. De onde você veio?
- Ah... - Dessa vez ele olhou de relance para Sophie, como se esperasse uma confirmação dela. A garota estava com o rosto virado para ele, mas os olhos pousados em sua irmã. De uma forma ou de outra o silêncio já parecia atingir níveis muito longos. - Sou de Gamora, uma ilha no mar de Cellintrum. Não sei a ascendência exata do meu nome, mas...
- Gamora? - Disse Koga, se inclinando para trás até apoiar as costas na cadeira, cruzando os braços por detrás da cabeça. - Já ouvi falar, mas nunca cheguei nem perto. É verdade que é um recanto de bestas?
- Um pouco. - Admitiu Dalan. - Elas normalmente ficam mais pro interior da ilha. Como eu morava no litoral, não cheguei a encontrar muitos deles. - Novamente, a lembrança de sua casa o fez ficar quieto, e Julie pareceu ter notado.
- Eu... soube o que aconteceu. - Ela o encarou, e estava claro que estavam pensando no mesmo assunto. - Sinto muito. - Disse, esticando a mão para segurar a dele. Dalan sorriu constrangido, tentando parecer melhor do que se sentia.
- Tudo bem. - Ele pensou em retirar a mão, mas o toque era extremamente agradável. - Foi por isso que entrei na guilda. Preciso saber o que aconteceu com minha casa.
- Temos um problema mais ou menos parecido. - Disse a garota, recolhendo sua mão até o queixo, passando a encarar a irmã. - Queremos saber o que aconteceu com nosso pai. Ele desapareceu quando tínhamos sete anos, e desde então... - Ela ficou quieta por alguns segundos, encarando a mesa como se as respostas da vida estivessem talhadas na madeira. - ... desde então nós o procuramos.
- Ah. - Disse Dalan. A atmosfera da mesa rapidamente esfriou, com as gêmeas parecendo melancólicas e Koga, incomodado. Parabéns, disse o garoto sarcasticamente a si mesmo. - Sinto muito.
- Não precisa se preocupar. - Respondeu Julie, tentando trazer a animação de volta à sua fisionomia. - Todos na guilda estão lá por algum motivo, não? É só seguir em frente então. - Koga se movimentou, e quando Dalan o encarou novamente ele já estava com um sorriso no rosto.
- Cacete, gente. Qual a dificuldade de manter a depressão para longe hoje, hein? - Ele se reclinou na cadeira, virando o rosto para o bar. - Ei, Harold! Vê pra gente uns quatro Lunares Extravagantes, por favor! Caprichados!
- Dois, Harold! - Gritou Julie, sorrindo com para Koga. - Você sabe muito bem que eu e Sophie não bebemos essa droga, seu animal.
- O.K, mas o novato bebe, não é? - Ele se virou para Dalan, levantando uma sobrancelha enquanto soltava um sorriso provocativo. - Quer dizer, se quiser seguir o exemplo das garotas, sinta-se à vontade.
- Tudo bem. - Disse Dalan, olhando de relance para Sophie. - Não pode ser mais forte do que as misturebas que fazem nos portos ao norte de Cellintrum.
- Na verdade são. - Disse Sophie, sorrindo timidamente enquanto falava baixinho. - O Dom, lá da guilda, já rodou por todo o mar e disse que o Lunar Extravagante é a coisa mais forte que ele já bebeu.
- Lembrando que Dom é um beberrão e que o bar é cheio justamente por causa dessa bebida em particular. - Acrescentou Julie, cruzando os braços enquanto sorria. - Não são sinais animadores, Dalan.
- Tudo bem, não há problema. - Agora não havia como voltar. - Além do mais, eu sou forte com a bebida. - Mentira.
- Então não tem o que temer. - Disse Koga. - Só vou avisando: não venha me processar depois. Está avisado de que essa bebida é bem pesada. - Ele colocou as palmas na frente do peito, como se estivesse se protegendo.
- Agora é você que parece querer desistir. - Zombou Dalan, se inclinando na mesa. - Sophie e Julie olharam para os rapazes com sorrisos no canto das bocas.
- Novato, considere isso seu trote. - Um homem barbudo chegou na mesa, depositando dois copos na madeira. Dentro deles havia uma substância azul com brilhos brancos, densa o suficiente para não ser transparente. - Só estou com medo de você não achar o caminho de casa pra Aurora.
- Veremos. - Dalan pegou o copo e brindou com Koga, bebendo-o em seguida.
Na cena seguinte, ele se viu em cima de uma substância irregular, cheia de pequenas pedrinhas que pinicavam seu corpo. Havia uma dor de cabeça que parecia furar seu crânio, e qualquer movimento parecia amplificá-la. Dalan levou a mão aos olhos, pressionando-os fracamente com os dedos.
- Você acordou! - Disse uma voz baixa, e ele abriu os olhos com dificuldades. Demorou um pouco para focalizar o céu estrelado acima de si, e muito mais para notar o rosto sorridente de Sophie contra às luzes.
- O... o que houve? - Perguntou ele com a voz grogue, tentando se levantar de forma lenta. A garota o ajudou a se sentar, e Dalan notou que estava em cima de areia. Uma olhada ao redor o fez perceber que estava em uma praia, e havia um baú ao seu lado.
- Bem, você bebeu. - Disse Sophie, sorrindo com a cabeça inclinada. - Depois do primeiro copo veio o outro, e no quarto Koga e você decidiram caçar tesouros. Acho que tinha alguma coisa a ver com piratas. Cada um foi correndo pra fora do bar, e eu te encontrei aqui depois de algumas horas.
- De onde veio o baú? - Perguntou ele, mas Sophie apenas deu de ombros. Ela continuava a sorrir abobalhada. - O que é tão engraçado?
- Ah, nada! - Ela começou a corar, desviando o olhar. O sorriso, no entanto, se mantinha em pé. - Só que... bem, foi bastante engraçado. Geralmente Koga fica bêbado sozinho, e isso geralmente termina com ele chapado na mesa. Acho que uma pessoa a mais torna tudo mais divertido.
- Imagino. - A dor de cabeça já começava a diminuir, mas Dalan continuava se sentindo fraco. - Onde ele está?
- Não sei. Julie foi atrás dele, e eu fui te procurar. - Ela esticou a mão, ajudando-o a se levantar. Logo depois Sophie ficou vermelha, falando rapidamente. - Quero dizer, normalmente é Julie quem sabe por onde Koga se esconde, e achamos melhor garantir que você voltasse pra guilda, e...
- Tudo bem. - Tranquilizou Dalan, cansado. - Foi a melhor coisa a se fazer. Agora, se não se importa, vamos pra guilda. - Eles começaram a andar pela areia, indo em direção à cidade. Quando voltaram a pisar nas pedras negras, Sophie parou, quebrando o silêncio.
- Dalan, é verdade que você já foi um pirata? - Perguntou ela. Dalan se virou, percebendo o olhar de admiração dela, com as pálpebras esticadas. Por um momento o garoto pensou em conservar a mentira, mas a voz da consciência o fez repensar a ação.
- Sophie, uma dica para o futuro: - Ele mostrou o indicador, como se a ação validasse suas palavras. - Nunca acredite em nada do que eu digo bêbado.
- Ah. - Os dois recomeçaram a andar, duas figuras solitárias na rua vazia. O sol começava a subir, iluminando o caminho. Dalan quase tropeçou, sendo salvo pelo braço de Sophie, que o agarrou pelo pescoço.
- Obri... - Ele a encarou, e percebeu seu rosto incrivelmente vermelho. No momento seguinte ela acabou o soltando, e o garoto caiu com a cara nas pedras.
- Me desculpa, me desculpa, me desculpa! - Repetiu Sophie, mas a consciência de Dalan voltou a se esvair. Não esperava que seu primeiro dia na Aurora fosse acabar assim, caído na sarjeta da cidade. Seu orgulho tentou buscar forças do além, bombeando energia para o corpo. No entanto, o cansaço finalmente o tomou, e ele desmaiou. Sophie, ao seu lado, continuava disparando desculpas.
Toda essa agitação acabava por atrapalhar a missão de Dalan. Havia aceitado a tarefa sob o pretexto de que iria procurar algo muito importante que uma mulher, chamada apenas de Senhora Cattuveis, havia perdido. Quando chegou em sua casa, ela revelou o que era: um gato malhado. Dalan havia gastado metade do dia procurando o felino, e finalmente o achou alguns minutos antes. Agora, no entanto, o havia perdido de vista. E o sol começava a se pôr no oeste.
Deveria ter descansado, censurou o garoto a si mesmo. Havia passado dias na estrada antes de chegar em Helleon, e ainda lutara com Sasha de manhã. Parecia que esses acontecimentos estavam semanas longe um do outro, mas seu corpo sabia a verdade. Suas pernas estavam doloridas e o estômago ainda doía dos golpes da garota, principalmente depois de correr. Talvez seja melhor descansar antes de continuar, concluiu ele.
Antes mesmo de fazer menção de se levantar, Dalan sentiu um corpo peludo e quente em sua bochecha direita. Se virou apressado e viu o gato malhado o encarando de forma mau-humorada, agarrado pela pele atrás do pescoço. Ele levantou a cabeça e percebeu que havia uma garota atrás dele. Reconheceu-a pela boina que usava como uma dos membros da Aurora.
- Oh. - Disse ela, recuando um pouco pelo contato visual. Dalan se apoiou no joelho esquerdo e se levantou, tendo a oportunidade de analisar a pessoa agora à sua frente. A garota era baixa, com um metro e sessenta e poucos, uma cabeça de altura a menos do que Dalan. Era magra e bastante pálida, e aparentava possuir dezoito anos. Estava calçando uma bota de cor rubra e vestia uma calça negra e colada por baixo de uma saia vermelha presa por um cinto escuro. Também usava uma camisa branca e uma jaqueta vermelha, aberta no meio. Suas roupas pareciam torná-la menor do que realmente era. No entanto, o que mais chamava atenção era seu rosto. Tinha olhos grandes e verdes, juntos com um nariz pequeno e arrebitado. Seus lábios eram finos e com uma bela cor rosa natural. Seu cabelo era liso e loiro-sujo, assim como as sobrancelhas caprichadas, e desciam próximos do rosto até chegar ao queixo. Sua boina completava a visão, vermelha como a camisa. A garota pareceu assustada, desviando os olhos para o lado enquanto ajeitava uma mecha do cabelo para trás da orelha com a mão livre. - E-eu... você é o garoto novo, não é? - Perguntou ela com a voz suave.
- Eu... sou! - Disse Dalan, recobrando a consciência, perdida com o rosto angelical da pessoa à sua frente. Ele pensou um pouco e estendeu a mão. - Meu nome é Dalan. Dalan Glacius.
- Ah... Sophie Helder. - Ela segurou brevemente a mão do garoto e agarrou o gato com as duas mãos, segurando-o à frente de seu peito. - Você pegou a missão da senhora Cattuveis, não foi? - Ela levantou minimamente o gato até a altura do rosto, e apenas seus olhos eram visíveis através do felino.
- Foi... era para pegar esse bichano. - Respondeu ele, apontando para o bicho. Quem diz "bichano" hoje em dia, se censurou Dalan imediatamente, franzindo levemente o rosto. Sophie esticou o animal até ele, que tentou segurá-lo. O gato se agitou e quase se soltou, mas o garoto o agarrou com os braços para impedir sua fuga. Sophie também agiu por reflexo, e acabou segurando o braço do rapaz. Ela rapidamente recolheu as mãos, ficando vermelha.
- Eu... eu vi ele correndo pela rua, e imaginei que alguém da guilda estava procurando por ele. - Começou Sophie, desviando o olhar e ajeitando o cabelo. - Não é a primeira vez que a senhora Cattuveis pede por uma missão assim. Imaginei que... imaginei que você fosse precisar de ajuda... digo, não que eu não achasse que você precisar! - Acrescentou ela rapidamente, agitando as palmas para Dalan enquanto arregalava os olhos e ficava ainda mais vermelha. - É só que eu sou... sou boa com animais!
- Na verdade eu provavelmente não conseguiria. - Admitiu o rapaz, cansado. - Tive uma semana longa, e esse gato corre muito rápido. - Ele inclinou minimamente a cabeça, franzindo o lado direito do rosto. Em suas mãos, o gato tentou uma nova fuga.
- Ah. - A garota o encarou com seus grandes olhos. - Nós... nós estávamos indo jantar no bar Quatro Luas. Tivemos um dia difícil... - Ela voltou a encarar o chão, e Dalan se lembrou do homem que havia saído da guilda mais cedo. - .. mas... se quiser vir com a gente... - A voz de Sophie se tornou mais aguda conforme o fim da frase ia chegando, e o garoto notou que ela fez um meio círculo com a perna direita por trás da esquerda, apoiando-a com a ponta do pé.
- Eu... eu posso. - Disse o rapaz, surpreso pelo convite. - Acho que eu vi esse bar quando passei pelo cais. É um pé-sujo no litoral, não é? - Parte dele esperou estar errado, considerando o estado deplorável do estabelecimento, mas Sophie concordou com a cabeça.
- Então... estou indo para lá, tudo bem? - Ela girou o corpo, fazendo menção de ir. - Eu... digo, a gente vai estar te esperando lá. - Com isso ela saiu, andando apressadamente pela rua. Dalan esperou um pouco para ver se ela se virava, mas isso não aconteceu. Suspirou pesadamente e foi para o outro lado, em direção da casa de Cattuveis.
- Não iria conseguir pegar o gato, não é? - Disse ele para si mesmo com a voz forçadamente aguda. - Que tal da próxima vez falar que não consegue dormir sem uma luz acesa? Isso iria impressionar as pessoas tão bem quanto. - Impediu o gato de fugir novamente e continuou seu caminho.
Acabou chegando no bar meia-hora depois, com a comprovação de conclusão da missão no bolso e uma série de arranhões fundos nos braços. Era realmente um estabelecimento sujo e apertado, com diversas garrafas vazias decorando as paredes. Todos os móveis eram de madeira, e havia um odor impregnado de peixe e álcool em cada um deles. O bar estava razoavelmente cheio, e Dalan ficou procurando os membros da guilda. Eis que uma mão se levantou no meio das pessoas.
- Aqui! - A voz não era conhecida, mas o rosto sim. Era uma das pessoas no saguão da Aurora, o rapaz com trança longa e comprida que descia por detrás de sua cabeça. Ele estava acompanhado em uma mesa redonda por Sophie e sua irmã gêmea, e as duas encaravam Dalan com sorrisos. Satisfeito, embora um pouco nervoso, o garoto desviou de pessoas e objetos para sentar na mesa. - Finalmente uma desculpa para sairmos desse assunto mórbido. - Completou o rapaz das tranças quando o outro se sentou. Ele estava vestindo uma simples camisa preta, que marcava seu corpo forte, porém magro. Seu rosto possuía um nariz um tanto quanto adunco, porém reto. Sua boca era grande e a pele era bronzeada, e para completar seus olhos eram grandes e negros. O cabelo, também da cor do ébano, era penteado para trás e enrolado para formar a já descrita trança, que descia longa por suas costas. Ele encarou Dalan com um sorriso alegre do outro lado da mesa.
- Você acha tão fácil simplesmente ignorar o que aconteceu? - Perguntou a gêmea de Sophie, à sua esquerda na mesa. Ela não vestia boina, e usava uma camisa grossa da cor amarela, completa com pequenos botões brancos. De longe, parecia que a vestimenta era a única coisa que a diferenciava da irmã, mas um olhar mais atento revelasse a maior diferença entre as duas, a expressão. Enquanto Sophie tinha um olhar tímido e contido, sua gêmea mantinha uma expressão aberta, com um toque de severidade embora não fosse necessariamente ameaçadora.
- Koga Sabin, ao seu dispor! - Disse o garoto das tranças, ignorando a outra garota. Ele se esticou por cima da mesa e estendeu a mão para Dalan, esticando as sobrancelhas enquanto aguardava com um sorriso.
- Ah... - Se surpreendeu Dalan, olhando momentaneamente para a irmã de Sophie, que agora fuzilava Koga com os olhos enquanto ficava vermelha. O garoto notou um pouco de maquiagem borrada ao redor de seus olhos. - Dalan Glacius.
- Dalan tem um ar... anão. - Disse Koga, virando o lado direito do rosto para o outro garoto com um sorriso e um franzir da sobrancelha. - E eu tenho certeza de que Glacius é élfico. De onde você veio, Dalan?
- Você é impressionante. - Censurou a outra garota com um sussurro audível enquanto balançava minimamente a cabeça. - Qual é a sua incapacidade de demonstrar alguma emoção pela saída de Samuel? - Perguntou com um tom um pouco mais alto do que antes.
- Estou tentando dar as boas-vindas ao novato, Julie. - Disparou Koga, e sua voz sibilou enquanto ele encarava de forma séria a garota, mesmo com as sobrancelhas esticadas. - Que tal nós simplesmente deixarmos isso de um lado, apenas por alguns instantes, só para oferecer um pouco do velho acolhimento da Aurora? - Não houve resposta, apenas um olhar gélido e demorado por parte de uma cada vez mais vermelha Julie, mas o garoto não esperou resposta. Se virou para Dalan, voltando a mostrar uma expressão alegre. - Então, Dalan. De onde você veio?
- Ah... - Dessa vez ele olhou de relance para Sophie, como se esperasse uma confirmação dela. A garota estava com o rosto virado para ele, mas os olhos pousados em sua irmã. De uma forma ou de outra o silêncio já parecia atingir níveis muito longos. - Sou de Gamora, uma ilha no mar de Cellintrum. Não sei a ascendência exata do meu nome, mas...
- Gamora? - Disse Koga, se inclinando para trás até apoiar as costas na cadeira, cruzando os braços por detrás da cabeça. - Já ouvi falar, mas nunca cheguei nem perto. É verdade que é um recanto de bestas?
- Um pouco. - Admitiu Dalan. - Elas normalmente ficam mais pro interior da ilha. Como eu morava no litoral, não cheguei a encontrar muitos deles. - Novamente, a lembrança de sua casa o fez ficar quieto, e Julie pareceu ter notado.
- Eu... soube o que aconteceu. - Ela o encarou, e estava claro que estavam pensando no mesmo assunto. - Sinto muito. - Disse, esticando a mão para segurar a dele. Dalan sorriu constrangido, tentando parecer melhor do que se sentia.
- Tudo bem. - Ele pensou em retirar a mão, mas o toque era extremamente agradável. - Foi por isso que entrei na guilda. Preciso saber o que aconteceu com minha casa.
- Temos um problema mais ou menos parecido. - Disse a garota, recolhendo sua mão até o queixo, passando a encarar a irmã. - Queremos saber o que aconteceu com nosso pai. Ele desapareceu quando tínhamos sete anos, e desde então... - Ela ficou quieta por alguns segundos, encarando a mesa como se as respostas da vida estivessem talhadas na madeira. - ... desde então nós o procuramos.
- Ah. - Disse Dalan. A atmosfera da mesa rapidamente esfriou, com as gêmeas parecendo melancólicas e Koga, incomodado. Parabéns, disse o garoto sarcasticamente a si mesmo. - Sinto muito.
- Não precisa se preocupar. - Respondeu Julie, tentando trazer a animação de volta à sua fisionomia. - Todos na guilda estão lá por algum motivo, não? É só seguir em frente então. - Koga se movimentou, e quando Dalan o encarou novamente ele já estava com um sorriso no rosto.
- Cacete, gente. Qual a dificuldade de manter a depressão para longe hoje, hein? - Ele se reclinou na cadeira, virando o rosto para o bar. - Ei, Harold! Vê pra gente uns quatro Lunares Extravagantes, por favor! Caprichados!
- Dois, Harold! - Gritou Julie, sorrindo com para Koga. - Você sabe muito bem que eu e Sophie não bebemos essa droga, seu animal.
- O.K, mas o novato bebe, não é? - Ele se virou para Dalan, levantando uma sobrancelha enquanto soltava um sorriso provocativo. - Quer dizer, se quiser seguir o exemplo das garotas, sinta-se à vontade.
- Tudo bem. - Disse Dalan, olhando de relance para Sophie. - Não pode ser mais forte do que as misturebas que fazem nos portos ao norte de Cellintrum.
- Na verdade são. - Disse Sophie, sorrindo timidamente enquanto falava baixinho. - O Dom, lá da guilda, já rodou por todo o mar e disse que o Lunar Extravagante é a coisa mais forte que ele já bebeu.
- Lembrando que Dom é um beberrão e que o bar é cheio justamente por causa dessa bebida em particular. - Acrescentou Julie, cruzando os braços enquanto sorria. - Não são sinais animadores, Dalan.
- Tudo bem, não há problema. - Agora não havia como voltar. - Além do mais, eu sou forte com a bebida. - Mentira.
- Então não tem o que temer. - Disse Koga. - Só vou avisando: não venha me processar depois. Está avisado de que essa bebida é bem pesada. - Ele colocou as palmas na frente do peito, como se estivesse se protegendo.
- Agora é você que parece querer desistir. - Zombou Dalan, se inclinando na mesa. - Sophie e Julie olharam para os rapazes com sorrisos no canto das bocas.
- Novato, considere isso seu trote. - Um homem barbudo chegou na mesa, depositando dois copos na madeira. Dentro deles havia uma substância azul com brilhos brancos, densa o suficiente para não ser transparente. - Só estou com medo de você não achar o caminho de casa pra Aurora.
- Veremos. - Dalan pegou o copo e brindou com Koga, bebendo-o em seguida.
Na cena seguinte, ele se viu em cima de uma substância irregular, cheia de pequenas pedrinhas que pinicavam seu corpo. Havia uma dor de cabeça que parecia furar seu crânio, e qualquer movimento parecia amplificá-la. Dalan levou a mão aos olhos, pressionando-os fracamente com os dedos.
- Você acordou! - Disse uma voz baixa, e ele abriu os olhos com dificuldades. Demorou um pouco para focalizar o céu estrelado acima de si, e muito mais para notar o rosto sorridente de Sophie contra às luzes.
- O... o que houve? - Perguntou ele com a voz grogue, tentando se levantar de forma lenta. A garota o ajudou a se sentar, e Dalan notou que estava em cima de areia. Uma olhada ao redor o fez perceber que estava em uma praia, e havia um baú ao seu lado.
- Bem, você bebeu. - Disse Sophie, sorrindo com a cabeça inclinada. - Depois do primeiro copo veio o outro, e no quarto Koga e você decidiram caçar tesouros. Acho que tinha alguma coisa a ver com piratas. Cada um foi correndo pra fora do bar, e eu te encontrei aqui depois de algumas horas.
- De onde veio o baú? - Perguntou ele, mas Sophie apenas deu de ombros. Ela continuava a sorrir abobalhada. - O que é tão engraçado?
- Ah, nada! - Ela começou a corar, desviando o olhar. O sorriso, no entanto, se mantinha em pé. - Só que... bem, foi bastante engraçado. Geralmente Koga fica bêbado sozinho, e isso geralmente termina com ele chapado na mesa. Acho que uma pessoa a mais torna tudo mais divertido.
- Imagino. - A dor de cabeça já começava a diminuir, mas Dalan continuava se sentindo fraco. - Onde ele está?
- Não sei. Julie foi atrás dele, e eu fui te procurar. - Ela esticou a mão, ajudando-o a se levantar. Logo depois Sophie ficou vermelha, falando rapidamente. - Quero dizer, normalmente é Julie quem sabe por onde Koga se esconde, e achamos melhor garantir que você voltasse pra guilda, e...
- Tudo bem. - Tranquilizou Dalan, cansado. - Foi a melhor coisa a se fazer. Agora, se não se importa, vamos pra guilda. - Eles começaram a andar pela areia, indo em direção à cidade. Quando voltaram a pisar nas pedras negras, Sophie parou, quebrando o silêncio.
- Dalan, é verdade que você já foi um pirata? - Perguntou ela. Dalan se virou, percebendo o olhar de admiração dela, com as pálpebras esticadas. Por um momento o garoto pensou em conservar a mentira, mas a voz da consciência o fez repensar a ação.
- Sophie, uma dica para o futuro: - Ele mostrou o indicador, como se a ação validasse suas palavras. - Nunca acredite em nada do que eu digo bêbado.
- Ah. - Os dois recomeçaram a andar, duas figuras solitárias na rua vazia. O sol começava a subir, iluminando o caminho. Dalan quase tropeçou, sendo salvo pelo braço de Sophie, que o agarrou pelo pescoço.
- Obri... - Ele a encarou, e percebeu seu rosto incrivelmente vermelho. No momento seguinte ela acabou o soltando, e o garoto caiu com a cara nas pedras.
- Me desculpa, me desculpa, me desculpa! - Repetiu Sophie, mas a consciência de Dalan voltou a se esvair. Não esperava que seu primeiro dia na Aurora fosse acabar assim, caído na sarjeta da cidade. Seu orgulho tentou buscar forças do além, bombeando energia para o corpo. No entanto, o cansaço finalmente o tomou, e ele desmaiou. Sophie, ao seu lado, continuava disparando desculpas.
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