sexta-feira, 26 de outubro de 2012

As crônicas de Ona: parte 3

BEM-VINDOS DE VOLTA A MAIS UMA CRÔNICA DO RECINTO NERD.


SEI O QUE VÃO DIZER. "Ai, você disse que teria um post por semana. Já fazem duas semanas que você não volta aqui. Seu imbecil."

SIM.

É A VIDA.

Agora voltemos à nossa programação normal.



AS CRÔNICAS DE ONA

Parte 3: Libertação



-T-Tenho mesmo que fazer isso? - Perguntou Ona, enquanto descia da carruagem, tremendo tanto que quase caiu no chão.

Estavam no alto de uma elevação no meio de Gohr, onde o alaranjado do cenário dava lugar a um vermelho mais forte. O pôr do sol no horizonte ajudava a pintar ainda mais o cenário, enquanto as sombras negras se esticavam.

Abaixo deles, havia um acampamento orc. Só que esse não era como o que haviam encontrado Ankho. Haviam paliçadas de madeira demarcando o território, e guardas patrulhando por dentro. Construções negras, como as que haviam servido de prisão para o bárbaro, se espalhavam pelo terreno, acompanhadas de habitações orcs, poços de água, sítios de trabalho forçado e celeiros. 

Estavam olhando para um centro de prisioneiros. Por todo o local, a noite se acomodava, e os humanos eram levados até as construções negras, que agora Ona sabia que se chamavam Tyah, que no idioma orc significava "casa humana". Desnecessário dizer que o humor orc não era o mais sofisticado.

 - Acho que é bem claro que só sobrou apenas uma função para você, garoto - Disse Loretta, enquanto separava aljavas e facas de dentro do veículo.

Por incrível que pareça, a idéia era de Ona. Segundo ele, o único modo de poderem atacar os orcs seria com um exército. E já que os mercenários eram obviamente uma carta fora do baralho, e ninguém fora do deserto iria ajudá-los. Só sobravam os prisioneiros que os orcs mantinham. Era uma jogada arriscada, pois não sabiam em que estado iriam encontrá-los, mas era a única chance que restavam.

O que Ona não esperava era que Loretta e Ankho fariam modificações em seu plano. Eles iriam atrair a atenção dos guardas, enquanto Ona se infiltrava na prisão e soltava os prisioneiros. Novamente, estavam apostando na surpresa dos orcs em serem atacados, o que até agora tinha sido uma excelente tática.

Loretta deu a Ona um embrulho em couro pardo. - Esse é um explosivo simples. É só acender o pavio que ele irá trabalhar. - O garoto iria explodir uma das prisões, e depois era apenas ficar de lado para a manada de prisioneiros passar. Ele precisaria ser rápido, pois Ankho disse que não aguentariam todos os guardas em cima deles por muito tempo. Haviam escolhido a noite, pois os prisioneiros iriam estar nos Tyah, e os guardas não se preocupariam muito com eles depois disso.

 - Vamos indo. Seja rápido, garoto. - disse Ankho. Sem mais uma palavra, ele e Loretta começaram a descer a elevação. Ona ficou parado, enquanto eles se encaminhavam para o outro canto do campo de prisioneiros. Depois de um tempo, começou a descer, se segurando nas rochas para não cair e estragar tudo. Essa era a hora de começar a fazer alguma coisa, pensou.

Quando chegou na base da elevação, ficou atrás de uma formação rochosa e esperou. Pensou em sua cidade, em sua família, em seus amigos, mortos sem chance de defesa. Pensou em Ankho e Loretta, que se encaminhavam para fazer mais um feito impossível. Pensou nos prisioneiros, em sua chance de salvação. E pensou nos mercenários, malditos sejam.

Subitamente, barulhos de batalha se propagaram do outro canto do cenário. Os orcs mais próximos levantaram a cabeça e fitaram a fonte do som, quando explosões começaram a pipocar. Os monstros desataram a correr para a origem da confusão. Bem, pensou Ona, era agora ou nunca. 

Ele saiu de onde estava escondido e começou a andar, com bastante cuidado para não atrair nenhum som. Depois de alguns minutos de pura tensão, avistou uma Tyah, negra como a noite que se aproximava. Ona olhou para os lados, mas as duas únicas coisas que se moviam fora da construção eram a palha das construções e as montariam mais adiante. 

Já dentro da construção, duas dúzias de humanos se acotovelavam para tentar ver o que estava acontecendo. Um garoto de cabelo verde, alto e magro, com um rosto fino e alongado, o viu.

 - Ei, você! Aqui! Aqui! - falou, acenando para Ona. Os outros prisioneiros o notaram também, e começaram a se agitar.

Ona correu os metros que faltavam, e tirou o embrulho do couro. Ele era rústico e feio, mais parecendo uma massa de argila negra do que um explosivo, com um longo pavio se estendendo de seu centro. Ona colocou-o na grade da porta por dentro, e se virou para os prisioneiros. Um garoto igual ao que o havia chamado, com cabelo roxo, estava com o rosto fora das grades, olhando-o com agitação.

 - Vá para trás! Isso vai explodir! - Disse Ona, alarmado. Os prisioneiros sem pestanejar correram para o fundo, enquanto Ona tirava um fósforo de suas mãos trêmulas. - Vamos, vamos, vamos - repetiu, enquanto forçava o fósforo contra a argila negra. Ele acendeu, quase caindo das mãos de Ona, que o jogou no pavio. O fogo o alcançou, e começou a subir correndo a corda.

Ona saiu correndo, enquanto a explosão arrebentava a grade do portão, jogando-o para onde ele estava há minutos atrás. Os prisioneiros desataram a correr, alguns indo para as outras prisões, e outros se encaminhando para a batalha. Os gêmeos foram até Ona, e o levantaram.

 - Parabéns, rapaz. Devemos a você nossas vidas. - disse o de cabelo verde.

 - N-n-não foi nada. - gaguejou Ona.

 - Claro que foi. Deixe de ser imbecil. - disse o de cabelo roxo.

 - Marcus, pare de ser um canalha. Ele acabou de nos salvar.

 - Eu não estou fazendo nada, Tony! Só estou comentando.

 - E-escutem. - disse Ona. - Uns amigos meus estão lutando contra todos os guardas agora. Vocês precisam ajudar. Temos que libertar todos os prisioneiros.

 - Por quê não disse isso antes? - disse Tony. - Para a glória, irmão?

 - Para a glória. - respondeu Marcus. Os dois se viraram e começaram a correr para a escuridão.

Ona foi deixado, sozinho. Os prisioneiros haviam sumido. Ele se encaminhou até o edifício negro, se sentindo cansado como nunca. Nenhum orc iria nessa hora para Tyah.

Ele entrou na construção, cujo interior estava tão escuro quanto a cor dela. Ona sentou em uma cama, cansado demais para pensar, sentindo a adrenalina abandonar seu corpo. 

Demorou um pouco para perceber os grandes olhos verdes que olhavam em sua direção. 

Ele caiu da cama, se arrastando para longe dos olhos. Seus próprios globos oculares demoraram um pouco mais para se acostumar ao cenário, percebendo que havia uma garota olhando-o com atenção.

Ela tinha longos cabelos vermelhos, que desciam até seus quadris. Seu rosto era pequeno e com traços finos, com sardas se amontoando nas maçãs. Seus olhos, como já foi dito, eram grandes e quase não piscavam. Ela era bastante pequena, embora aparentasse ter uns quinze anos. 

- O-oi. - disse Ona. É necessário um adendo nessa crônica, embora alguns já tenham percebido. Ona tinha uma habilidade mínima na arte de interação com mulheres. - M-meu nome é Ona, e o seu?

A garota não respondeu, apenas apontou para sua boca, e fez um gesto negativo com a mão. Ele percebeu o que havia acontecido. Histórias de orcs que cortavam a língua de pessoas com belas vozes assombravam o deserto.

Enquanto Ona se sensibilizava, a garota pegou um pedaço de pedra do chão e começou a escrever na parede. Seu nome era Lisa. Mal havia acabado de escrever, uma sombra se estendeu no chão, e ela olhou apavorada para a porta. Ona se virou, e seu coração pareceu parar.

Um orc se agigantava onde a grade do portão estava há alguns minutos. Ele estava coberto de ferimentos, mas ainda era um monstro. E era necessário olhar para a situação. Era um ser verde gigante contra uma garota e um garoto, que não tinham nenhuma arma. Já o orc parecia não acreditar em batalhas niveladas, e tirou lentamente seu machado das costas. 

Ona ficou no chão onde estava, tremendo descontroladamente. Lisa olhou-o, e pegou a pedra com que havia escrito seu nome no que parecia agora ser outra vida, e jogou contra o monstro. O projétil o acertou em um dos olhos, e ele segurou o rosto, ajoelhando e agonizando. A garota então correu contra ele, e tentou puxar a faca que estava no tornozelo verde da besta. 

Só que ela não era Ankho, Loretta, nem mesmo uma guerreira treinada. O orc percebeu suas tentativas desajeitadas de desarmá-lo e, com um movimento do braço, a jogou contra a parede mais próxima. Um som surdo ecoou pela construção quando a cabeça de Lisa se chocou contra a rocha bruta. No entanto, alguma coisa selvagem parecia ter nascido nela, que se levantou rapidamente, com o crânio encharcado de sangue. Ela correu novamente contra o orc, mas esse já havia levantado. Ele a acertou com o cabo do machado, e quando ela caiu, pisou em seu corpo. Ona ouviu costelas se partindo, enquanto Lisa deixava escapar sangue pela boca. O monstro levantou sua arma, se preparando para o golpe final. 

De repente Ona estava pulando em cima do orc. Se isso pareceu ter vindo do nada, Ona também achava. Ele não sabia o que havia passado em sua cabeça exatamente, mas se lembrava de pensamentos que passavam como raios em sua mente. O fato de que ele era um covarde, e até agora não havia lutado contra os monstros que haviam chacinado sua cidade. Sua vontade de fazer algo que contasse na luta que havia decidido lutar. A determinação de não ver mais ninguém morrer, depois de tudo que havia visto. Ele querer ser mais parecido com Ankho, seu herói. O fato de que, bem, Lisa era uma garota. E ela o havia protegido, enquanto ele jazia colado ao chão.

De qualquer forma, agora Ona estava em cima do orc. Agarrado ao seu ombro, ele olhou para o rosto do monstro. Uma perplexidade misturada com loucura violenta passava pelas feições da criatura. Só que suas feições mostravam um olho ferido. Ona, sem pensar, enfiou o punho naquele lugar. 

Se era nojento para Ona, era doloroso para o orc. Ele se agitou descontroladamente, jogando Ona para o chão. Era bem mais doloroso do que parecia, mas a adrenalina já estava a mil. Ele se levantou, e tentou pegar a faca da criatura. O orc, furioso, chutou-o no rosto, fazendo o garoto desmaiar por alguns centésimos de segundo. Quando acordou, sentia o sangue quente por todo o rosto e por dentro da boca, e seu nariz definitivamente estava quebrado, assim como um dente. Ona cuspiu vermelho, segurando a cartilagem com força, enquanto forçava os olhos a se abrirem para ver seu atacante. Só que seu campo de visão foi tapado por Lisa, que segurava sua mão e o levava até o fundo do Tyah. 

O monstro ficou louco, e se levantou para procurar os dois malditos humanos que em breve sofreriam uma morte violenta. A falta do olho o prejudicava seriamente naquele ambiente negro, mas havia seu faro. Ele cheirou o ar, sentiu o sangue humano e se movimentou lentamente para onde os dois estavam. 

Ona não tinha mais nada. Não adiantava se aproximar dele agora, seria suicídio. Ele olhou para Lisa, que parecia concordar com ele, e ambos ficaram esperando a morte. 

A sombra do orc os alcançou, e logo atrás dela havia o monstro, que olhou para baixo, sorrindo loucamente. Ele levantou o machado, e Ona abraçou Lisa. Desculpa, pai, mãe, Aikon, pensou. Não consegui vingá-los.

Ele fechou os olhos, e um jato de sangue quente alcançou seu rosto. Estranho, pensou. Esse sangue não tinha vindo dele nem de Lisa. Abriu os olhos, olhando para cima. O orc estava trespassado por duas  espadas, portada por Tony e Marcus.

 - Bem. - disse o gêmeo de cabelo roxo, puxando a espada do corpo do orc. - Estamos quites.

Ona desmaiou sorrindo.

Algumas horas depois, Ona havia sido acordado e levado para um bar. A maioria das pessoas precisava de atendimento médico urgente, mas não havia muito o que fazer para curá-los sem os medicamentos necessários. Então os que portavam ferimentos mais urgentes eram tratados com o pouco que tinham, enquanto os outros comemoravam a liberdade, bebendo como se tivessem recebido uma nova vida.

Ankho e Loretta eram tratados como heróis. O bárbaro bebia baldes de cerveja atrás de baldes de cerveja, enquanto a ex-mercenária conversava com alguns líderes dos prisioneiros. Em outro lado do bar, Ona conversava com Tony, Marcus e Lisa. Tony era ranzinza, e costumava se gabar um bocado, mas era sincero. Marcus era mais animado, e considerava Ona uma espécie de herói. Já Lisa ficava fitando-o, bebendo cada palavra que ele dizia, enquanto contava sobre tudo que aconteceu até aquele momento.

Ona não estava acostumado com toda essa atenção. Tudo bem que apenas os prisioneiros do Tyah que ele explodiu o reconheciam, mas ainda sim era mais do que tinha tido na vida inteira. E ele estava gostando. Pela primeira vez desde que Aikon caiu, ele pode relaxar e aproveitar o momento.

Estava conversando com Marcus quando Ankho o chamou.

Eles foram até fora do bar, que tremia com o barulho que vinha de dentro. Ankho definitivamente estava bêbado, e parecia ter algo a falar com Ona. Lisa ficou observando-os de fora da janela.

 - Garoto. - começou Ankho, com a voz embolada. - Você até que fez um bom trabalho hoje.

 - O-obrigado. - respondeu Ona, sem jeito, mas ainda assim animado. Seu herói estava o parabenizando por um bom serviço heróico. Aquela noite não podia ficar melhor.

 - Aikon era uma cidade bastante bonita, não? 

Ona ficou quieto por algum tempo. - Era, era mesmo.

 - Sim. Era uma cidade bastante acolhedora. O povo me tratava com bastante carinho. 

A meia-noite chegava, e com ela vinha o frio e a escuridão. Ona não entendia aonde Ankho queria chegar, mas concordou com a cabeça.

 - Eu não sei se você sabe. Existem três culpados pela destruição de Aikon.

 - Três? Quem? Tem os mercenários, os orcs, mas quem mais seria o culpado? - Ele olhou confuso para Ankho, cujo rosto estava marcado pelo sofrimento.

O mundo parecia parar, e o tempo congelava. Ona lutava para entender, e ao mesmo tempo, para não entender. 

 - Você... o quê? - disse lentamente Ona. 

Ankho abaixou a cabeça. - Eu estava cansado. Da perseguição dos mercenários. De tudo. Então decidi me render aos orcs. Um grupo de arruaceiros como aquele não iria me vender para qualquer um, eles me tratariam como prêmio, e me manteriam vivo. Estaria livre de meus problemas. Foi um momento de fraqueza. Não imaginava que Aikon seria atacada tão rápido. 

 - Não.. isso não faz sentido. - A voz de Ona não tremia mais, mas ficava mais alta conforme as sílabas iam saindo.

 - Eu não pensei. Admito. Só que eu havia vivido a minha vida inteira lutando contra eles, sem sucesso. Não queria ficar em Aikon, com medo da cidade ser atacada por eles.

 - AH, PORQUE ISSO DEU MUITO CERTO NO FINAL, NÃO DEU? - Ona não percebeu que estava gritando. E isso pouco importava. Ankho deveria proteger Aikon. Deveria ser o herói supremo. Não era aquele que desistiria quando tudo estava ficando difícil. Ele deveria lutar, sempre.

 - Não vou pedir para você me perdoar. Apenas senti que...

 - POUCO ME IMPORTA. VOCÊ NÃO ENTENDE. A CARNIFICINA. MINHA FAMÍLIA.  MEUS AMIGOS. TODOS ESTÃO MORTOS, E O ÚNICO QUE NOS PROTEGIA DECIDIU DESISTIR, QUAL TAL UM COVARDE. VOCÊ DEVERIA SER DIFERENTE DE NÓS!

Ankho abaixou novamente a cabeça, e voltou ao bar. Ona ficou ali, espumando por alguns minutos. Depois disso, deu meia-volta e foi rumo à escuridão.

Na manhã seguinte, não havia sinal dele.

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