sábado, 13 de outubro de 2012

As Crônicas de Ona: parte 2

BEM-VINDOS DE VOLTA, SEUS VAGABUNDOS, A MAIS UMA CRÔNICA DO RECINTO NERD!


Sim, depois de meses na geladeira, voltei a escrever essa crônica. Algumas coisas mudaram na minha concepção original (especialmente a mudança no título), e eu poderia falar mais sobre isso, mas não aguento mais escrever e reescrever, então que se dane. Vão ler essa coisa logo!

Ah, e vocês podem ler a primeira parte aqui.


AS CRÔNICAS DE ONA

Parte 2: Plano.


O sol aquecia o deserto de forma implacável, e o cheiro dos orcs em decomposição envenenava o ambiente  rapidamente, mas Ona não percebia. Desde que sua cidade fora devastada, ele tinha apenas dois objetivos: resgatar Ankho e obter vingança. O primeiro objetivo estava completo, e ele se estendia diante dele.

Ankho era de fato uma figura imponente. Era gigante, de certa forma tinha uma fisionomia parecida com os orcs, visto que não era a definição dos músculos que importava, mas sim o tamanho deles. Uma barba longa e branca crescia, contrastando com seu cabelo raso. Usava uma calça e sapatos de couro, e duas fitas desse material faziam um xis em torno de seu peito. Seu corpo era marcado por cicatrizes e tatuagens de cores diversas, todas em forma de espiral, cujo significado Ona desconhecia.

Ona estava ajoelhado, enquanto Ankho se apoiava em um joelho apenas, com uma fisionomia cansada. De fato, parecia que o herói havia visto dias melhores. Sua barba estava revolta, seus lábios estavam secos e quebradiços, e uma série de novas feridas se espalhavam pela extensão de seu corpo. Enquanto observava, o garoto mal ouviu o que Loretta estava falando.

 - Vejo então que meu trabalho está feito. Posso confirmar que meu pagamento será contabilizado? - disse ela.

 - Ahn? Ah, sim, claro... - Afinal, ele tinha que agradecer à mercenária. Se não fosse por ela, nunca teria conseguido. De fato, o pagamento havia consumido quase a totalidade da riqueza do garoto, visto que ninguém mais aceitaria o trabalho, mas agora Ankho estava de volta...

 - Certo. - Loretta retirou uma flecha e a posicionou em seu arco. - Ankho, você está preso pelo Alto Conselho dos Mercenários.

 - O quê? - disse Ona, se levantando. Loretta rapidamente apontou a flecha para ele.

 - Não brinque, garoto. Considere-se feliz porque vou lhe dar uma carona para a Guilda. 

 - M-m-mas... - Ele estava em choque. Isso não fazia sentido, não devia estar acontencendo. Ele estava tão perto. Finalmente conseguiu encontrar Ankho, e agora isso? - Você não pode fazer isso!

 - Claro que posso. - Disse Loretta calmamente. - Meu trabalho com você está feito. Estou livre. E Ankho é um fugitivo. O Alto Conselho recomendou a cada mercenário da Guilda que, ao encontrá-lo, deveriam levá-lo à sede. - Ela olhou de relance para o guerreiro, que continuava no chão, respirando lentamente. - Faz anos que estamos o procurando.

 - Anos? Mas... isso não fazia sentido...

 - Heh.

Os dois mudaram sua atenção para Ankho, que havia resmungado. Ele se levantou lentamente, até se colocar na frente de Loretta. A mercenária deu um passo para atrás, tomando distância para o arco. Ankho era definitivamente gigantesco. Deveria bater a casa de dois metros com facilidade.

 - Diga-me. Você já questionou a força dos mercenários? - perguntou ele com uma voz grossa e lenta.

 - Bobagem. - respondeu Loretta. - Não há o que questionar. Os mercenários são o maior conjunto não-militar de Gohr. Nossa fortaleza nunca foi ameaçada por nada.

 - E você nunca perguntou o porque ainda termos orcs atacando cidades? Quer dizer, como você disse, temos força o suficiente. Por quê nunca fomos à base deles e expulsamos os desgraçados? Como eles ainda estão vivos se existe uma força tão gigantesca bem na borda do deserto?

De fato, essa era uma questão que nunca tinha passado pela cabeça de Ona. Realmente, isso não batia. Os mercenários eram uma força quase incomparável, com vários membros experientes capazes de limpar acampamentos orcs sozinhos. Loretta era um exemplo claro. Se eles quisessem que os orcs fossem exterminados do mapa, isso já teria acontecido.

A mercenária também parecia nunca ter pensado nisso. Seu rosto demonstrou uma sensação de desconcertamento, e ela afrouxou milimetricamente a flecha no arco. Loretta ficou em silêncio.

 - Nunca pensou nisso, não é mesmo? Sim, eu sei como é, o Alto Conselho faz das tripas coração para que nenhum membro tente considerar essa questão. Isso vem desde meu tempo como mercenário.

 - Você já foi um mercenário? - perguntou Ona, incrédulo. Ele pensava que conhecia toda a história de Ankho, amplamente difundida em sua cidade natal. Pelo que ele conhecia, Ankho tinha nascido em Gohr e aprendeu a lutar sozinho.

O guerreiro olhou para o garoto, parecendo notar a presença dele pela primeira vez. Ona estremeceu levemente por dentro, observando aqueles olhos

 - Sim. Estive lá quando tinha dezoito anos, mas logo desisiti, farto do Alto Conselho. Quem é você?

Se Ona havia estremecido levemente antes, dessa vez foi um pouco mais forte. Percebeu que não havia se apresentado para Ankho. E como podia? Para o garoto, parecia que o homem à sua frente era superior. Como se fosse de outra espécie.

 - M-m-meu nome é-é Ona, senhor. - Ele olhou para baixo, nervosamente mexendo os pés. -  E-eu sou d-de...

 - Espere. - Loretta parecia ter se recuperado do torpor. - Você não disse o motivo do Alto Conselho. Digo, sua teoria faz sentido, mas pra quê eles gastariam membros da própria guilda em missões de alto risco? - Questionou ela, mantendo o arco apontado para Ankho.

 - Achei que estivesse claro. Se há ameaça e não há um governo central para protegê-los, os habitantes de Gohr precisam de proteção. E os mercenários não são difíceis de contratar. Tudo que você precisa é de dinheiro. Sem orcs, não há necessidade para proteção, portanto não há o pagamento. Para o Alto Conselho, que se dane as missões de alto risco. Há mercenários o suficiente para garantir lucro por décadas. Tudo que eles precisam é garantir que a defesa não vire ataque. E, claro, existe de vez em quando a necessidade de sacrificar um vilarejo para garantir o medo por um tempo determinado, aumentando o valor do pagamento.

Essa declaração abateu Ona com tanta força que ele quase se desequilibrou. Aikon, pensou. Sua cidade claramente fora sacrificada. Se os mercenários quisessem protegê-la, ela não estaria em ruínas. Seu punho se fechou com tanta força, que suas unhas cortaram a palma da mão. O sangue escorria levemente, enquanto o mundo de Ona girava.

Loretta também parecia ter levado essa declaração como verdade. Ela mordeu o lábio, e ficou em silêncio por alguns minutos. Ankho esperou pacientemente, voltando a ignorar o garoto ruivo que tremia ao seu lado. Lentamente, a arqueira abaixou o arco.

Só que a tensão não estava no fim.

 - ABAIXEM-SE! - Gritou Ankho, olhando para a carruagem. Uma seta passou zunindo por cima do grupo, que pulou para o chão.

Ona olhou para cima. Uma quinzena de orcs estava no alto da depressão. Só que esses não eram arruaceiros, eram uma patrulha. Patrulhas costumavam rondar o deserto, matando, roubando e estuprando qualquer coisa que passasse pelo caminho, não necessariamente nessa ordem. Eram o pesadelo das crianças, que eram alertadas pelos pais a nunca sair das cidades. E agora uma delas estava prestes a fazer novas vítimas.

 - Você. - disse Ankho, se levantando e olhando para Loretta. - Me dê cobertura. - E saiu correndo para a estrutura negra que estava aprisionado.

Loretta se levantou e atirou no grupo hostil. Duas flechas acertaram o crânio seus alvos, só que esses não eram arruaceiros comuns. Logo que seus companheiros foram vitimados, eles puxaram escudos de couro e madeira das costas e se protegeram das flechas, enquanto avançavam pela depressão. Enquanto isso, os dois orcs armados com bestas se protegiam atrás da carruagem.

A arqueira fez um som com a língua de descontentamento, e puxou Ona, que ainda estava estendido no chão, para uma das barracas que antes protegeu brevemente a vida dos orcs do acampamento. Ona esperava ter um destino diferente do deles.

 - Ankho! - gritou Loretta para a estrutura negra. - Seja rápido com o que quer que esteja fazendo!

 - Eu disse... - respondeu Ankho, saindo da estrutura com um machado gigantesco de duas mãos, feito de ferro reluzente - para me dar cobertura! - Ele desandou a avançar contra seus inimigos, brandindo sua arma.

Como já foi dito, é bem raro orcs se verem em uma situação onde são os atacados. Portanto, não se pode julgar a surpresa do grupo quando Ankho avançou contra o primeiro da fila, derrubando-o com uma ombrada no escudo e cortando rapidamente o braço que segurava a arma da criatura. Ela urrou de dor, e ele aproveitou o estupor temporário dos inimigos para fazer um movimento de meia-lua e atacar o escudo do monstro mais próximo. A força era tamanha que o escudo se partiu, derrubando lascas de madeira pela superfície do deserto. Ankho continuou seu movimento, fazendo um giro em torno do seu próprio eixo e tornando a atacar a criatura, cortando seu estômago.

Os remanescentes passaram a tentar cercar o bárbaro, enquanto lá em cima os orcs armados com bestas miraram em no humano ensandecido. Loretta percebeu o movimento deles e atirou duas flechas, atingindo-os entre seus olhos, antes que sequer pudessem apertar o gatilho.

Essa ação desconcentrou um dos orcs, e Ankho aproveitou a distração dele e cortou sua cabeça com apenas um movimento. O monstro mais próximo levantou o escudo para atacá-lo, e Loretta o recompensou com uma flecha, que passou por baixo do braço do bárbaro e acertou o orc em seu peito. O guerreiro o finalizou com um golpe onde a flecha havia o atingido.

Agora restavam quatro orcs, um perto de Ankho e o restante mais afastado. O mais próximo tentou atingir com seu escudo o braço do guerreiro que segurava a arma, mas o movimento foi desengonçado e o defensor se desviou, fazendo um novo movimento para cortar o flanco do adversário.

O grupo mais afastado se dividiu, com dois deles correndo com seus escudos levantados para onde Loretta e Ona estavam, e o outro se pondo entre eles e Ankho.

 - Cuidado! - gritou Ona, e Loretta se virou para os atacantes, atirando inutilmente duas flechas que pararam nos escudos, e recuou rapidamente puxando Ona pelo colarinho. O orc que enfrentava Ankho assumiu uma posição defensiva, se esquivando dos ataques exagerados do bárbaro.

Loretta terminou de puxar Ona para longe da barraca, derrubou seu arco e saltou para cima da habitação, pegando impulso para dar um novo salto, passando por cima dos orcs. Logo que ela encostou no chão, as costas dos orcs estavam expostas, e ela aproveitou para se virar e lançar duas adagas contra eles, matando-os instantaneamente. O inimigo remanescente largou seu escudo e começou a correr. Loretta foi calmamente a seu arco, e atirou nele com uma distância considerável, derrubando-o quando ele começava a subir a depressão.

Ona ficou apavorado com os dois humanos, que agora limpavam suas armas e recolhiam as flechas dos escudos. Eles não eram desse mundo, pensou.

Ankho e Loretta foram em silêncio para o topo da depressão. Ona os seguiu, e parou os olhos na carruagem orc. Era bem parecida com a dele, mas o pano branco e ajeitado foi substituído por peles grosseiras. Ankho vasculhou o veículo, derrubando alguns papéis. O garoto olhou para eles, e percebeu um mapa.

A linguagem orc não era ensinada em todas as escolas, mas o pai de Ona, como político, sempre considerou a possibilidade de fazer contato pacífico com essas criaturas, portanto ensinou a família a escrita, sendo que a linguagem estava impossibilitada pela falta de tradutores orcs. Portanto, ao observar de relance o mapa, ele identificou algumas coisas. Uma prisão a céu aberto estava próxima deles, e mais adiante para o centro do deserto estava o acampamento militar principal. Um plano se formava a passos largos na cabeça do ruivo.

 - Bem, vejo que você não deve voltar à Guilda - disse Ankho, falando com Loretta. - Você não me parece o tipo de pessoa que voltaria a trabalhar para pessoas assim.

 - Infelizmente, você tem razão. Ainda estou pensando o que fazer. Provavelmente tentarei sair do deserto.

 - Entendo. Bem, acho que isso é um adeus.

 - E-esperem. - Disse Ona. - Acho que tenho uma idéia melhor. - Ona se sentiu um pouco apavorado por estar falando assim com pessoas que acabaram de realizar feitos espantosos, mas precisava disso. O plano estava fresco em sua cabeça, e era a única coisa que sobrava em sua vida. Não havia espaço para o nervosismo nessa hora tão crucial. - Vocês estão contra o Alto Conselho e contra os orcs, certo? Eu tenho um plano de atacarmos os dois. Se nos livrarmos dos monstros, as pessoas não terão razão de pagar os mercenários!

 - E como você tem esperança de fazer isso? - perguntou Loretta.

Ona mostrou o mapa. - Há uma prisão aqui perto. Se liberarmos os presos, poderemos ter forças para atacar a base orc. Sem um comando central, eles com certeza se desestabilizarão e lutarão entre si pelo poder!

 - Parece um plano muito simplista. - respondeu Loretta.

 - Ninguém nunca tentou atacar os orcs. Nunca saberemos o que acontecerá. Seremos os primeiros a tentar. E não me importa. É a única coisa que posso fazer.

 - Bem, vocês podem fazer o que quiser. - disse Ankho, subitamente. - Mas eu vou voltar para Aikon. Acho que a cidade ficou muito tempo sem mim.

Ona abaixou a cabeça. - Aikon... Aikon foi destruída. - A lembrança ainda era forte para ele. Lágrimas voltaram a escorrer pelo seu rosto, enquanto Ankho olhava-o de forma sombria.

Alguns minutos depois, no silêncio interrompido pelas fungadas de Ona, Ankho voltou a falar. - Bem, seguiremos seu plano então. Não tenho nenhum lugar para ir, mesmo.

 - Bem, acho que essa também é minha situação. - disse Loretta, encolhendo os ombros. - Mostre o caminho, capitão.

Ona se animou um pouco. Aikon estava morta, mas ele podia fazer os responsáveis pagarem. Ele não tinha mais nenhum motivo de vida. Era cumprir o plano ou morrer tentando. Ainda que ele tivesse medo do fim de sua vida, que rondava seus dias como uma ave carniceira, havia, de forma profunda em sua alma, uma confiança em Loretta e Ankho. Depois do que os dois fizeram, quem se colocaria no caminho deles?

Mal sabia ele o que o esperava.



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