quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Aurora: Capítulo 33 - Aos quatro cantos


AURORA
CAPÍTULO 33: AOS QUATRO CANTOS

 Kulela estava caminhando de volta à sede da Aurora, atravessando ruas desoladas e vazias com duas bolsas de couro abarrotadas nas mãos. Uma delas estava transbordando de faixas de linho, mas o reptiliano não parecia se importar com as poucas que caíam a cada sacudida. Ele continuou seguindo distraído, com os olhos semi-abertos e a crina desembaraçada. Haviam sido dias difíceis. Estava acostumado a cuidar de um ou outro reptiliano por mês, um total contraste aos quatro pacientes que havia ganho na guilda. Trabalhoso, resmungou consigo mesmo.

 Passou pela praça em frente à sede, recém-reparada por Wieder, observando o chafariz em pedaços no centro. Ele estava despedaçado, com destroços se espalhando por vários metros. A única providência que havia sido tomada fora desligar a água, tornando a fonte ainda mais desolada do que antes. Um belo reflexo, pensou Kulela enquanto que virava o rosto. Continuou andando até que uma voz o chamou por trás.

 - SENHOR REPTILIANO! SENHOR REPTILIANO! - Ele se virou, vendo um garoto gordo correndo em sua direção. Vestia uma camisa vermelha e um suspensório preto, junto com um pequeno chapéu em sua redonda cabeça. Seus cabelos eram castanhos, e o nariz parecia uma pequena batata. Ele carregava um caderninho na mão esquerda enquanto trazia uma pena na direita, que seria abastecida pelos dois potes de tinta que se penduravam no suspensório. - TENHO QUE FALAR COM O SENHOR!

 - Não sou seu amigo para me chamar pelo nome de minha raça, garoto. - Resmungou o curandeiro, dando-lhe as costas. - Nem estamos em uma ocasião formal. Aprenda a se dirigir às pessoas.

 - Desculpa, desculpa. - Ofegou ele, conseguindo alcançar Kulela. Levou as mãos aos joelhos enquanto buscava retomar o ar, mas o reptiliano continuou adiante. - Meu nome é Galvin Prado. Sou da Gazeta de Helleon e queria que... ei! - Exclamou ao ver que já estava bem longe de seu alvo. Desatou a correr novamente, se pondo entre o membro da Aurora e sua sede.

 - Garoto, se o que quer é um conselho, eu não sou nutricionista. Não posso te ajudar. - Disse o curandeiro cansado, mas Galvin não saiu do lugar.

 - É rápido. Rápido. Quinze segundos. - Ele abriu um pote de tinta em seus suspensório, manchando toda a sua camisa na agitação. Kulela levou a cabeça para trás, pensando se realmente deveria cronometrar o tempo que havia disponibilizado.

 - Você... você é da Aurora, não? - Perguntou o garoto enquanto que corria por suas anotações, manchando agora seu caderninho.

 - Sabe enxergar? - Perguntou o outro, apontando para sua novíssima marca de guilda no braço com um dos dedos. Galvin não levantou a cabeça, parecendo ter finalmente achado a página que procurava.

 - Ah, aqui está. Senhor... - Ele olhou para Kulela esperando que dissesse seu nome, mas o curandeiro se negou com um olhar entediado. - Certo. Senhor, o povo tem uma pergunta muito importante. De fato, eles anseiam por essa reposta.

 - Vá direto ao ponto. - Reclamou o membro da Aurora, suspirando pesadamente.

 - Certo. Certo. - Se agitou o garoto, apoiando a pena no papel. - Senhor, você acha que a Aurora está realmente tão desesperada assim para ter que contratar um reptiliano? - Perguntou animado, levantando a cabeça para enxergar os olhos semi-cerrados do curandeiro.

 Alguns minutos depois, Kulela explodia pelos corredores da Aurora. - Eu juro, se eu tiver que ouvir mais um desses malditos racistas me fazendo perguntas imbecis, vamos ter que adicionar um outro assassinato à lista de crimes dessa guilda. - Ele pisava no chão com força, se dirigindo ao quarto de Lyra. - Acredite, eu farei questão de mostrar as provas desse homicídio. A cabeça daquele moleque é tão redonda que posso usá-la como... - Naquele momento o reptiliano abriu a porta, se calando ao encontrar a cena lá dentro. - O que está acontecendo aqui? - Perguntou com os olhos arregalados.

 Lyra, do outro lado, corou furiosamente. Ela estava de pé ao lado de sua janela, limpando o vidro com um pano úmido. Vestia uma simples e longa camisola branca, por onde seus revoltos cabelos roxos se espalhavam. - Eu... - Começou ela, apoiando o pano no batente.

 - Para sua cama! Agora! - Ordenou, apontando para o móvel. A garota tentou correr para cumprir a ordem, mas algo fisgou em seu abdômen e ela parou, segurando a região ferida com uma careta. Kulela soltou o ar de forma irritada, ajudando-a a se deitar. - Qual o problema de entender que não é uma Yulliana? Teve sorte de não ter morrido, e mais sorte ainda de te terem dado um mês para se recuperar. Portanto, não abuse uma terceira vez.

 - Sinto muito. - Se desculpou ela, deitando em sua cama. - Eu ia ficar repousando como você me disse, mas vi que as janelas estavam sujas e pensei que...

 - Existem outras pessoas para fazer isso. - A interrompeu o curandeiro, puxando um pote branco de sua bolsa e esfregando seu conteúdo nas mãos. - Pessoas que não estão com um rombo no corpo. Me parece inteligente deixá-las fazer isso.

 - Eu não quero atrapalhar. - Confessou Lyra, com uma expressão de culpa. - Eles já estão com muita coisa na cabeça nos últimos dias.

 - Acredite, se continuar assim eles terão que se adicionar um corpo à lista de preocupações. - Avisou Kulela, levantando a camisola da companheira para revelar os enormes curativos em seu abdômen. Ele começou a desenrolar o linho gasto que cobria sua cintura, revelando lentamente a gigante ferida no lado do corpo. A garota se silenciou, virando o rosto enquanto os tratamentos se iniciavam.

 - Como estão os outros? Já descobriram como vão sair dessa? - Perguntou ela com o rosto sofrido. Embora tentassem privá-la dos problemas que a Aurora passava, era impossível quando se tinha uma melhor amiga tão falante quanto Amanda ou um confidente distraído como Koga. Lyra sabia que o dinheiro havia acabado, e que ninguém queria os contratar. Tal fato era excruciante, ainda mais sabendo que não poderia fazer nada enquanto não se recuperasse.

 Kulela não respondeu de imediato, preferindo passar uma substância verde escura na ferida da garota. Ela fechou os olhos e cerrou a boca com a dor, deixando que o reptiliano se reservasse com seus pensamentos. A situação para ele soava insustentável. Se a guilda não recebesse pagamentos, não havia nenhum outro modo de receber dinheiro. Já não tinham aparentemente muitas reservas, e os altos gastos estavam minando o pouco que restava. No entanto, sabia que afirmar suas dúvidas não contribuiria com nada no psicológico de Lyra.

 - Eu espero que sim. Apostei em vocês. - Resmungou, se esticando para puxar as novas bandagens na bolsa ao seu lado. A marca da Aurora se destacou em seu braço verde, um retrato de sua aposta. Espero não ter feito a escolha errada, pensou ele.

 No segundo andar do prédio, uma reunião ocorria na sala de Stella com o objetivo indireto de provar que Kulela não estava errado. O aposento estava lotado, exigindo muito mais do que as três singelas cadeiras que eram proporcionadas. Amanda e Wieder estavam sentados em frente à mesa da líder, enquanto que Koga, Sasha e Marcus aguardavam atrás deles.

 Stella, em seu próprio assento, esfregava os dedos na testa. Haviam sido duras semanas para ela, que ainda não havia conseguido recarregar as energias. Olheiras se acumulavam embaixo de seus olhos, marcando seu rosto pálido e ligeiramente doente. Seu cabelo azul caía desembaraçado pelos ombros, com uma mecha atravessando sua testa. Ela retirou os fios para o lado com a mão, aproveitando o movimento para esfregá-la na testa. - Por favor, digam que vocês têm notícias boas. - Pediu ela com um leve toque de desespero e cansaço em sua voz.

 - Bem... - Começou Amanda, se virando para encarar Sasha. - Nós percorremos a cidade de cabo a rabo. Não encontramos ninguém que queira nos contratar novamente. Nem mesmo clientes antigos.

 - E se não encontramos em Helleon, é impossível esperar algo do resto de Arasteus. - Concluiu a filha da líder, com os braços cruzados. - É mais provável que a moda de contratar milicianos e mercenários se espalhe, agora. São mais baratos, fazem missões que não temos direito, e pela primeira vez tem mais respeito do que nós.

 - E se depender da mídia, é o que vai acontecer. - Disse Wieder, se remexendo inconfortável em sua cadeira. - Querendo ou não, viramos o inimigo público número um para eles. Visandre era um representante da classe alta, que agora se vê realmente ameaçada pelo adversário dele, um homem de origens populares. E acho que eu não preciso acrescentar que os ricos controlam os jornais. - Completou, se virando para Stella.

 A mulher apoiou o queixo nas mãos, considerando as alternativas. - E esse tal candidato novo? Você acha que eles nos apoiaria?

 - Só se quiser perder o apoio do povo. - Respondeu Wieder, encolhendo um dos ombros. - O estrago já está feito com eles. Tiveram semanas de ataques contra nós nos jornais.

  - Acho que a única solução é fazermos missões fora da região. - Sugeriu Amanda, se virando para os outros garotos. - Como está o transporte para fora de Arasteus?

  - É possível, mas temos duas notícias ruins e uma boa. - Disse Marcus, colado à parede no fundo. - A primeira ruim é que os marinheiros locais não querem nos oferecer mais transporte. Especialmente de graça. Quanto à notícia boa, descobrimos que os de fora não se importam.

 - Só que a segunda ruim é que eles exigem pagamento. - Se adiantou Koga, antes que um sentimento de esperança pudesse se propagar no escritório.

 - Não havia como ter dado a notícia boa por último? - Perguntou Wieder, se inclinando todo na cadeira para que pudesse enxergar os rapazes. - Normalmente isso deixa um gostinho melhor no final.

 Koga encolheu os ombros, torcendo o canto da boca. - Ei, eu tentei fazer isso. Só que não tinha como deixar essa pro final sem estragar toda a lógica dos argumentos. - Sasha naquele momento se adiantou, batendo com as duas mãos na mesa e encarando a líder nos olhos.

 - Nós temos que fazer essas missões, mãe. É nossa única esperança. - Pressionou, mantendo o olhar obstinado. Stella por sua vez voltou a esfregar as mãos nos olhos, levando-as até as têmporas.

 - Não há dinheiro para isso. - Alertou lentamente, como se estivesse falando com uma criança. - Eu sei o quanto eles devem nos cobrar por um transporte oficial para fora de Arasteus, seja por mar ou por terra. Só iremos conseguir pagar caso juntemos todas as nossas reservas, mas e depois? Como vamos pagar a missão? Como vamos nos alimentar, pagar o aluguel, sobreviver enquanto isso? - Ela encarou a filha nos olhos, começando a se agitar. - Não há como fazermos um empréstimo. Fui a todos os bancos da cidade, e não temos garantia nenhuma para que nos permitam algo assim.

 - Eu juro que volto o mais rápido possível. - Pediu Sasha, se inclinando na mesa. - É a nossa última chance!

 - Mesmo que você faça a missão em tempo recorde e volte em apenas um dia... - Começou Stella, se afundando na cadeira. - O investimento não vai valer a pena. Vamos gastar mais te mandando para lá do que você pode trazer de volta. - Ela apoiou o queixo nos dedos, sentindo que a realidade se tornava visível para cada um dos membros da Aurora ali. Os olhos de Amanda começaram a se marejar, enquanto que Koga apoiava a testa no punho enquanto cerrava os dentes. Marcus se tornava mais sombrio em seu canto, ao mesmo tempo em que Wieder coçava a barba, procurando uma alternativa. Os olhos de Sasha se arregalaram enquanto ela respirava cada vez mais rápido, procurando manter a compostura. - O dinheiro acabou. - Conseguiu completar a líder da guilda com a voz embargada. Um silêncio desesperador se seguiu, até que a porta se abriu com foça.

 Kulela adentrou a sala, esquadrinhando todos os cantos antes de falar. - Onde estão meus pacientes? - Resmungou por entre os dentes rangidos.

 Em outro canto de Helleon, Sophie estava sentada em um pequeno barranco relvado, com os dois pés balançando para fora. O mar de Cellintrum se estendia diante dela, soprando um vento que agitava a grama e os cabelos da garota, mas não o suficiente para levar sua boina branca. A membra da Aurora possuía o olhar distante, se perdendo por entre as ondas rebeldes que complementavam o ambiente desabitado. Sequer formulava um pensamento, preferindo deixar a mente vagar livre, se perdendo enquanto mergulhava em um oceano de melancolia tão grande quanto o corpo d'água à sua frente. O mar se quebrava na praia, revolvendo e batendo, batendo, e batendo...

 - Eu... não me lembro de te ter visto por aqui. - Disse uma voz, sobressaltando a garota. Ela se virou para o lado e viu Dalan se sentando a dois metros dela, olhando em sua direção. O vento sacudia seus cabelos, batendo no rosto pálido.

 - Dalan? O que... você... - Se desconcertou Sophie, corando e arregalando os olhos. - O que veio fazer aqui?

 - Bem, o motivo principal foi fugir de Kulela. - Admitiu o rapaz, encolhendo um dos ombros enquanto torcia levemente a boca. Se ajeitou na ponta do barranco, também deixando os pés balançarem no pequeno precipício. - Só que se está perguntando porque exatamente aqui, é outra história... - Completou ele, se virando para o oceano.

 Um silêncio se seguiu, sendo pontuado apenas pela quebrada das ondas na praia. A garota se incomodou um pouco, procurando as palavras certas para que a conversa continuasse. Antes que conseguisse, no entanto, Dalan voltou a falar.

 - Você... - Tentou dizer, estalando a língua. De todas as pessoas da Aurora, era Sophie quem mais o fazia ter vontade de voltar a agir de forma contida. Se lembrou naquele momento de Amanda e imaginou a garota lhe dando um esporro por isso. Talvez fosse melhor controlar essa vontade. Por mais que o incomodasse, ela parecia saber mais sobre esse tipo de assunto do que jamais conseguiria. Estendeu o dedo para frente, direcionando o olhar da companheira. - Minha ilha ficava para lá. - Admitiu em voz alta o suficiente para ser ouvido através do vento. Sentiu algo aquecer levemente os olhos, mas procurou ignorá-lo. - Quando eu cheguei em Helleon, descobri por acidente esse lugar. Sei que dava para ver Gamora aqui, e às vezes dou uma escapada da guilda para vir aqui e... sei lá, torcer para que caia um raio e ela volte ao lugar que sempre esteve.

 Sua voz começou a ficar embargada. Não havia falado sobre isso com outra pessoa desde que entrou na Aurora. Do outro lado, Sophie ficou observando aquele determinado pedaço do mar por alguns segundos enquanto pensava. - Como você está passando? - Conseguiu dizer de forma truncada, se virando para ele com uma expressão retorcida de compaixão. - Digo, sobre sua ilha.

 Dalan refletiu um pouco, procurando as palavras certas para explicar o que sentia e tentando controlar a voz. Tossiu. - De vez em quando eu prefiro não pensar muito nisso. Parece algo muito grande, descobrir o que aconteceu. - Disse, batendo levemente uma das mãos na grama e engolindo em seco. Era mais difícil falar sobre aquilo do que pensava, mas conforme seguia em frente, mais naturais as palavras soavam. - A senhora Stella disse que, assim que eu entrei na guilda, ela procurou falar com o tal tenente Wolff sobre isso. Ninguém toca no assunto, parece uma conspiração. Por enquanto eu não consigo fazer nada, e tentei abstrair disso para não pirar. - Ele abaixou o queixo, sentindo a tristeza abraçar seu coração. - Às vezes eu acho que estou fazendo a coisa errada. Parece muito egoísmo esquecer de todos eles para tentar me sentir melhor.

 - Não, não... - Se adiantou Sophie, com uma expressão condescendente. Ela levou os joelhos ao peito, abraçando as canelas enquanto voltava a fitar o mar. - Eu... sei como é. Se sentir assim.

 - Sobre seu pai, não foi? - Perguntou o rapaz. A garota acenou positivamente com a cabeça, mas o silêncio voltou a se manifestar. Ótimo, pensou Dalan consigo mesmo. Nada como ser extremamente direto, se condenou sarcasticamente. No entanto, Sophie voltou a falar.

 - Quando meu pai sumiu... - Começou ela, com os olhos se marejando. - Eu achei que quando crescesse, seria forte o suficiente para procurar por ele. Que nem Julie. - Abraçou com mais força as pernas, apoiando o queixo entre os joelhos. - Achava que eu não continuaria a ser a menina chorona e medrosa que eu era. Que me tornaria uma super-heroína.

 - Sophie... - Tentou dizer Dalan, até ele percebendo que a companheira não parecia bem. Ela se virou em sua direção, conseguindo trazer consigo um sorriso fraco.

 - Eu... realmente queria agradecer pela chance que você me deu na Caverna dos Reclusos, Dalan. De coração. - Confessou ela com o rosto vermelho, fechando os olhos e tentando abrir o sorriso. - Eu não tenho essas chances todo dia. Não me lembro de alguém ter confiado em mim a tal ponto. - A garota desviou o rosto, voltando a afundar o queixo. - Só que isso provou o que todos diziam. Eu não estou pronta para participar da Aurora. Não nesse nível.

 - Como assim? - Perguntou o rapaz enquanto que a outra se levantava.

 - Eu não consegui fazer nada contra Desaad. Você quase morreu enquanto eu apenas olhava. E Sasha nem conseguiu prendê-lo porque fiz a besteira de ser envenenada. - Ela espanou os pedaços de grama da roupa, fungando um pouco. - Julie estava certa. Não nasci para isso.

 - Espera... - Tentou dizer Dalan, mas a garota o interrompeu.

 - Me desculpa por ter te incomodado com isso. - Soltou ela com a voz abafada, tentando manifestar um sorriso que já não era mais possível. Passou a mão no rosto, limpando os princípios de lágrimas. - Eu normalmente tento não encher vocês com meus problemas, só que... - A garota engoliu em seco, os olhos já brilhando. - Eu não me sinto bem. - Soltou com a voz embargada.

 Começou a se afastar, deixando seu companheiro para trás. Dalan se levantou para segui-la, mas estancou. Uma lembrança aflorou em sua mente, onde Dom conversava com ele nos saguões da Aurora. Que era um consenso da guilda deixar com que Sophie conseguisse resolver seus problemas sozinha. Deixe ela ir, disse a voz do homem. Ela precisa disso. Precisava ter a força interior para depender apenas de si mesma.

 O rapaz fechou os punhos com força enquanto que o coração batia forte, sentindo uma estranha familiaridade com aquela situação. As costas solitárias de Sophie se afastando lhe lembravam um certo alguém, mas não conseguia se lembrar de ter visto uma cena parecida com aquela. Ficou em conflito, tentando alcançá-la e ao mesmo tempo permanecer onde estava, enquanto que seu cérebro tentava lhe dizer algo que não conseguia traduzir. Rangeu os dentes, com o rosto marcado pela dúvida que se agitava em seu coração. A companheira agora parecia sumir de vista, e algo martelava firmemente a cabeça do garoto.

 Naquele momento, se fez a luz. Dalan correu na direção da garota, conseguindo finalmente entender o que aquela situação o lembrava. Era a recordação de um garotinho andando sozinho na mata, sem ninguém para chamar de amigo e marcado permanentemente pela solidão. Aquela criança era ele, e percebeu naquela hora que não poderia jamais deixar Sophie se sentir daquele jeito. O rapaz a alcançou e agarrou a mão dela, fazendo com que a companheira se virasse para encará-lo.

 - Dalan... - Tentou dizer ela, com o rosto corando imensamente e as lágrimas brilhando no sol de meio-dia.

 - Sophie, preste atenção. - Começou o garoto, ainda segurando seus dedos. - Você é boa. - Fechou os olhos com força, percebendo a besteira que havia falado. - Digo, não nesse sentido. Quer dizer, talvez sim, mas... argh! - Grunhiu fechando as pálpebras, tentando reformular rapidamente seus pensamentos. - Escute. - Recomeçou, encarando-a no fundo dos olhos. - Você não tem que se sentir assim.

 - Mas... - Dalan no entanto a interrompeu, percebendo que precisava dizer rápido o que queria antes que a fina corda que unia suas ideias se partisse.

 - Eu sei que você está passando por problemas. - Se atropelou o rapaz. - E eu sei que passar por isso sozinho é uma droga. Eu realmente sei. Isso te corrompe, fazendo achar que está tudo de errado com o que você é, como se não houvesse nada aproveitável em si mesmo. - Sophie ficou em silêncio, apenas o encarando com os olhos ainda marejados. Inconscientemente, apertou a mão de Dalan, que ofegava em continuar. - Eu passei por isso. Nunca tive amigos de verdade, e essa coisa me marcou por anos e anos. Mas olhe, a Aurora me deu a chance de rever esses meus medos. Me deu companheiros que se importam com o que eu sou, e vão além do caminho deles para me ajudar. - Pensou naquele momento em Wieder e Amanda, e toda a ajuda que lhe deram. - E eu sou imensamente grato por isso. - Confessou, balançando energeticamente a cabeça. - E eu quero fazer isso com você. Quero ser essa pessoa para você. Quero que saiba que pode contar comigo. - Conseguiu soltar, como se estivesse arrancando um monstro de seu coração. - Eu não quero que passe pelas mesmas coisas que eu passei. Não quero que ninguém passe.

 Sophie por sua vez se manteve quieta, parecendo não conseguir acreditar no que estava ouvindo. Acabou derramando um filete de lágrimas, contorcendo as bochechas para prendê-las. - Você tem certeza? - Perguntou com a voz embolada. O rapaz se lembrou mais uma vez do que Dominic havia lhe dito, mas desta vez o ignorou facilmente.

 - Sim. - Os dois ficaram em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, com o interior de Sophie se aquecendo e Dalan tentando ao máximo não estragar aquele momento. Poderiam ficar ali para sempre, mas uma figura esverdeada se destacou atrás da garota. - Oh céus. - Soltou seu companheiro, vendo que Kulela estava andando em sua direção. E não parecia nada feliz. 

 De volta à Aurora, Julie estava sentada em uma das mesas ainda remanescentes do saguão, apoiando a face no braço deitado enquanto que passava o dedo distraidamente pela superfície. Teria ficado ali durante horas, até que Dominic se sentou à sua frente.

 - Você sabe que pode comer, não é? - Perguntou o homem com sua característica voz altiva. - Quer dizer, não me lembro de ter visto você almoçado nesses dias. Ou feito qualquer outra refeição. - A garota esperou alguns segundos antes de se ajeitar, passando a mão pelos curtos cabelos.

 - Como você consegue? - Perguntou ela de súbito, ajeitando sua postura na cadeira. Dominic revirou os olhos, tentando entender o que aquela frase significava.

 - Ser incrivelmente musculoso mesmo sem malhar constantemente? - Perguntou, encolhendo levemente os ombros. - Bem, é uma história engraçada. Uma vez eu...

 - Não. - Interrompeu Julie, sem ânimo para piadas. - Eu quero dizer como você consegue deixar que nossos companheiros se envolvam em situações de vida ou morte. - Ela contorceu o rosto, abrindo os braços. - Quer dizer, você se preocupa com os membros da guilda tanto quanto eu me preocupo. Só que caminha numa boa com eles enquanto que se dirigem aos portões do inferno. Como. Você. Consegue? - Repetiu ela, apoiando os cotovelos na mesa e segurando os cabelos. Aquilo já estava a deixando insana.

 Dominic suspirou, cruzando os braços. - Sabe, Julie, eu vivi minha cota de anos.

 - Eu sei, você sempre fala isso. - Interrompeu ela, mas o companheiro pareceu não se importar.

 - E na minha cota de anos, vi quase todos os meus amigos morrerem. - Isso foi o suficiente para que a garota se calasse, e Dom se inclinou na mesa. - Passei trinta anos na Fronteira. Não é um lugar agradável, mas lá aprendi uma das coisas mais importantes da minha vida. Se alguém quer arriscar a vida em prol de um bem maior, você deve respeitar isso.

 Julie começou a corar, mordendo o lábio enquanto pensava. - Eu ainda não entendo. - Confessou em voz baixa, encarando o amigo.

 - Não é algo tão simples. - Riu singelamente o homem, se ajeitando na cadeira. - Só que você pode encarar esse assunto por outra perspectiva. Se quer tanto protegê-los, faça por onde. Não irá conseguir domá-los. No máximo um ou dois, mas te garanto que não serão todos.

 Com aquelas palavras, a garota se pôs novamente em silêncio meditativo enquanto mordiscava o lábio inferior. Fazer por onde? O que Dom estava tentando dizer? Precisava entender aquilo rapidamente, pois em partes concordava com Sasha, por mais que isso a matasse por dentro. Se não conseguisse aceitar que existiriam missões potencialmente mortais, não adiantaria continuar na Aurora.

 Naquele momento ela estendeu o queixo, observando o saguão acabado ao seu redor, e seu ânimo voltou a murchar. De quê adiantaria fazer sua decisão se não existisse mais uma guilda após isso? A Aurora estava com seus dias contados. Era uma questão de tempo até que o dinheiro acabasse, e depois seriam forçados a se debandar, deixando para trás seus sonhos e suas amizades. No meio de todo aquele desespero, ela riu. Os deuses eram seres, no mínimo, engraçados. Havia conseguido o que sempre quis. Ninguém mas ali iria correr perigo em uma missão, visto que elas não iriam mais ocorrer. Era o fim.

 Acontece que os deuses eram mesmo seres engraçados. Pois no exato momento em que Julie terminava seus pensamentos, um estrondo varreu os céus. Chamou a atenção de todos ali, desde os que se enfurnavam em uma reunião infrutífera no segundo andar, passando pelos companheiros no térreo até Dalan, Sophie e Helder, que se aproximavam da sede. Pois as nuvens se iluminaram com um brilho vermelho e uma estrela desceu dos céus, caindo na praça em frente à Aurora. Um novo estrondo se seguiu, e uma cratera nasceu onde os resquícios da fonte se aglomeravam.

 E no meio dela, jazia um homem pegando fogo.

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