quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Aurora - Capítulo 34: Celebridade


AURORA
CAPÍTULO 34: CELEBRIDADE


 - Ele acordou? - Perguntou Stella ao abrir a porta do almoxarifado médico, um pouco ofegante e suada por ter descido as escadas correndo. Dentro do aposento, Kulela se sobressaltou.

 - Céus. Aprendam a bater na porta. - Retrucou o reptiliano, guardando uma caixa de madeira em uma das várias prateleiras nas paredes. Aquela sala de teto baixo parecia mais apinhada e escura do que de costume, muito pela improvisada cortina azul-escura que a cortava quase que pela metade. O homem que havia caído ferido na frente da sede da Aurora havia quase dez horas fora tratado ali, uma enfermaria improvisada. Kulela resmungou um pouco, empurrando um pouco a prateleira para a direita. - Mas sim, ele está consciente. É meio que esperado, visto quem é. - Disse, verificando o conteúdo de algumas outras caixas. - Embora tenha levado consigo metade de nossos medicamentos.

 - Se não atrapalhou o tratamento dos outros, não vejo isso como um problema muito grave. - Respondeu Stella, entrando no aposento e passando ao lado do companheiro. - Se Tom Burstin morresse em nossos portões, eu nem sei o que faria. Provavelmente fecharia a guilda. - Não que isso parecesse muito improvável naqueles tempos, pensou veementemente seu lado negativo, mas rapidamente tentou esquecê-lo. Afinal, tinha uma celebridade na Aurora. O famoso Tom Burstin da mítica Sociedade do Infinito, a maior guilda proveniente de um território humano, estava se recuperando em seu próprio almoxarifado. O mesmo homem que lutara sozinho contra uma horda de esqueletos de prata e saiu sem nenhum ferimento. Aquele que avançara solitariamente por quase duzentos quilômetros além da Fronteira para salvar uma garotinha de orcs sequestradores. A lenda que...

 ...que agora estava seminua na frente dela, pensou Stella assim que abriu a cortina. Do outro lado, um homem de tez bem escura e extremamente definido a encarou desconcertado enquanto que travava seu movimento de botar uma calça. Por um ínfimo instante, os olhos dela foram do rosto quadrado e os cabelos curtos e negros, passando pelos olhos grandes e castanhos e pelo nariz reto, descendo até o tórax marcado por cicatrizes e ao abdômen, conseguindo ver o... pano, por favor, correu ela enquanto puxava novamente a cortina para tapar sua visão. Acabou girando e quase caindo, se segurando no tecido que por um breve segundo ameaçou acompanhá-la. Com o rosto tão vermelho quanto o vestido que usava, se virou assustada para Kulela. - Ele já deveria estar de pé? - Perguntou, quase que sibilando. Do outro lado, o reptiliano deu de ombros.

 - Se eu não consegui até agora manter quatro garotos imberbes na cama durante a droga do tratamento deles, acho que não tenho a menor chance com aquele ali. - Retrucou ele, dando as costas para voltar a arrumar seus medicamentos. Stella pigarreou, tentando se recompor. Pare de agir como uma colegial, ordenou a si mesma. Era uma líder de guilda e uma viúva, não uma adolescente. Assim, ajeitou a postura e voltou a abrir a cortina, se deparando com o paciente desta vez vestido. Graças aos deuses.

 Do outro lado, Tom parecia tão envergonhado quanto Stella havia estado alguns segundos atrás. Ele era bem alto, com quase um metro e noventa, e usava um colete verde por cima de uma camisa marrom clara e uma calça negra. - Oh. Boa... - Começou ele com a voz animada, olhando ao redor em busca de alguma indicação das horas. No entanto, não haviam janelas no almoxarifado. - Noite, acho eu. Me desculpe por agora há pouco, mas eu odeio usar essas camisolas hospitalares. - Comentou, apontando para os trapos embolados ao pé da cama. Ele em seguida sorriu, um gesto que parecia tão natural naquele rosto quanto respirar.

 - Não se preocupe. - Se apressou a dizer Stella, acenando minimamente uma das palmas enquanto fechava os olhos. - Foi apenas um desencontro.

 - Bem, eu agradeceria se você pudesse não mencionar esse tal desencontro para minha mulher, se um dia encontrá-la. - Soltou Tom, rindo nervosamente. - Quer dizer, eu gosto muito dos meus braços onde estão. Assim como meu pescoço. - A líder da Aurora apenas sorriu, imaginando que essa seria a última coisa que iria contar a qualquer alma viva. O homem em seguida estendeu a mão. - Bem, acho que começamos com o pé esquerdo. Meu nome é Tom Burstin, membro da Sociedade do Infinito.

 - Stella Alba, líder da Aurora. - Respondeu a mulher, apertando energeticamente a mão que lhe foi oferecida. Já sabia quem ele era, mas não viu motivo de mencionar isso. Ao ver o traço de confusão que passou pelos olhos do outro, acrescentou. - É uma guilda aqui em Helleon.

 - Ah. Ufa. - Se aliviou Tom, colocando a mão no peito. - Estou em uma guilda, graças aos deuses. Eu realmente não fazia ideia do que havia acontecido. Quando acordei, pensei que havia sido capturado por algum grupo terrorista. Sem ofensas. - Soltou rapidamente, com as palmas estendidas à frente do corpo.

 - Tudo bem. - O acalmou Stella, sorrindo. Havia algo em Tom que a deixava tranquila e contente, embora não soubesse o quê. Muito provavelmente era seu modo alegre e falante, mesmo quando havia acabado de ser hospitalizado em um lugar que não conhecia. De alguma forma, ele transpirava intimidade e confiança mesmo com as poucas palavras que haviam trocado. Assim, as formalidades não pareciam tão importantes, dando-lhe oportunidade para sanar sua curiosidade. - Se não se importa, gostaria de saber o que aconteceu com você. Quero dizer, hoje de manhã estava caído em frente à nossa sede, e não acordou até agora há pouco.

 - Bem, deixe me ver. - Disse ele, girando os olhos para cima enquanto que parecia pensar. - Estava atravessando o Mar de Cellintrum, se não me engano. Perseguindo um cara chamado Ladrão das Nuvens, que havia roubado um banco lá em Luthaneras. Consegui alcançá-lo e derrotá-lo, mas pelo visto o cansaço foi o suficiente para me fazer cair. - Ele falava como se fosse um simples passeio matinal, ignorando o fato de que havia acabado de dizer que cruzara um mar por si mesmo. - Ladrão das Nuvens. - Riu ele, apoiando as costas na parede enquanto cruzava os braços. - Esses caras estão começando a vir com uns nomes estranhos, recentemente. Bandidos tentando se diferenciar dos outros bandidos.

 - Felizmente não temos esse problema em Arasteus. - Comentou Stella, no mesmo momento em que a barriga do paciente roncava audivelmente. Tom corou, segurando a região.

 - Me desculpe, mas vocês tem algo para comer? - Perguntou ele, meio rindo e meio desconcertado. A líder da Aurora sorriu como se ele fosse uma criança.

 - Estamos servindo o jantar. - Disse ela, apontando com o dedão para a porta. - Você pode ir para lá e pegar um prato. Eu tenho que ficar aqui e... verificar umas coisas. - Acrescentou, sabendo que deveria checar as reservas de medicamentos com Kulela. Provavelmente seriam mais notícias ruins, concluiu com desânimo. Tom por sua vez agradeceu e se levantou, passando pelo curandeiro com novos agradecimentos e adentrando o saguão da Aurora.

 No aposento maior, todas as cabeças se viraram para ele assim que passou pela porta. Tom parou, um pouco desconcertado, e passou os olhos pelas pessoas rapidamente em busca de um bom lugar para se sentar. Havia um anão na direita, e atrás dele alguém de cabelos azuis. Um rapaz de tranças e outro de cabelos negros compartilhavam uma mesa, e à esquerda haviam duas gêmeas e uma garota de cabelos longos e castanhos. No entanto, sua atenção se voltou para um grande homem no canto, com o rosto estranhamente familiar.

 - Eu conheço você. - Disse alegremente, caminhando na direção do homem. Dominic engoliu em seco, olhando para os companheiros de forma assustada e constrangida. O outro se sentou à sua frente, se inclinando na mesa circular de madeira com o rosto animado. - Eu me lembro! Você era um membro do exército da Aliança!

 - Ah... sim. - Respondeu Dom desconcertado. Todos no saguão olhavam para os dois, mas Tom não pareceu se importar desta vez, genuinamente alegre.

 - Uma vez quando eu tinha dez anos, meu pai me levou para a Fronteira. - Começou ele, tentando tirar a expressão de confusão do outro homem. - Ele queria que eu fosse um soldado, e decidiu fazer uma viagem comigo para o Passo dos Andrealphus, onde eu tenho certeza de que você estava lá!

 - Ooh. - Se lembrou o membro da Aurora, sorrindo enquanto as memórias se solidificavam. - Sim, eu me lembro daquele lugar. Fora conquistado com muito empenho pelos Andrealphus. Na época era apenas um posto avançado fora da linha da Fronteira, mas um pouco mais tranquilo do que o restante dos outros territórios. - Dom também se inclinou na mesa, colocando os cotovelos na superfície. - Eu acho que sei do que você está falando. Tem uns... trinta e dois anos, se não me engano. Naquela época, eu era só um simples batedor recém-aprovado pela Academia, no topo de seus vinte e dois aniversários.

 - Sim! - Disse alegremente Tom, feliz em ver que o outro recordava da história. - Naquele dia, um esquadrão de harpias atacou de surpresa aquele lugar! Quase alcançaram a mim e ao meu pai, mas você surgiu do nada e nos defendeu de três delas sozinho! - Sua admiração era quase palpável, fazendo com que Dom se sentisse constrangido e feliz por todo aquele reconhecimento.

 - Ah, bem, não foi nada. - Tropeçou ele nas palavras, coçando distraidamente uma das inúmeras tatuagens azuis em seu peito. - Não tanto quanto sua famosa batalha contra o Escorpião nas tumbas de Woondani. A cidade não falava de outra coisa. - Soltou, fazendo com que o outro se reclinasse na cadeira e corasse.

 - As histórias são mais exageradas do que a realidade. - Confessou em tom de desculpas, soltando um sorriso nervoso.

 - E a vez em que você caçou um grupo de orcs que havia conseguindo atravessar a Fronteira? - Disse Koga, surgindo do nada e batendo as mãos na mesa com o rosto explodindo de animação.

 - E as histórias que dizem que você encontrou um centauro? - Perguntou Amanda, repetindo o gesto do companheiro. Dom pareceu desconcertado pelos dois garotos, mas Tom não se importou pela pressão.

 - Bem, a vez do centauro foi uma história engraçada. Se quiserem, eu posso contar. - Acrescentou ele, e naquele exato momento Koga e Amanda se sentaram com velocidade e barulho nas cadeiras, e Julie e Dalan se aproximaram para ouvir. Do outro lado, Wieder se levantava com um sorriso no rosto.

 - Ele parece bem amigável, não? - Perguntou para Sasha, mas quando se virou para trás percebeu que não havia ninguém ali. Ficou curioso por alguns segundos, mas deu de ombros e se encaminhou até Tom Burstin, onde uma conversa animada se estenderia por horas.

 Após isso, quase quarenta minutos depois de todos terem ido dormir, Dalan saía de seu quarto vestido com seu habitual traje negro. Ele olhou para os lados, temeroso de estar sendo observado. O corredor sombrio da Aurora o encarou, mas nenhuma alma viva fez a mesma coisa. Um pouco nervoso, o rapaz saiu e se embrenhou no escuro, tentando se lembrar das direções. Era direita, esquerda, e depois... esquerda de novo? Ou era direita? Ficou na bifurcação com os batimentos cardíacos crescendo, mas uma mão o encostou no ombro antes que pudesse fazer alguma coisa.

 - Estou aqui. - Sibilou Sophie, voltando a ficar visível. Estava mesclada nas trevas, vestida com um casaco escuro por cima do roupão, o que a ajudava a se camuflar. 

 - Ufa. - Riu o rapaz inquieto, acompanhando-a através da escuridão. Ela o levou até um canto do corredor, dando passos silenciosos. Seria a primeira vez que os dois iriam conversar sobre os problemas que afligiam a garota. Ela havia decidido aquele lugar pois apenas Lyra dormia ali perto, e por estar em recuperação seria muito difícil que acordasse para beber um copo d'água ou algo do tipo. Assim, os dois foram até a janela, onde Sophie se sentou no chão.

 - Desculpa por te fazer se esconder dos outros. - Pediu enquanto que o companheiro se agachava ao seu lado. - Mas eu prefiro que Julie não saiba de nossos encontros por enquanto. N-n-não que tenha algo de mais, digo... - Tentou acrescentar, balançando as mãos agitada.

 - É melhor assim. - Se adiantou Dalan, baixinho. Dominic havia dito que era um consenso geral que deixassem Sophie cuidar sozinha de seus problemas, e não achava que o restante da guilda ficaria feliz em vê-lo quebrar esse tal pacto. Assim, era melhor que se encontrassem em segredo. Deslizou uma das pernas pelo chão enquanto dobrava a outra, apoiando as costas na parede em busca de uma posição confortável. Do outro lado, a garota apenas puxou os joelhos contra o peito.

 Um silêncio nervoso ocorreu em seguida, um acontecimento comum quando se tratava daqueles dois. Dalan, incomodado, começou a pensar em como quebrar aquilo o mais rápido possível. Não queria que a outra pensasse que essa fora uma má ideia. - Então... - Grasnou baixinho, imediatamente se arrependendo. - Por onde começamos.

 - Ah, desculpa. - Pediu a garota com a voz quase sumindo, encolhendo um dos ombros enquanto corava e fazia uma careta. - Eu não estou muito acostumada a falar sobre essas coisas. Nem mesmo com Julie. - O companheiro esfregou um dedão no outro, virando o olhar para o corredor escuro à sua frente.

 - Bem, eu posso começar, se quiser. - Soltou, colocando uma mão sobre o joelho dobrado. - Quer dizer, enquanto você não se sentir confortável. O que acha? - Sophie acenou positivamente a cabeça, corando mais um pouco. Dalan suspirou, pensando em alguma história. - Bem, eu posso contar sobre a minha primeira missão. Foi um pouco estranha.

 - Está falando sobre o gato da senhora Cattuveis? - Perguntou a garota, fazendo com que o rapaz refletisse um pouco até se lembrar do que ela estava falando.

 - Ah, não. Estou falando do recrutamento de Wieder, um dia depois dessa missão. - Ele ajeitou sua postura, se aproximando alguns milímetros da companheira. - Veja, eu estava transportando algumas caixas com Dominic quando...

 No meio daquela frase, a porta do quarto de Lyra se abriu. Dalan e Sophie se calaram e ficaram imóveis, ambos extremamente vermelhos e com o coração batendo tão rápido como o de um beija-flor. Não conseguiram ver que era Koga quem saía pela porta, mas ficaram em silêncio muito tempo depois dele virar o corredor.

 Por sua vez o rapaz de tranças caminhava tranquilamente pelos corredores, se dirigindo até seu próprio quarto. Começou a assoviar baixinho, tentando imitar uma música que havia ouvido alguns marinheiros cantarem alguns dias atrás. Teria continuado sem preocupações até que escutou um barulho estranho, vindo da academia. Franziu a testa e mudou seu rumo, se dirigindo até aquele aposento.

 Ao abrir a porta, descobriu que era Sasha quem fazia aqueles sons, iluminada pela luz que vazava pelas janelas abertas. A garota estava fazendo flexões no tapete, mas se imobilizou no momento em que foi avistada. Koga mordeu o lábio superior, se inclinando para olhar o céu lá fora. - Ahn... devem ser meia-noite, Sasha. - Perguntou, se virando para a companheira. - O que está fazendo aqui a essa hora?

 - Tom Burstin já foi dormir? - Perguntou ela com os olhos bem arregalados, ainda em posição de flexão. 

 - Eu... acho que sim. - Respondeu, olhando para o corredor atrás de si. - Pra quê você... ngh. - Não conseguiu dizer mais nada, pois a garota havia se adiantado e o empurrado contra a parede, com o cotovelo em seu pescoço. - Não me mate, não me mate, não me mate, por favor. - Repetiu o rapaz em um tom agudo, fechando os olhos em temor.

 - Koga, preste atenção. - Ordenou ela, passando uma mão no cabelo molhado que caía em sua testa, encharcada de suor. - Preciso que você faça uma coisa para mim. - Ofegou.

 - Você pode me soltar primeiro? - Pediu o rapaz com o indicador estendido. Sasha o obedeceu, dando-lhe as costas. - O que você quer? Diga que não envolve algo perigoso. - A garota passou a mão pelo braço, como se estivesse arrependida de ter iniciado aquela conversa.

 - Perigoso? Não. - Soltou ela finalmente, virando minimamente o pescoço para encará-lo. - Só que eu preciso que você faça exatamente o que eu mandar. - Do outro lado, Koga engolia em seco. Conseguia sentir a profundidade da furada que estava se metendo.

 Assim, no alvorecer do dia seguinte, ele adentrou o terreno da parte de trás da sede, acompanhado por Dalan e Tom Burstin, que estava bem mais animado do que seus sonolentos companheiros. O sol lançava um tom rosado no céu, ainda fraco demais para gerar algum calor e espantar os resquícios frios da noite. 

 Dalan bocejou, colocando a mão direita na frente da boca. Descobrira ontem que era um lentíssimo contador de histórias, e a descrição de sua missão em Vertreit havia durado no mínimo duas horas. Tinha a sensação de que Koga bateu em sua porta apenas dez minutos depois dele ter se deitado. Distraído, nem percebeu a tábua de madeira jogada no chão até que tropeçasse nela. Conseguiu permanecer em pé, olhando ao redor para ver se haveriam mais obstáculos. Eram resquícios das casas para os Recons, projeto abandonado porque o material fora transferido para Wieder restaurar a sede depois da luta contra o Culto Púrpura.

 - Eu não sabia que vocês possuíam Recons de estimação! - Disse animadamente Tom, cortando os pensamentos do rapaz. O homem colocou a mão por cima dos olhos, esticando o pescoço para frente para tentar enxergar melhor. - Não são animais fáceis de domesticar! Como os pegaram?

 - É... melhor não perguntar. - Se evadiu o rapaz, dando um sorriso nervoso. Mal poderia esperar para ter que contar para Sophie sobre aquela missão vergonhosa, concluiu sarcasticamente. Os três continuaram andando pela relva molhada, até que Koga se adiantou.

 - Olha só, é Sasha! - Alertou ele, apontando para frente. Dalan acompanhou seu dedo, conseguindo ver a garota fazendo um trote pelo jardim interno. Bem, ele tinha que parabenizá-la pela dedicação, concluiu consigo mesmo. O sol mal havia aparecido no céu. - Puxa vida, como ela é incrível! - Continuou Koga, colocando a mão animadamente nos quadris. - Nunca desiste, nunca descansa, está sempre preparada para treinar e treinar! Certamente, é um exemplo de pessoa!

 Dalan semi-cerrou os olhos para o companheiro, em uma expressão da mais pura confusão. Sasha, que se aproximava, imediatamente ficou rubra. Olhou para o rapaz de tranças em fúria velada, transpirando um desejo homicida que não foi captado. Tom, por sua vez, também parecia alheio à tudo aquilo.

 - Realmente, é impressionante! - Disse ele, e a garota o encarou com os olhos arregalados e o rosto ainda mais vermelho. - Não são nem seis da manhã!

 - Ah, bem... obrigada. - Respondeu timidamente Sasha, passando as mãos por uma das maria-chiquinhas. Dalan colocou as mãos nos bolsos e entortou um canto da boca, continuando com sua face confusa. Que tipo de dimensão paralela havia invadido durante seu sono?

 - Bem, eu não quero atrapalhá-la! - Avisou Tom, levantando as mãos enquanto que apoiava o queixo no peito. - Continue com seu bom trabalho. - A garota acenou positivamente com a cabeça e passou por ele, ficando entre um transtornado Dalan e um Koga que parecia muito cheio de si. Este a encarou com um sorriso confiante no rosto, até que ela puxou sua trança para perto.

 - Você escapou por pouco da morte. - Ameaçou por entre os dentes, soltando-o. O rapaz guinchou baixinho com medo, e Dalan suspirou aliviado. As coisas pareciam normais, agora. Os três homens continuaram até onde os Recons estavam deitados, presos pelo pescoço a uma estaca no chão e com um balde de carne ao lado.

 - Meu filho iria adorar ver isso. - Confessou Tom, cruzando os braços enquanto observava os animais ainda sonolentos. - Ele ama seres fantásticos. De fato, possui conhecimento para se tornar um veterinário, se quisesse. - Se virou para Koga, que continuava atônito. - Vocês tem um veterinário para cuidar de seus animais?

 - Ah, não exatamente. - Respondeu ele, saindo de seu estupor. - Adotamos uma solução mais caseira. Dalan e Amanda os alimentam, já que são os únicos que os bichos não tentam morder. Quer dizer, em circunstâncias normais. - Acrescentou, encolhendo os ombros.

 - Como assim circunstâncias normais? - Questionou o homem, e Dalan se adiantou.

 - Não se preocupe com isso. - Teve pressa em dizer, dando um olhar reprovador para o companheiro. A senhora Stella havia pedido que não contasse a Tom sobre os problemas que a guilda havia passado recentemente. - Nós estávamos procurando um veterinário, mas decidimos adiar um pouco.

 - Até termos certeza de que a guilda vai estar em pé mês que vem. - Comentou distraidamente Koga, o que chamou a atenção do convidado.

 - O que houve? - Perguntou ele, se virando para encarar o rapaz. Dalan também fez isso, lançando um olhar fulminante ao companheiro. Qual é o seu problema, perguntaram seus lábios. Eu estou com muito sono, se desculparam os do outro. Tom, percebendo que havia algo de estranho ali, se virou para os animais, dando um passo à frente. - Eles estão cobertos de cicatrizes! Aconteceu alguma coisa com eles antes de virem? - Questionou novamente, e Dalan sentiu o suor descer pelo pescoço, puxando um pouco do colarinho para deixá-lo passar. Os dois ficaram em silêncio, e Tom passou os olhos de um para o outro. - O que aconteceu com a guilda de vocês? - Dalan e Koga engoliram em seco e se entreolharam em nervosismo. O ato de saber mentir era um dom, e muitos na Aurora partilhavam dessa habilidade. Infelizmente, essa lista não incluía aqueles dois.

 Enquanto isso, Stella estava adormecida em seu escritório. Estava com o rosto colado na superfície de sua mesa, cercada pelas planilhas financeiras da guilda. Seu sono era tão profundo que dormiria até o meio-dia, se não fossem as repentinas batidas na porta. Ela abriu os olhos, e o som se repetiu.

  - U-um momento! - Ela levantou rapidamente a cabeça, passando as mãos no rosto para espantar os últimos resquícios da letargia. Olhou para baixo e percebeu os papéis espalhados por toda a expansão da mesa, recolhendo-os agitada de qualquer jeito. - Espera um pouquinho! - Pediu novamente, jogando as planilhas em uma gaveta qualquer enquanto que passava uma mão pelos fios entrelaçados. Pigarreou e se ajeitou na cadeira, procurado fazer parecer que não estava sentada ali há mais de doze horas. - Pode entrar!

 Tom adentrou o quarto, mergulhado em uma expressão diferente da que apresentou no dia anterior. Ele tinha o rosto indeciso, parecendo um pouco nervoso. As mãos estavam enfiadas nos bolsos da calça, e caminhava agitado. Se sentou em frente à Stella, que o encarou curiosa.

 - Ah... bom dia. - Disse ele, coçando o pescoço e virando o rosto. A mulher o acompanhou, mas o homem ficou em silêncio por mais alguns segundos. - É... eu gostaria de agradecer vocês. Por terem me salvado. Acho que não fiz isso direito. - A líder da Aurora se surpreendeu um pouco com aquilo, mas acabou sorrindo.

 - Não há de quê. Era uma forma de retribuir por tudo o que você já fez. - Comentou, e Tom arregalou os olhos para ela.

 - Sim! Retribuir! É isso mesmo! - Se agitou ele, agarrando os braços da cadeira. - É o que eu faço! Tentar retribuir a bondade das pessoas! E é isso que vim fazer! - Ele se adiantou, e Stella inconscientemente apoiou as costas no encosto da cadeira. - O irmão da minha esposa possui uma estalagem em Konan! - Começou a dizer, tão rápido que certas palavras se atropelavam. - Eu gostaria que vocês passassem duas semanas lá como forma de agradecimento por terem me tratado!

 A mulher ficou alguns segundos tentando decifrar a mensagem, e começou a agitar as mãos assim que a compreendeu - N-não precisa! - Se apressou em dizer. - Não fizemos isso esperando nenhuma recompensa!

 - Não se preocupe com isso. - A acalmou Tom, abrindo um sorriso aliviado. - Além do mais, eu me sentiria melhor se vocês fossem. Acredite. - Stella começou a pensar, se lembrando das planilhas que se amontoavam em sua gaveta. Talvez uns dias de folga não fossem tão ruins.

 - Bem, eu acho que podemos aceitar esse pedido então. - Respondeu ela, um pouco receosa porém de certa forma contente. - Embora não tenhamos te salvado por alguma recompensa.

 - Eu não pensei nisso, acredite. - Disse Tom, se levantando da cadeira. - Bem, vou aproveitar e voltar para casa, agora. Minha esposa não tem notícias minhas faz um tempo, e ainda preciso comunicar meu irmão sobre a estadia de vocês.

 Stella se levantou, contornando a mesa - Vou te acompanhar até a saída. Aceita pelo menos um café antes de ir?

 - Eu posso gastar uns minutinhos a mais. - Comentou ele, sorrindo. Revirou os olhos, parecendo se lembrar de algo importante. - Ah, quase ia me esquecendo. Vocês estão aceitando novos membros para a guilda? - Perguntou enquanto que a mulher abria a porta.

 - Sempre estivemos. Por quê a pergunta? - Disse, parando ao lado da saída. Tom atravessou o portal, procurando desviar o olhar.

 - Ah, nada. Apenas... espere me encontrar em Konan. - Se evadiu. Stella encarou com curiosidade suas costas por algum tempo, mas esqueceu isso com facilidade, fechando a porta atrás de si.

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