sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Aurora: Capítulo 35 - Toda Esperança Deve Afundar


AURORA
CAPÍTULO 35: TODA ESPERANÇA DEVE AFUNDAR

 - Ugh! - Soltou Amanda com os olhos arregalados, correndo até a beira do navio. Ela agarrou o corrimão com as duas mãos e jogou o tronco para fora do barco como se sua vida dependesse disso. Um som nojento ecoou por toda a extensão do convés da Intrépida Saída, embarcação que Tom Burstin havia cedido aos membros da Aurora para uma viagem. Estavam a caminho de uma cidade chamada Kanon, onde uma estalagem relaxante os aguardaria. O trajeto passava pelo meio do Mar de Cellintrum, que naquele dia estava calmo e brilhante embaixo de um limpo céu azul. Aves brancas se agitavam, mergulhando em um vôo baixo que as deixava perto da embarcação.

 Amanda continuou mais alguns segundos dobrada no corrimão, sentindo o vento salgado agitar seus cabelos desembaraçados. Respirava debilmente, tentando recuperar a compostura, até que uma nova contração a fez fechar a boca e abrir os olhos novamente, e o som asqueroso voltou a cruzar o ar. Ela estava tão concentrada nesse ato que nem ouviu os passos na madeira atrás de si, indicando que uma pessoa se aproximava.

 - Você sabe que pode pedir um remédio de enjoo para Kulela, não? - Perguntou Dalan, apoiando as costas no corrimão ao lado dela.

 - Eu estou bem... - Conseguiu responder a garota em uma voz débil. - Só preciso de um pouco de ar fresco. - Tentou se levantar, mas imediatamente desistiu da ideia.

 - Dá pra ver. - Zombou o rapaz com um sorriso no rosto. - Eu poderia me aproveitar dessa situação, não é mesmo? Um pouco de vingança por tudo que me fez passar.

 - Bem, você pode tentar. - Disse ela, inclinando momentaneamente a cabeça para o lado. - Só que um dia vou sair desse barco. Aí a vingança vai mudar de lado, e acredite. - Acrescentou, virando o rosto para o companheiro. - Irá se arrepender. - Os dois sorriram, e Dalan a ajudou a voltar para o convés.

 - Às vezes acho que você se superestima demais. - Riu o garoto, esperando Amanda se recompor com os braços cruzados e as costas no corrimão. Ela estava pálida e fedia levemente, mas parecia um pouco melhor do que antes. - Eu recomendo que beba água. Pode se desidratar desse jeito, o que talvez fosse uma benção ao restante de nós.

 - Me lembra de vomitar em cima de você da próxima vez. Na sua boca. - Ela começou a andar enquanto se apoiava no ombro do amigo, os dois na direção das escadas.

 - Anotado. Vou dormir lá no topo do mastro da próxima vez. - O rapaz riu, balançando um pouco o corpo para desequilibrar a companheira. - Um lugar que a senhorita nunca vai alcançar se enjoando desse jeito. Chamo de paraíso.

 - Não tenho culpa se eu fui criada em terra firme como pessoas normais, garoto-peixe. - Retrucou ela após dar um soco fraco nas costas de Dalan. Sua cabeça se elevou até avistar o mastro, com uma singela bandeira branca tremulando no topo. - Você não estava lá agora mesmo?

 O garoto acompanhou sua visão, e um pouco da animação fugiu de seu rosto. Virou o pescoço para trás, avistando as ondas azuis que se agitavam atrás da Intrépida Saída. Fora ali que, um dia, Gamora se encontrava. Estavam atravessando os territórios de sua ilha natal, e não parecia haver uma prova de que realmente tivesse existido. Navegavam por cima de fantasmas. - Estive. Achei que tinha visto alguma coisa, mas não era nada de mais. - Se esquivou sombriamente, ajudando Amanda a descer os degraus.

 Após isso, o convés voltou a ficar silencioso. Os membros da Aurora estavam cansados de todos os acontecimentos das últimas semanas, e decidiram se ater a seus quartos para descansarem. A maioria, pelo menos. Quando a lua já estava alta e cheia no céu, algumas pessoas se encontravam fora de suas camas, como era o caso de Koga, que caminhava tranquilamente pelos corredores sombrios com uma vela na mão.

 O rapaz bateu levemente em um dos quartos disponibilizados pela tripulação no convés inferior, colando o ouvido à porta em busca de qualquer som como resposta. Um chamado fraquinho do outro lado o fez entrar, tendo cuidado para verificar se não havia ninguém o observando no corredor.

 Lyra o encarou de dentro de seu quarto, sentada na cama com as costas no batente e cobertas brancas por cima do corpo. Vestia uma simples camisa branca, e sorriu ao identificar o companheiro. - Não achava que iríamos nos encontrar assim tão cedo. - Disse, se ajeitando levemente para que seu ferimento não voltasse a doer. - Sou em quem marca normalmente essas reuniõezinhas, não é mesmo?

 - Bem, eu quis agitar um pouco as coisas. - Respondeu Koga, rindo enquanto trancava a porta atrás de si. Puxou o banco mais próximo e se sentou ao lado da cama, apoiando os braços nas costas do assento. - Sabe, pra não cairmos na rotina.

 A garota fechou os olhos e balançou a cabeça, rindo pelo nariz. - Bem, então você gostaria de apimentar as coisas. - Zombou, mas não conseguiu manter o rosto sério e desviou os olhos, voltando a rir. - Sobre o que você quer falar? - Perguntou finalmente com o rosto tranquilo.

 Koga engoliu em seco e começou a corar, parecendo se arrepender de ter iniciado aquela conversa. Juntou as mãos nervosas e passou a fitar uma tábua de madeira levemente solta no chão, como se ela possuísse todas as respostas do universo. - Eu quero falar sobre Julie. - Murmurou quase que inaudível.

 Lyra arregalou os sobrancelhas por um instante, até inclinar a cabeça e adotar uma expressão de compaixão. - Own... - Soltou.

 - Ah, começou. - Resmungou o rapaz, revirando os olhos enquanto se inclinava para trás. Sua companheira aumentou o sorriso, se ajeitando na cama mais uma vez.

 - Então. - Começou, estalando a língua antes de continuar. - Sobre o que quer saber? - Perguntou com o rosto inclinado. Koga coçou a cabeça, procurando um jeito de continuar sem que a amiga o zombasse.

 - Ela está estranha. - Confessou finalmente. - Tipo, sem falar com ninguém e passando muito tempo sozinha. No início achei que era normal, já que passamos pelo inferno recentemente. - Engoliu em seco, dando uma olhadela para a garota na cama. - Só que Amanda me disse que... que Sasha e ela brigaram. Sobre aquela mania de Julie sempre evitar missões para nos proteger. Sasha mandou ela resolver isso ou sair da guilda. - Os dois ficaram em silêncio depois daquilo. Lyra sumiu com o sorriso e abaixou o queixo, procurando algo a dizer.

 - Amanda me contou, mas... não acho que Sasha realmente faria isso. - Falou lentamente após o período de reflexão. - Você sabe como ela é. Deve ter sido só uma pressão pra que Julie fizesse a cabeça. - Completou encarando o amigo.

 - Sim, mas e se ela não fizer? - Perguntou Koga, se agitando um pouco. - Você sabe como Julie é. Orgulhosa demais. Se realmente não achar um jeito de se acostumar com o perigo que a gente pode passar... - Ele mordeu a língua, com o peso das consequências finalmente o atingindo. - Acho que ela realmente nos abandona.

 - Bem... - Lyra também parecia nervosa, passando um dedo pelo queixo. - Não sou tão boa quanto Amanda nessa coisa de saber o que fazer com as outras pessoas, mas acho que você deveria dar um tempo a ela. - O amigo a encarou, parecendo confuso. - Digo, é um problema muito grande, e ela realmente precisa resolver isso. - Continuou com as mãos se agitando. - E apenas ela pode achar essas respostas. Fique por perto, mostre que pode ajudá-la com qualquer coisa, mas no final a decisão não vai ser sua.

 Koga permaneceu em silêncio após ouvir aquilo, batendo os polegares em um ritmo constante. - Não era exatamente o que eu queria ouvir... - Riu ele, se levantando. - Mas acho que consigo entender a lógica. Vou tentar fazer isso.

 - Vai ser melhor assim. - O tranquilizou Lyra. O amigo recolheu a vela e se aproximou da porta, destrancando-a. - Se quiser mais conselhos amorosos, estou aqui para te ajudar. - Acrescentou ela.

 - Segura sua onda, cupido. - Zombou o rapaz, colocando a cabeça para fora do corredor em busca de outra alma viva. - Mesmo se alguma coisa acontecer, você vai ser a última a saber. Consigo imaginar as coisas que vai dizer.

 A garota lhe deu a língua, aviso suficiente para que Koga saísse dali rindo. O rapaz caminhou pelo convés escuro, se tornando mais pensativo a cada passo. Acabou tão distraído que nem percebeu os dois vultos que se embrenhavam nas trevas, escondidos atrás de uma grande pilha de barris repletos de carne salgada. Uma das sombras, após um longo período imóvel, se levantou lentamente e espiou a área ao redor.

 - Acho que estamos seguros agora. - Disse Dalan, se recolhendo para a pequena fresta que tinha entre os barris e a parede. Se sentou em um canto com as pernas dobradas perto do peito, deixando a metade do espaço disponível para que Sophie fizesse a mesma coisa. - Já é a segunda vez que vejo Koga passar por aqui perto. Se não soubesse, diria que ele está nos procurando.

 - Tomara que não. - Torceu a garota no outro canto, com o rosto afundado nos joelhos. O espaço ali era bastante apertado, impedindo que um deles pudesse sequer sentar com as pernas cruzadas. Os barris balançavam ligeiramente, acompanhando o navio, e infestavam aquele local com um forte cheiro de carne e sal.

 - Bem... - Começou o rapaz, rindo pelo nariz com o nervosismo. Mesmo que Sophie e ele tivessem a melhor das intenções, não podia deixar de imaginar a reação de um membro da Aurora ao encontrá-los ali. Especialmente Julie. - Quer que eu comece hoje de novo? - Perguntou, estremecendo um pouco ao tentar exorcizar a imagem de Julie socando-o com os pedaços de carne.

 - N-não... - Se adiantou a outra, levantando o queixo. - Obrigada, mas acho que já está na minha vez.

 - Podemos revesar, se quiser. - Deu de ombros Dalan, tentando anuviar o clima. Conseguiu, pois a garota deu um tímido sorriso. - Então, do que quer falar?

 - Bem... - Pensou ela, desviando o olhar. - Pode ser a primeira vez que meus poderes se manifestaram. Tudo bem? - Perguntou ao companheiro, que sorriu.

 - Ei, você pode falar do que quiser. - A acalmou. Ela ruborizou um pouco, escondendo o queixo entre os joelhos e os abraçando. Demorou alguns segundos para começar a falar.

 - Eu devia ter uns treze anos. Já estava na Aurora, e naquele dia fui fazer uma missão no centro de Helleon, se não me engano ajudar a trazer dois cavalos para um novo estábulo. - Ela olhava para baixo enquanto contava, de vez em quando fitando Dalan para ver se ele continuava escutando. - Fiz minhas tarefas e comecei a voltar para a sede. Só que quando cheguei na zona baixa, um grupo de ladrões tentou me assaltar.

 - Ah. Então era por isso que você me alertou sobre a vizinhança naquele dia. - Se recordou Dalan, lembrando de quando ele e Sophie tinham ido fazer compras na cidade. Uma péssima lembrança, mas a garota não pareceu se importar, pois acenou positivamente com a cabeça.

 - Sim. Naqueles dias os assaltos não eram tão frequentes por causa do senhor Adam, mas não podiam deixar uma garota andando sozinha passar batido. Me emboscaram e eu corri, conseguindo me afastar um pouco. - Ela intensificou o aperto nos joelhos, levando-os mais perto do rosto. - Virei a esquina e me encontrei em um beco sem saída. Se eu saísse eles com certeza iriam me achar, então fiquei parada e rezei para que não me vissem.

 - Acho que funcionou, não é? - Perguntou o garoto, procurando provocar um novo sorriso, mas rapidamente se arrependeu da tentativa.

 - É, eles olharam para o beco, mas me ignoraram. Demorei um pouco para perceber que estava invisível. - Ela olhou para a própria mão, escondida nas sombras. - Eu... me lembro que pensei em lutar contra eles. Me defender e voltar para a Aurora. Só que... - Ela fechou os olhos, aguardando alguns segundos. - Não consegui. Fiquei parada, tremendo em um canto, com medo de sair do beco até Julie chegar. De algum jeito, sabia que isso ia se tornar frequente com o tempo.

 - Sophie... - Tentou começar Dalan, mas ela já estava nervosa demais para ser interrompida.

 - Eu... eu juro que tentei várias vezes fazer alguma coisa nos anos seguintes. - Mesmo naquela escuridão, dava para notar que seus olhos começavam a se marejar. - Tiveram algumas missões em que procurei lutar e ajudar, mas apenas fiquei no caminho. Quando você foi... atacado por Desaad naquele dia e eu fiquei sem saber o que fazer, percebi finalmente que não era feita para isso.

 - Escuta. - Disse o rapaz no momento em que a companheira se calava e voltava a afundar o queixo nos joelhos. - Você foi excelente em Thomas Galvan. Eu me lembro disso. Se não fosse por sua ajuda, estaria morto por aquele elfo maluco. - Ela o encarou com os olhos brilhantes, mas não falou nada. Dalan se inclinou para frente, ficando de joelhos. - Eu sei que pode ser difícil, mas você tem que tentar. Mesmo que erre às vezes, não pode parar.

 - Dalan, um erro em uma missão pode custar uma vida. - Alertou ela com a voz abafada pela própria pele. - Eu sei que não conseguiria lidar com isso.

 - Sim, mas... - Ele coçou a cabeça, olhando para a parede ao seu lado. - Isso não é só com você. Todos nós sabemos que falhar pode ser fatal, mas é nessa hora que temos... temos confiança em nossos companheiros. - O rapaz pareceu se animar com sua frase, e optou por seguir essa linha de pensamento. - Em Thomas Galvan, eu confiei em você. Sabia que poderia fazer o que pedi. E tenho certeza de que os outros fariam a mesma coisa.

 - Nem todos... - Confessou a garota, se lembrando da irmã.

 - Se tem gente que não confia... - Começou Dalan, engolindo em seco enquanto pensava no que iria falar. Era mais difícil do que achava. - Prove a eles que estão errados. O único jeito de fazer isso é provar seu valor. E... não vai conseguir fazer isso sem tentar. - Sophie ficou em silêncio, observando o companheiro com os olhos marejados enquanto considerava suas palavras. Era muito estranho ouvir alguém falar que confiava nela. Passou anos sem que nem mesmo ela desse algum valor a si própria. Só que agora alguém lhe estendia a mão, e esse alguém era justamente Dalan. O rapaz que havia feito mais confusa do que nunca nas últimas semanas. No entanto, ele acreditava nela. E não podia ignorar isso, não quando finalmente alguém lhe dava algum crédito.

 Naquele momento percebeu que não podia perder essa confiança. Era a única que lhe restava, e não conseguiria achar outra nem mesmo dentro de si. Deveria fazer algo para retribuir o sentimento dele, pois era o único jeito de conseguir o dos outros. Era sua última chance de provar seu valor, para Dalan, para Julie e para o resto da Aurora. Era só agarrar na única corda que haviam lhe jogado.

 - Posso... posso tentar. - Disse finalmente, levantando um pouco o queixo. Havia um mínimo sorriso em seus lábios, que foram espelhados nos do companheiro. Aproveitaram esse raro momento de tranquilidade, ao mesmo tempo em que uma estranha sensação se apoderou do navio, invisível a quase todos. Quase.

 Naquele momento, em outro lugar, Marcus levantou a cabeça. Ele olhou ao redor com seu olho descoberto, com o coração batendo cada vez mais forte.

 - Algum problema? - Perguntou Sasha, sentada na mesa em que compartilhavam. Estavam na cozinha da Intrépida Saída, dividindo uma simples ceia. O rapaz ficou de pé, com o coração na boca.

 - Precisamos reunir as pessoas e sair daqui. Agora. - Ordenou nervoso, e a garota se levantou.

 - O que houve? - Perguntou ela, mas o destino respondeu por Marcus. Uma enorme torrente d'água estourou a parede atrás deles, explodindo água e pedaços de madeira para todos os lados. Os dois membros da Aurora se abaixaram instintivamente, se protegendo dos restos de comida e utensílios que foram catapultados para longe. O cheiro de água salgada infestou suas narinas e a multidão de respingos os encharcou quase que imediatamente, fazendo com que a adrenalina subisse para níveis estratosféricos. - PARA FORA, JÁ! - Gritou Sasha através do som de cascata, protegendo o rosto com os braços enquanto se virava para a porta. Seus tornozelos já estavam afundados na água do mar, mas ela correu para saída, chapinhando no oceano que invadia o aposento.

 Assim que alcançaram o corredor e fecharam a porta atrás de si, um estrondo ao longe os fez estremecer. Se viraram e viram um redemoinho de ondas em sua direção, com as camadas lutando pela primeira posição naquela apertada galeria. A água veio tão rápida que impediu qualquer reação, batendo neles com a força do mar e arremessando-os para longe.

 Marcus se viu arrastado pela torrente, que o cobriu e o socou por todos os lados. Se viu jogado como um boneco de pano, perdendo a noção de espaço até chocar suas costas em uma parede. Se impeliu rapidamente para cima e conseguiu sentir o ar frio do convés inferior, arfando em busca de energia. Abriu os olhos através do sal, vendo que os corredores já estavam tomados quase que por inteiro pela água.

 Sasha emergiu ao seu lado e ele se virou para ela, percebendo que o navio estava inclinando. Isso era péssimo, mas havia um mísero lado bom: as galerias à direita ainda não haviam sido completamente submergidas. - POR AQUI! - Rugiu ele, segurando o braço da companheira e nadando para a saída. Os dois bateram contra as ondas, ouvindo o ranger maléfico da madeira se destacar através do som do oceano martelando o convés. Estavam em um navio condenado.

 - PRECISAMOS ACHAR OS OUTROS! - Gritou Sasha, segurando uma maçaneta para tomar impulso. O chão já se dobrava perto dos sessenta graus, e ela se apoiou no batente para saltar em direção à esquina, conseguindo abraçar a parede com a água em suas canelas. Atrás dela, Marcus se segurava em uma mesa que boiava.

  - Consegue ver alguém? - Perguntou o rapaz. Sasha passou uma mão pela testa, afastando as mechas encharcadas. As velas haviam apagado, e a única luz vinha dos buracos por onde o Mar de Cellintrum tentava invadir. Portanto, demorou algum tempo para ela ver os barris que rolavam em sua direção.

 A garota instintivamente se largou, caindo nas ondas abaixo de si. Os barris seguiram seu caminho, cobrindo sua visão. Eram diversos, muito mais do que conseguia atravessar. Eles formaram uma mortalha, jogando-a para o fundo do convés. Sasha tentou passar por eles, mas sempre que conseguia se desviar de um, dois outros ocupavam seu lugar. Seu coração bateu mais forte e seus olhos se arregalaram através do sal ardido, buscando alguma saída milagrosa. Bolhas de ar escaparam por sua boca, elas também procurando a superfície.

 Eis que uma mão agarrou sua maria-chiquinha, puxando-a para cima. Impeliu a cabeça para trás ao romper a barreira do ar, buscando o oxigênio salvador. A voz de Dalan se sobrepôs ao caos, chamando-a pelo nome.

 - SASHA! VEM PRA CÁ AGORA! - Ela seguiu o som, nadando cega através dos redemoinhos. Conseguiu apalpar um braço que a encaminhou, e duas mãos a puxaram para um chão molhado.

 - Ela está bem? - Parecia Sophie. Abriu os olhos, vendo que os dois estavam ajoelhados ao seu lado. Atrás de si, Marcus os alcançava.

 - O que está acontecendo? - Tossiu a garota, colocando as duas mãos na madeira aos seus joelhos enquanto recuperava o fôlego.

 - Bem, acho que está claro. Mas só pra ratificar uma informação que pode passar batida... - Ofegou Dalan, batendo o cotovelo na parede. - Isso aqui era o chão. - Os outros três olharam para ela, e perceberam que as tábuas horizontais realmente comprovavam a afirmação.

 - Se estamos em noventa graus... - Pensou Marcus em voz alta, olhando para cima. - Podemos sair por aqui.

 - Espera, e os outros? - Perguntou Sophie, abrindo os braços. Havia perdido sua boina, e os cabelos encharcados estavam colados ao redor da cabeça. - Não podemos simplesmente deixá-los aqui!

 - Se alguém tivesse ficado para trás, teríamos visto. - Avisou Sasha, se levantando debilmente. - E de qualquer jeito, podemos iniciar uma procura inútil caso todos tenham escapado. Só saberemos disso se chegarmos à superfície. - Sophie fez uma cara de desespero, mas não havia o que questionar. Marcus estendeu a mão para o teto, que mais cedo era a parede.

 - Protejam a cabeça. - Os três obedeceram rapidamente, e ele fez uma pequena explosão que arrebentou a madeira acima deles. Alguns objetos avulsos caíram pelo buraco, mas felizmente não acertaram nenhum dos membros da Aurora. Um aposento escuro os encarava do alto, e Dalan se adiantou e juntou as mãos em uma concha.

 - Damas primeiro. - Sasha foi na frente, colocando o pé nas mãos do garoto e sendo impulsionada para o rombo no teto. O rapaz quase escorregou com a força, muito porque o chão já estava se inundando. - Rápido, por favor. - Pediu nervoso. Sophie foi a segunda, e a companheira a ajudou a subir. Um estrondo agourento se propagou no corredor abaixo, e Dalan engoliu em seco. - Vai, vai, vai! - Marcus foi o próximo da fila, e as garotas o ajudaram a alcançar o aposento em que estavam. Sasha estendeu a mão, convidando-o a pular.

 Naquele instante, no entanto, uma nova torrente explodiu. A água veio com tanta velocidade que Dalan sumir em um piscar de olhos, arrastando-o para a morte. - DALAAAN! - Gritou Sophie, se ajoelhando perto do buraco. Marcus rapidamente se jogou pelo espaço.

 - Eu pego. - Disse ele antes de sumir. Sasha apenas conseguiu estender a mão, mas o companheiro já havia sumido no córrego violento abaixo deles. Ao seu lado, Sophie começava a chorar.

 - Preste atenção! - Ordenou Sasha, segurando a colega pelos dois ombros. Seus olhos azuis encontraram com os verdes da companheira, ambos arregalados e nervosos. - Precisamos ir para cima! Eles sabem se virar, mas temos que sair daqui! - Se perguntou se estava tentando convencer Sophie ou ela mesma. De qualquer jeito se levantou, procurando alguma saída. Estava no que parecia um quarto de hóspedes não usado, com uma cama tombada e escrivaninhas esparramadas. Havia uma janela acima de si, e uma noite escura e tempestuosa os encarava.

 A garota correu para pegar alguma coisa para arrebentar o vidro mas a parede se rompeu à sua frente, trazendo consigo uma torrente para abraçá-la. Foi impelida para trás, tentando se livrar da água que invadia sua boca e suas narinas, fechando os olhos para tentar ao menos garantir um sentido para uso futuro. Sophie a puxou para o lado, salvando-a momentaneamente. No entanto o aposento começava a se inundar, acompanhando o restante do navio.

 Sasha arregalou os olhos, com o medo envolvendo seu coração. Havia esperado um momento de paz, mas parecia que era pedir demais. - Temos que sair daqui! - Gritou, começando a socar a parede atrás de si. Talvez o aposento ao lado tivesse alguma saída, pensou meio que rezando. Seus punhos se chocavam com a madeira, batendo com tanta força que começaram a sangrar.

 Sophie por sua vez foi em direção ao buraco, bambaleando através da água que já chegava à cintura. Talvez pudessem sair pelo rombo, pensou ela. As lágrimas se confundiam com os resquícios do mar, mas ela tentou seguir em frente. Quando passou pelo buraco do chão, algo segurou seu tornozelo. E gritou.

 Sua companheira olhou para trás com o berro agudo, conseguindo ver a garota sendo arrastada para baixo. - SOPHIE! - Sasha saltou em sua direção, mergulhando na água para salvar a colega. Ela já estava com o tronco atravessando o buraco, as bochechas infladas e os olhos abertos de terror. Tentou estender a mão, mas um puxão a fez descer até sumir. Seu grito se tornou uma miríade de bolhas, que se agitaram no espaço em que estivera antes.

 Sasha voltou à superfície, arfando. - SOPHIE! - Berrou para o teto, que já estava bem próximo. O aposento se inundava com uma velocidade impressionante, e a garota já não conseguia alcançar o chão. Se dirigiu à janela, começando a socar o vidro. - ALGUÉM ESTÁ AÍ? - Não conseguia enxergar nada do outro lado, com exceção dos pingos de chuva que martelavam impiedosamente. O mar já alcançava seu pescoço, e ela levou a boca tão próxima do vidro para respirar que seu hálito marcou o material. - ALGUÉM! - Em um instante já estava submersa, e naquele momento um raio cruzou as nuvens. O traço branco iluminou uma imagem que se gravou nas retinas de Sasha, tão forte que ainda a via enquanto mãos agarravam desajeitadamente seu tronco e puxavam para baixo. Ela continuou pensando na cena quando perdia os sentidos, sendo arrastada para o fundo da Intrépida Saída em seu caminho para o leito do mar. Era tal como uma pintura, e nela se conseguia ver o céu tempestuoso e uma figura solitária planando acima da janela, tão alta que parecia um boneco. A iluminação não entregava sua identidade, mas mostrava o que estava vestindo.

 Uma capa roxa, decorada com prata, que se agitava rebeldemente no vento. 

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