sábado, 1 de dezembro de 2012

As Crônicas de Ona parte 5 - O fim

Sim, eu sei. Demorei muito mais do que o prometido. Por isso, me sinto na necessidade de me desculpar.

A questão é que eu queria que essa crônica fosse a minha melhor até agora. As crônicas de Ona me fizeram querer escrever e finalmente moldar mundos que estavam na minha cabeça há anos, e por isso quis que fosse a melhor coisa que já escrevi. Não sei se isso ocorreu ou não, apenas vocês poderão decidir.

Sei que isso não é motivo nem nada, já que eu disse que entregaria o final antes.

Agora vamos lá.

AS CRÔNICAS DE ONA

Parte 5: Fim.

Dor.

Ainda estava escuro. Parecia que sempre esteve escuro. As trevas abraçavam Ona com tal intensidade que pareciam uma manta, oprimindo-o de todas as sensações. Exceto a dor. A sentia em cada parte do corpo. Corpo. Que corpo? O que era isso? Parecia fazer tanto tempo desde que teve um.

E então veio o calor. Há mil anos atrás era dia, não era? Ou era noite? O que havia acontecido? Só lembrava de... não, não conseguia se lembrar. Apenas a dor, o calor e a escuridão. Estavam com ele desde sempre, não estavam?

Eis que a pressão chegou. Havia algo em cima dele. Vários algos. Ele se lembrou que tinha um corpo. Tentou se mover, se lembrava vagamente de como era isso. Só que não conseguia. Não podia.

Estava enterrado vivo.

Esse pensamento surgiu como um clarão na escuridão eterna. E com ele veio o pânico. O pânico lutou acirradamente com as trevas, encobrindo a dor e o calor, mas não a pressão, essa continuava lá. Só que o pânico conseguiu vencer as trevas, sugando o garoto de volta ao mundo exterior.

Ona abriu os olhos.

A primeira coisa que viu não fez muito sentido para ele. Sua visão estava semi-encoberta por destroços da carroça, mas via uma impressionante quantidade de orcs sentados em semi-círculo, bem distantes dele, e uma espécie de palco no centro. Não conseguia ver o que estava na frente deles devido a um pedaço desagradável de madeira, mas via Lisa sentada no chão, mantida presa por um orc. Tentou virar o rosto para ver melhor, percebendo o sangue em seu rosto, e percebeu Tony e Marcus na mesma posição. Lisa estava surpreendentemente ilesa, mas Tony tinha um grande ferimento na testa, empapada de sangue, e Marcus segurava um braço que pingava vermelho. Todos tinham correntes grossas penduradas no pescoço, seguradas por seus captores.

Ona se perguntou onde estava Loretta, e parecia que um dos monstros o ouviu, pois um orc entrou no seu campo de visão, arrastando a arqueira. Ela também parecia ilesa, mas o seu captor a colocou ajoelhada em frente a bizarra platéia, amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos. Aquilo parecia estranhamente familiar a Ona, como se ele já tivesse lido sobre algo assim. O orc captor começou a falar uma série de dizeres na língua dele, enquanto os outros repetiam uma mesma palavra.

Sh'akahar.

O sangue de Ona gelou, até mesmo o que estava do lado de fora de seu corpo. Sh'akahar era o nome orc para execução. Só que a execução orc não era limpa, nem simples. Consistia em uma série de tortura antes do condenado pedir a morte. Caso isso não ocorresse...

Ona sabia, em seu âmago, que Loretta jamais pediria a morte. Seu orgulho tomaria conta de seu corpo, a única coisa que a manteria em um pedaço durante a tortura. Só que, quando o processo do Sh'akahar era estendido, pedaços eram retirados. Ona tentou se mover, mas os destroços da carroça eram muito pesados, e o prendiam firmemente ao chão. Talvez tenha sido por isso que não o tinham achado. Uma benção e uma maldição ao mesmo tempo.

Ele se virou aterrorizado para o semi-círculo, enquanto o executor e torturador, chamado de Akahar, retirava uma faca do bolso. Ele a colocou na garganta de Loretta, segurando-a pelos cabelos. Resmungou algumas palavras em seu ouvido, que Ona não escutou, mas conseguiu ver o cuspe que ela soltou em cima do monstro. Revoltado, ele a socou, jogando seu rosto ao chão com uma velocidade absurda. De onde estava, Ona conseguiu ver o sangue dela voando.

A platéia começou a xingar e a bater os pés. O Akahar se prostrou em cima dela, e bateu sua cabeça no chão. A levantou pelos cabelos, e voltou a colocá-la de joelhos. Pegou uma faca, alisou-a, e a abaixou, cortando o ombro de Loretta.

Ela não fez nenhum som, mas Ona tentou desesperadamente se mover, parando quando os destroços pareciam desabar. Ele olhou, imponente, enquanto o Akahar colocou a lâmina inteira da faca, no corte de Loretta. Sangue espirrou, mas ela ainda não fazia nenhum som.

Ele sentiu a fúria correr por seu corpo, enquanto tentava se libertar em vão. Daria qualquer coisa para salvar Loretta, qualquer coisa...

 - Ona. - disse uma voz ao seu lado.

Se ele não estivesse coberto por quilos de destroços, Ona poderia jurar que tinha saltado meio metro. Virou rapidamente o pescoço, e viu Ankho ao seu lado, ajoelhado atrás do ninho de destruição que aprisionava o garoto.

Ele rapidamente transmitiu a raiva que sentia dos orcs para Ankho.

 - Você.

 - Sim. Ouvi uma explosão, e vim aqui conferir.

 - Ah, que ótimo. Talvez isso não tivesse acontecido se você tivesse vindo me procurar.

Ankho ficou visivelmente encabulado, e virou seu rosto para baixo.

 - Sim, eu sei. Ona, você é a manifestação de todos os meus erros. Eu poderia me desculpar o tempo todo, mas - ele olhou para o garoto, com uma expressão mais dura no rosto. - temos coisas mais importantes para nos preocuparmos agora.

 Ona concordou lentamente com a cabeça. Por mais que não aguentasse ficar perto do guerreiro, sabia que tinham que salvar os outros o mais rápido possível. Ankho levantou a cabeça e olhou para o Sh'akahar, observando a platéia, o torturador, e os outros. Sua expressão ficava mais sombria a cada instante.

Finalmente ele quebrou o silêncio.

 - Eu tenho um plano, mas você não irá gostar dele.

 - Diga.

Ankho se virou para ele. - Preste atenção. Tenho um pouco de explosivo comigo. Eu posso correr e me livrar do torturador e dos outros captores, mas há uma grande quantidade de orcs prontas para me matar no instante que perceberem. Eu poderia carregar o explosivo até eles, mas assim que perceberem que estou o segurando, vão se dispersar e talvez o dano não seja tão eficiente. Por isso, vou te dar a bomba, e seguirei na sua frente até chegarmos no meio deles. Ela deve explodir nesse momento.

Ona pensou no plano. Parecia fazer sentido, mas... - A bomba quando explodir deve nos acertar também.

Pela cara de Ankho, ele sabia. Ona gelou.

 - O quê? Esse é o seu grande plano?

 - O melhor que tenho. Eles não podem saber da bomba, e te cobrirei até chegarmos no meio deles. Se formos rápidos o suficiente, eles não te perceberão.

 - Ah, agora você quer minha ajuda? Você destruiu minha cidade e agora quer me mandar para o sacrifício?

 - Ona. - Ankho se aproximou dele. - Nada que eu possa fazer vai me perdoar por Aikon. Sei que trazê-lo para isso não é o certo, mas é o único jeito. Esses orcs provavelmente vão torturá-los, matá-los, e depois correr para a prisão. Se derrotarmos eles aqui, podemos garantir paz por mais tempo. Não é muito, mas é o que me disponho a fazer pelo que aconteceu em Aikon. Posso fazer sem você, mas talvez não funcione. Por isso te peço ajuda.

Ona olhou para ele. Olhou para seus olhos. Só havia dor. Ele percebeu que Aikon queria morrer assim, nem que isso jamais o perdoasse por ter abandonado sua cidade. Ele não conseguia mais viver pelo remorso.

Então Ona perdoou Aikon.

 - Certo. - Ele engoliu seco. - Vamos.

Ankho retirou lentamente os destroços que estavam em cima dele, e Ona rastejou até ficar atrás do guerreiro. Ele deu para o garoto a mesma argila negra que tinha começado a rebelião, no que pareciam ser anos no passado. Ona sentiu suas mãos tremendo, enquanto fitava o objeto como se as respostas da vida pudessem ser encontradas nas reentrâncias rudes que marcavam o relevo da bomba. Aquela era a hora. Ankho olhou mais uma vez para o cenário e se virou pela última vez para Ona.

 - Está pronto?

 - Sim.

Ona acendeu o pavio.

Aikon se levantou e começou a correr, com Ona em seu encalço. Os orcs pareciam não perceber sua investida, tão interessados na tortura. Ele tirou seus dois machados de arremesso das costas e arremessou contra os três captores de Lisa, Tony e Marcus. O primeiro machado arrancou a cabeça do captor de Lisa, enquanto o segundo cortou o pescoço dos outros dois, em um giro mortal. Os captores caíram, enquanto os prisioneiros ainda estavam em estupor. Ona olhou para eles. Tony e Marcus pareciam estupefatos demais para percebê-lo, mas Lisa o olhou nos olhos. Uma eternidade e um momento se passaram, e Ona quase desacelerou. Mas quando mil anos se passaram, se viu continuando correndo atrás de Ankho.

O pavio chegava na metade.

Os orcs pareciam não ter percebido a chegada do gigante, mas ele se fez aparecer com um movimento impiedoso, onde cortou no meio o Akahar. Sangue de orc espirrou, e a platéia se viu com um guerreiro de dois metros em cima deles. Começaram a correr, tentando se reorganizar. O elemento surpresa cavalgava novamente, levando Ankho e Ona pela última vez.

O pavio diminuía.

Ona passou por Loretta. Ela parecia em maus pedaços, mas olhou incrivelmente surpresa para Ankho. Percebeu por um milésimo de segundo a figura pequena de Ona correndo atrás dele, mas eles não chegaram a se entreolhar.

Ainda faltava muito do pavio? Ona nem se atrevia a olhar mais.

Alguns orc mais rápidos começavam a atirar flechas para o trem que era Ankho. Duas acertaram suas omoplatas, e outra perfurou seu joelho. Ele pareceu cambalear, mas continuou em frente. Mais flechas eram enviadas, e o corpo do guerreiro aguentava todas.

O pavio parecia que não acabaria nunca.

De repente estavam no meio dos monstros. Ankho saltou, e arrancou a cabeça de dois orcs em um único movimento. Mais flechas eram lançadas, e finalmente ele tombou.

Ona se viu no meio dos orcs. Tamanhos diferentes, armas diferentes. Só que todos estavam de repente olhando para ele. E todos olharam para a bomba.

Ele olhou para baixo. O pavio estava no fim. Obrigado.

E então o mundo explodiu.



Muito se falou sobre esse dia. Sobre como dois homens se lançaram à morte para defender honra, amigos, amantes. Sobre um ato que garantiu paz, o suficiente para humanos poderem se organizar e defender sozinhos suas terras. Sobre uma guilda de mercenários, que se mudou do deserto para lugares mais lucrativos. Sobre como um homem se viu diante de todos os seus erros, e lutou contra eles até o fim. Sobre o perdão entre duas pessoas que partilharam sentimentos de veneração, humildade, raiva e aceitação. E sobre um garoto que idealizava heróis, apenas para na derradeira hora, se tornar um.

Essas foram as crônicas de Ona.

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