AURORA
CAPÍTULO 36: O NÁUFRAGO VERDE
Regressus era mais uma das centenas de ilhotas que se espalhavam pelo Mar de Cellintrum, tão pequena que nem chegava a aparecer em certos mapas. Mal possuía quinhentos metros quadrados, e embora parecesse um pequeno paraíso por suas praias de areia fina e branca e densa floresta tropical, não recebia um visitante há anos. O máximo que chegava à sua costa eram destroços de naufrágios e caixas que se perdiam, todas atoladas na areia até que a próxima tempestade as levasse para outra residência.
No entanto, isso havia de mudar. Pois em uma limpa manhã após uma noite de tumulto no céu, uma alma viva se encontrava em Regressus. Era um reptiliano de crina negra, vestido com uma esfarrapada camisa branca e uma calça marrom, deitado de costas na orla. Seu nome era Kulela, e era um membro da Aurora. A maré alta havia o levado até a beira da praia, deixando-o encharcado porém aparentemente vivo. Seu rosto se contorcia no sol da manhã, preso em um pesadelo contínuo de corredores submersos e giratórios. Uma onda vinha em sua direção, tão forte que o arremessou para fora do navio, onde as trevas do mar o abraçaram e o levaram para longe...
- AH! - Berrou ele, se levantando com um salto. A luz o incomodou em resposta, fazendo com que ele esticasse o braço na frente dos olhos. Seu coração batia com firmeza, bombeando o sangue aquecido pelo sol. Olhou ao redor, percebendo a praia suja de destroços que se aglomeravam ao seu lado. Sua mente fez a associação que não queria fazer. Não havia sido um pesadelo.
- EI! - Gritou para o vazio, esperando ser respondido. Sem sucesso. Se levantou e sentiu uma pontada no abdômen. Rangeu os dentes e olhou para baixo, mas não havia nenhum corte visível. Provavelmente foi apenas uma pancada, concluir ao tatear a região. Voltou a encarar ao redor, procurando seus companheiros, mas estava sozinho. Sozinho em um lugar desconhecido, com apenas o que tinha no corpo.
Arregalou os olhos e apalpou o peito, percebendo com alívio uma tira de couro coberta por bolsos que envolvia seu tórax. Costumava guardar seus ingredientes mais raros consigo com medo de perder o restante em algum tipo de acidente, o que surpreendentemente tinha se tornado realidade. Só que eles não fariam nada sozinhos. Eram apenas catalisadores, dependentes de substâncias que recheassem o bolo, por assim dizer. Não o ajudariam ali, em uma terra perdida pelos deuses.
Kulela, percebendo que estava exausto, se sentou na areia tomando cuidado com o ferimento. Suspirou, pensando no que faria em seguida. Só lhe restava rezar que alguém da Aurora estivesse vivo, mas seria muita ingenuidade achar que o achariam ali. Deu uma olhada na ilha atrás de si, com sua mata selvagem e vazia. Duvidava que aquele lugar fosse sequer catalogado, que dirá uma rota de navios. Por um momento se viu desejando estar de volta às florestas Cellintrunianas. Podia ser um eremita, mas pelo menos tinha a situação sobre controle.
Um vento quente soprou do mar, agitando sua crina em direção à mata. Observou as árvores desarrumadas, desfocando a visão enquanto que pensava em suas opções. Não adiantaria de nada ficar ali e lembrar de dias mais fáceis. As primeiras tribos de reptilianos haviam conseguido gerar civilizações em florestas fechadas, portanto ele deveria ser capaz de pelo menos garantir uma semana de suprimentos, supôs enquanto que conscientemente ignorava o fato de que não havia nenhum registro de uma tribo alojada em ilhotas minúsculas.
Talvez alguns frutos ou uma poça de água da chuva o aguardassem, se esperançou enquanto que ficava de pé. Poderia ser o suficiente para sobreviver até que montasse um barco ou algo parecido, mas primeiro precisava garantir sua sobrevivência,
Deu uma volta no bosque da ilhota, recebendo boas e más notícias. Não haviam animais nem frutos comestíveis ali, mas Regressus possuía um pequeno valão que havia armazenado a água da chuva. Além disso, Kulela notou um cardume de peixes passando bem próximo da ilha ao sair da mata pela primeira vez. Decidiu cortar um galho grosso e usar como lança, assegurando assim seu alimento do dia-a-dia.
Além disso, conseguiu achar alguns materiais bastante interessantes. Havia um conjunto de árvores ali chamadas de guerrilheiras, cujas folhas largas eram um excelente componente de medicamentos. Sua casca avermelhada também tinha propriedades especiais, no entanto serviriam de forma mais ofensiva. O reptiliano separou o que conseguia da guerrilheira magra e torcida, guardando-os em seus bolsos livres. Talvez pudesse já preparar um remédio, considerou ele enquanto colhia as folhas. Só os deuses saberiam o que aconteceria naquela ilha, e se prevenir nunca era demais. Já as cascas exigiriam quase toda a água doce que ele tinha ali, portanto decidiu guardá-las.
Se pôs rapidamente a trabalhar, triturando as folhas com as mãos e misturando-as com água e um pouco de pó amarelo que havia trazido consigo. O cheiro do composto começou a ficar forte, enchendo o ambiente do odor semelhante ao de um gato molhado. Kulela buscou um pouco de areia, improvisando a farinha que precisava. Toda aquela atividade o fez se lembrar de seus dias de treinamento, isolado em alguma floresta avulsa enquanto passava os dias recolhendo ingredientes e formulando experimentos diversos.
Riu com o canto da boca ao se lembrar de seu supervisor, um reptiliano velho e meio senil que se recusava a atender outras raças devido a todo o preconceito que sofreu em sua vida. A maior parte do corpo docente o considerava apenas mais um excêntrico, mas Kulela se fascinou pelo que ele dizia. Fora como se sua mente tivesse se aberto, percebendo a situação de merda que sua raça passava e que não podia mais aceitar aquilo. Se perguntou o que seu mentor diria ao encontrá-lo hoje. Membro de uma guilda humana. Realmente, os deuses gostavam de brincar com as vidas dos mortais.
Após algumas horas o remédio estava pronto. Kulela o guardou em um dos seus bolsos, se levantou e esticou as costas, sentindo os ossos estalarem. A dor nas costelas havia passado, mas o estômago gemeu, ansioso por se alimentar. Talvez conseguisse pescar alguns peixes para o resto do dia, considerou enquanto pegava sua lança improvisada. Estava quase saindo da floresta quando notou que não estava mais sozinho.
Havia um pequeno barco à beira de Regressus, uma simples canoa de madeira que balançava a cada pequena onda que passava por perto. Perto dela, na praia, um homem de longos cabelos brancos e acolchoadas roupas negras caminhava calmamente. Sua mão estava presa aos cabelos roxos de uma garota que era arrastada de rosto para baixo na areia, aparentemente desacordada. Ela vestia uma encharcada camisola branca, e mesmo com a face oculta era bastante familiar ao reptiliano. Lyra.
Kulela voltou instantaneamente às sombras da mata, arregalando os olhos enquanto que respirava fundo. Sua mente paranóica trabalhava em velocidade, atenta à qualquer som oriundo da praia. Aquilo não parecia uma missão de salvamento. O homem estava sequestrando sua companheira. E o que faria depois? Se tinha a encontrado tão rápido, com certeza sabia do naufrágio do Intrépida Saída. Aquilo fora arquitetado? Estavam atacando a Aurora? O coração do reptiliano batia com vontade em seu peito, temendo pelo pior.
Respirou fundo e inclinou minimamente a cabeça para trás, procurando o homem vestindo negro. Para sua surpresa, não havia nenhum movimento em sua direção. Ele parecia satisfeito com a garota em suas mãos e caminhava de volta para seu barco, assobiando baixinho. Os olhos de Kulela se arregalaram. Não estavam procurando por ele.
Voltou a se ajeitar atrás da árvore, suspirando aliviado. Havia acabado de entrar na guilda, não era mesmo? Mesmo que fosse um ataque, muito provavelmente iriam se esquecer dele. Estava salvo. Era só aguardar mais alguns minutos e poderia estar em segurança, podendo concentrar todos os seus esforços em sair dali. Talvez voltasse às Florestas Cellintrunianas, considerou. Voltar à vida calma,sem humanos. Fechou os olhos, sorridente.
O rosto de Lyra se destacou em sua escuridão particular. Haviam conversado um pouco durante as constantes sessões médicas, não? Aprendeu a gostar um pouco dela. Poderia dizer o mesmo de Stella, mesmo que a mulher fosse bastante distraída. Deu uma risada com o canto da boca ao se lembrar de quando caçou Dalan e Sophie por metade de Helleon, bufando a cada passo...
Não, pensou ele abrindo os olhos, cortando o restante das lembranças em sua mente como uma faca. Sabia como aquilo ia acabar. Não, não, não, ele não devia nada à eles. Havia curado seus ferimentos e era só, não tinha que fazer mais nada. Eram apenas conhecidos, e agora seus caminhos se desencontrariam. Afinal, era um reptiliano orgulhoso. Havia sido ensinado a não se rebaixar às outras raças da Aliança. Todos racistas. Todos...
... exceto a Aurora. Não havia sido tratado mal durante seu tempo na guilda. Claro, haviam desavenças, mas elas nunca pareciam motivadas por preconceito. Pelo contrário, desde o início eles foram calorosos, cada um à seu próprio jeito. Não era mesmo? Ele apoiou a nuca na árvore, olhando com dúvidas para o céu. O que seu mentor faria? Ele havia sido tratado com desprezo durante toda a sua vida, chegando rancoroso aos seus anos finais. Só que... será que as coisas teriam sido diferentes caso ele tivesse encontrado uma Aurora? Será que o próprio Kulela agiria de forma diferente após essa experiência?
Saco.
-EI! - Gritou o mais alto que podia, saindo da mata com uma expressão obstinada no rosto. O homem se assustou de início, mas voltou a se acalmar assim que viu o reptiliano.
- Desculpa te incomodar, senhor selvagem. - Disse como se estivesse falando com uma criança. Ele largou Lyra e juntou as mãos, se reclinando na direção de Kulela. - Eu juro que vou sair daqui e nunca mais voltar, tudo bem? Irei te deixar fazer fazendo rituais tribais ou qualquer coisa que sua raça faça para passar o tempo.
O reptiliano sorriu, ainda com o coração batendo forte. Pelo menos o homem havia tornado sua decisão um pouco mais fácil. Iria adorar bater nele. - Acredito que você esteja procurando por alguém, não é? - Perguntou, levantando a manga e mostrando a Marca da Guilda. O sequestrador demorou um pouco para compreender aquelas informações, e quando fez isso Kulela já havia voltado a se embrenhar na mata.
- VOLTE AQUI! - Gritou, deixando sua presa jazida na areia. Fechou a mão em um punho e preparou o braço para desferir um soco no ar.
Kulela estava correndo pela mata quando uma enorme corrente de ar o atingiu pelas costas, arremessando-o para longe. Bateu em uma árvore com o rosto e esteve bem próximo de perder os sentidos. O que aconteceu, perguntou enquanto se recuperava. Olhou para trás a tempo de ver o homem estender o punho em sua direção. Uma nova rajada de força o atingiu, impelindo-o com força através das folhas e dos troncos.
O reptiliano tentou elaborar um contra-ataque, mas já era tarde. Sem nem ter aberto os olhos foi jogado para o lado, se arrastando na areia. Ouviu passos e tentou reagir, jogando seu rabo na direção dos sons. Aparentemente foi inútil, pois se viu arremessado para o ar. Conseguiu abrir as pálpebras e perceber que estava muito acima da ilha. Naquele momento o homem de cabelos brancos se impeliu ao ar em sua direção, usando seus próprios poderes para gerar impulso. Ele sorria, um riso maníaco e cheio de dentes.
Em um instante o adversário agarrou o pescoço de Kulela e girou o corpo, atirando-o para a mata. A velocidade era tão grande que apenas a queda foi notada, um estouro no meio da pequena floresta que derrubou as árvores mais próximas e gerou uma pequena cratera. E no meio dela, jazia o membro da Aurora.
Kulela tossiu, cuspindo o sangue que enchia seus pulmões. Preciso fazer alguma coisa, pensou desesperado. Conseguiu ouvir o homem aterrizar na praia à distância e se arrastou para trás, se forçando pelos braços. Seus dedos mergulharam na poça d'água que havia encontrado antes, e um plano surgiu em sua cabeça em um estalar de dedos.
Rapidamente ele desamarrou a faixa de couro em seu peito, arranhando sua própria pele na confusão. Eu vou me arrepender disso profundamente, concluiu enquanto arrancava a bolsinha onde estava o composto de cura e jogava o restante do acessório na poça. Passos agora se aproximavam, o som se misturando com o fervilhar grosseiro da água perto de sua cabeça. As cascas avermelhadas estavam em decomposição, soltando um cheiro acre. Vamos, vamos, vamos, implorou enquanto tentava abrir a bolsinha.
Infelizmente uma nova corrente de ar o atingiu, o separando da valise e o jogando por cima da poça até cair na grama, onde os respingos esvoaçados o encontraram. A pele ardeu de forma insana onde foi atingida, mostrando que o pequeno experimento havia funcionado. Que maravilha, pensou o reptiliano enquanto que rangia os dentes. Tentou se apoiar para elaborar um contra-ataque, mas seu tempo já havia acabado. Os pés do homem se encontravam à sua frente, apenas um pouco à frente da poça ainda sibilante.
- Acho que não chegamos a nos apresentar. - Disse ele, sorrindo de forma tranquila e estendendo a mão na direção de Kulela. - Meu nome é...
O membro da Aurora não era muito religioso, disso tinha certeza. Costumava se preocupar mais com seus afazeres do que louvar aos deuses, mas naquela noite reservaria um tempo especial para rezar. Afinal seu adversário havia decidido começar a conversar logo ao lado do composto que havia preparado. Um milagre, motivado pela estupidez.
Kulela rugiu e balançou o rabo, derrubando o homem para trás. Ele caiu bem em cima da poça d'água, e seus olhos se arregalaram um ínfimo de segundo antes de começar a gritar, um berro moldado pelo mais puro desespero. O reptiliano colocou as mãos nos ouvidos, procurando ignorar a agonia do outro. Aquele não era um composto normal. De fato, mal sabia o que havia criado, pois ninguém nunca havia testado aquela combinação de ingredientes. Pelo visto faziam mal. Iria anotar isso mais tarde.
- AH! - Berrou ele, se levantando com um salto. A luz o incomodou em resposta, fazendo com que ele esticasse o braço na frente dos olhos. Seu coração batia com firmeza, bombeando o sangue aquecido pelo sol. Olhou ao redor, percebendo a praia suja de destroços que se aglomeravam ao seu lado. Sua mente fez a associação que não queria fazer. Não havia sido um pesadelo.
- EI! - Gritou para o vazio, esperando ser respondido. Sem sucesso. Se levantou e sentiu uma pontada no abdômen. Rangeu os dentes e olhou para baixo, mas não havia nenhum corte visível. Provavelmente foi apenas uma pancada, concluir ao tatear a região. Voltou a encarar ao redor, procurando seus companheiros, mas estava sozinho. Sozinho em um lugar desconhecido, com apenas o que tinha no corpo.
Arregalou os olhos e apalpou o peito, percebendo com alívio uma tira de couro coberta por bolsos que envolvia seu tórax. Costumava guardar seus ingredientes mais raros consigo com medo de perder o restante em algum tipo de acidente, o que surpreendentemente tinha se tornado realidade. Só que eles não fariam nada sozinhos. Eram apenas catalisadores, dependentes de substâncias que recheassem o bolo, por assim dizer. Não o ajudariam ali, em uma terra perdida pelos deuses.
Kulela, percebendo que estava exausto, se sentou na areia tomando cuidado com o ferimento. Suspirou, pensando no que faria em seguida. Só lhe restava rezar que alguém da Aurora estivesse vivo, mas seria muita ingenuidade achar que o achariam ali. Deu uma olhada na ilha atrás de si, com sua mata selvagem e vazia. Duvidava que aquele lugar fosse sequer catalogado, que dirá uma rota de navios. Por um momento se viu desejando estar de volta às florestas Cellintrunianas. Podia ser um eremita, mas pelo menos tinha a situação sobre controle.
Um vento quente soprou do mar, agitando sua crina em direção à mata. Observou as árvores desarrumadas, desfocando a visão enquanto que pensava em suas opções. Não adiantaria de nada ficar ali e lembrar de dias mais fáceis. As primeiras tribos de reptilianos haviam conseguido gerar civilizações em florestas fechadas, portanto ele deveria ser capaz de pelo menos garantir uma semana de suprimentos, supôs enquanto que conscientemente ignorava o fato de que não havia nenhum registro de uma tribo alojada em ilhotas minúsculas.
Talvez alguns frutos ou uma poça de água da chuva o aguardassem, se esperançou enquanto que ficava de pé. Poderia ser o suficiente para sobreviver até que montasse um barco ou algo parecido, mas primeiro precisava garantir sua sobrevivência,
Deu uma volta no bosque da ilhota, recebendo boas e más notícias. Não haviam animais nem frutos comestíveis ali, mas Regressus possuía um pequeno valão que havia armazenado a água da chuva. Além disso, Kulela notou um cardume de peixes passando bem próximo da ilha ao sair da mata pela primeira vez. Decidiu cortar um galho grosso e usar como lança, assegurando assim seu alimento do dia-a-dia.
Além disso, conseguiu achar alguns materiais bastante interessantes. Havia um conjunto de árvores ali chamadas de guerrilheiras, cujas folhas largas eram um excelente componente de medicamentos. Sua casca avermelhada também tinha propriedades especiais, no entanto serviriam de forma mais ofensiva. O reptiliano separou o que conseguia da guerrilheira magra e torcida, guardando-os em seus bolsos livres. Talvez pudesse já preparar um remédio, considerou ele enquanto colhia as folhas. Só os deuses saberiam o que aconteceria naquela ilha, e se prevenir nunca era demais. Já as cascas exigiriam quase toda a água doce que ele tinha ali, portanto decidiu guardá-las.
Se pôs rapidamente a trabalhar, triturando as folhas com as mãos e misturando-as com água e um pouco de pó amarelo que havia trazido consigo. O cheiro do composto começou a ficar forte, enchendo o ambiente do odor semelhante ao de um gato molhado. Kulela buscou um pouco de areia, improvisando a farinha que precisava. Toda aquela atividade o fez se lembrar de seus dias de treinamento, isolado em alguma floresta avulsa enquanto passava os dias recolhendo ingredientes e formulando experimentos diversos.
Riu com o canto da boca ao se lembrar de seu supervisor, um reptiliano velho e meio senil que se recusava a atender outras raças devido a todo o preconceito que sofreu em sua vida. A maior parte do corpo docente o considerava apenas mais um excêntrico, mas Kulela se fascinou pelo que ele dizia. Fora como se sua mente tivesse se aberto, percebendo a situação de merda que sua raça passava e que não podia mais aceitar aquilo. Se perguntou o que seu mentor diria ao encontrá-lo hoje. Membro de uma guilda humana. Realmente, os deuses gostavam de brincar com as vidas dos mortais.
Após algumas horas o remédio estava pronto. Kulela o guardou em um dos seus bolsos, se levantou e esticou as costas, sentindo os ossos estalarem. A dor nas costelas havia passado, mas o estômago gemeu, ansioso por se alimentar. Talvez conseguisse pescar alguns peixes para o resto do dia, considerou enquanto pegava sua lança improvisada. Estava quase saindo da floresta quando notou que não estava mais sozinho.
Havia um pequeno barco à beira de Regressus, uma simples canoa de madeira que balançava a cada pequena onda que passava por perto. Perto dela, na praia, um homem de longos cabelos brancos e acolchoadas roupas negras caminhava calmamente. Sua mão estava presa aos cabelos roxos de uma garota que era arrastada de rosto para baixo na areia, aparentemente desacordada. Ela vestia uma encharcada camisola branca, e mesmo com a face oculta era bastante familiar ao reptiliano. Lyra.
Kulela voltou instantaneamente às sombras da mata, arregalando os olhos enquanto que respirava fundo. Sua mente paranóica trabalhava em velocidade, atenta à qualquer som oriundo da praia. Aquilo não parecia uma missão de salvamento. O homem estava sequestrando sua companheira. E o que faria depois? Se tinha a encontrado tão rápido, com certeza sabia do naufrágio do Intrépida Saída. Aquilo fora arquitetado? Estavam atacando a Aurora? O coração do reptiliano batia com vontade em seu peito, temendo pelo pior.
Respirou fundo e inclinou minimamente a cabeça para trás, procurando o homem vestindo negro. Para sua surpresa, não havia nenhum movimento em sua direção. Ele parecia satisfeito com a garota em suas mãos e caminhava de volta para seu barco, assobiando baixinho. Os olhos de Kulela se arregalaram. Não estavam procurando por ele.
Voltou a se ajeitar atrás da árvore, suspirando aliviado. Havia acabado de entrar na guilda, não era mesmo? Mesmo que fosse um ataque, muito provavelmente iriam se esquecer dele. Estava salvo. Era só aguardar mais alguns minutos e poderia estar em segurança, podendo concentrar todos os seus esforços em sair dali. Talvez voltasse às Florestas Cellintrunianas, considerou. Voltar à vida calma,sem humanos. Fechou os olhos, sorridente.
O rosto de Lyra se destacou em sua escuridão particular. Haviam conversado um pouco durante as constantes sessões médicas, não? Aprendeu a gostar um pouco dela. Poderia dizer o mesmo de Stella, mesmo que a mulher fosse bastante distraída. Deu uma risada com o canto da boca ao se lembrar de quando caçou Dalan e Sophie por metade de Helleon, bufando a cada passo...
Não, pensou ele abrindo os olhos, cortando o restante das lembranças em sua mente como uma faca. Sabia como aquilo ia acabar. Não, não, não, ele não devia nada à eles. Havia curado seus ferimentos e era só, não tinha que fazer mais nada. Eram apenas conhecidos, e agora seus caminhos se desencontrariam. Afinal, era um reptiliano orgulhoso. Havia sido ensinado a não se rebaixar às outras raças da Aliança. Todos racistas. Todos...
... exceto a Aurora. Não havia sido tratado mal durante seu tempo na guilda. Claro, haviam desavenças, mas elas nunca pareciam motivadas por preconceito. Pelo contrário, desde o início eles foram calorosos, cada um à seu próprio jeito. Não era mesmo? Ele apoiou a nuca na árvore, olhando com dúvidas para o céu. O que seu mentor faria? Ele havia sido tratado com desprezo durante toda a sua vida, chegando rancoroso aos seus anos finais. Só que... será que as coisas teriam sido diferentes caso ele tivesse encontrado uma Aurora? Será que o próprio Kulela agiria de forma diferente após essa experiência?
Saco.
-EI! - Gritou o mais alto que podia, saindo da mata com uma expressão obstinada no rosto. O homem se assustou de início, mas voltou a se acalmar assim que viu o reptiliano.
- Desculpa te incomodar, senhor selvagem. - Disse como se estivesse falando com uma criança. Ele largou Lyra e juntou as mãos, se reclinando na direção de Kulela. - Eu juro que vou sair daqui e nunca mais voltar, tudo bem? Irei te deixar fazer fazendo rituais tribais ou qualquer coisa que sua raça faça para passar o tempo.
O reptiliano sorriu, ainda com o coração batendo forte. Pelo menos o homem havia tornado sua decisão um pouco mais fácil. Iria adorar bater nele. - Acredito que você esteja procurando por alguém, não é? - Perguntou, levantando a manga e mostrando a Marca da Guilda. O sequestrador demorou um pouco para compreender aquelas informações, e quando fez isso Kulela já havia voltado a se embrenhar na mata.
- VOLTE AQUI! - Gritou, deixando sua presa jazida na areia. Fechou a mão em um punho e preparou o braço para desferir um soco no ar.
Kulela estava correndo pela mata quando uma enorme corrente de ar o atingiu pelas costas, arremessando-o para longe. Bateu em uma árvore com o rosto e esteve bem próximo de perder os sentidos. O que aconteceu, perguntou enquanto se recuperava. Olhou para trás a tempo de ver o homem estender o punho em sua direção. Uma nova rajada de força o atingiu, impelindo-o com força através das folhas e dos troncos.
O reptiliano tentou elaborar um contra-ataque, mas já era tarde. Sem nem ter aberto os olhos foi jogado para o lado, se arrastando na areia. Ouviu passos e tentou reagir, jogando seu rabo na direção dos sons. Aparentemente foi inútil, pois se viu arremessado para o ar. Conseguiu abrir as pálpebras e perceber que estava muito acima da ilha. Naquele momento o homem de cabelos brancos se impeliu ao ar em sua direção, usando seus próprios poderes para gerar impulso. Ele sorria, um riso maníaco e cheio de dentes.
Em um instante o adversário agarrou o pescoço de Kulela e girou o corpo, atirando-o para a mata. A velocidade era tão grande que apenas a queda foi notada, um estouro no meio da pequena floresta que derrubou as árvores mais próximas e gerou uma pequena cratera. E no meio dela, jazia o membro da Aurora.
Kulela tossiu, cuspindo o sangue que enchia seus pulmões. Preciso fazer alguma coisa, pensou desesperado. Conseguiu ouvir o homem aterrizar na praia à distância e se arrastou para trás, se forçando pelos braços. Seus dedos mergulharam na poça d'água que havia encontrado antes, e um plano surgiu em sua cabeça em um estalar de dedos.
Rapidamente ele desamarrou a faixa de couro em seu peito, arranhando sua própria pele na confusão. Eu vou me arrepender disso profundamente, concluiu enquanto arrancava a bolsinha onde estava o composto de cura e jogava o restante do acessório na poça. Passos agora se aproximavam, o som se misturando com o fervilhar grosseiro da água perto de sua cabeça. As cascas avermelhadas estavam em decomposição, soltando um cheiro acre. Vamos, vamos, vamos, implorou enquanto tentava abrir a bolsinha.
Infelizmente uma nova corrente de ar o atingiu, o separando da valise e o jogando por cima da poça até cair na grama, onde os respingos esvoaçados o encontraram. A pele ardeu de forma insana onde foi atingida, mostrando que o pequeno experimento havia funcionado. Que maravilha, pensou o reptiliano enquanto que rangia os dentes. Tentou se apoiar para elaborar um contra-ataque, mas seu tempo já havia acabado. Os pés do homem se encontravam à sua frente, apenas um pouco à frente da poça ainda sibilante.
- Acho que não chegamos a nos apresentar. - Disse ele, sorrindo de forma tranquila e estendendo a mão na direção de Kulela. - Meu nome é...
O membro da Aurora não era muito religioso, disso tinha certeza. Costumava se preocupar mais com seus afazeres do que louvar aos deuses, mas naquela noite reservaria um tempo especial para rezar. Afinal seu adversário havia decidido começar a conversar logo ao lado do composto que havia preparado. Um milagre, motivado pela estupidez.
Kulela rugiu e balançou o rabo, derrubando o homem para trás. Ele caiu bem em cima da poça d'água, e seus olhos se arregalaram um ínfimo de segundo antes de começar a gritar, um berro moldado pelo mais puro desespero. O reptiliano colocou as mãos nos ouvidos, procurando ignorar a agonia do outro. Aquele não era um composto normal. De fato, mal sabia o que havia criado, pois ninguém nunca havia testado aquela combinação de ingredientes. Pelo visto faziam mal. Iria anotar isso mais tarde.
E assim, alguns segundos de desespero depois, o silêncio tomou conta de Regressus, sendo quebrado apenas pela distante quebra das ondas na praia. O homem sem nome continuou onde estava, com os olhos virados e rosto contorcido. Kulela se levantou e jogou a cabeça para trás, sentindo o vento salgado agitar sua crina negra. Um cansaço sobrenatural tomou conta de seu corpo enquanto a adrenalina se esvaziava, quase o derrubando. O reptiliano tropeçou e avistou o pacote do medicamento que havia preparado mais cedo, através dos olhos semicerrados.
Pegou-o com alívio e estava prestes a ingeri-lo quando se lembrou de Lyra. As dores do corpo se aprofundaram como uma forma de protesto, mas não havia indecisão. O membro da Aurora rapidamente se pôs a correr na direção da praia, encontrando a garota virada para baixo na areia.
Se ajoelhou ao seu lado e abriu o pacote, olhando para frente distraído. Avistou um barquinho balançando nas ondas um pouco à direita, mas o que chamava a atenção era um grande navio em alto-mar, curiosamente parado perto da ilha. A mente de Kulela trabalhou com as possibilidades. Talvez existisse uma relação entre o sequestrador e aquela embarcação. Talvez fosse o resgate, ou algo completamente alheio à situação deles. De qualquer jeito, só havia um caminho a se tomar.
Para frente. Sempre para frente.
Pegou-o com alívio e estava prestes a ingeri-lo quando se lembrou de Lyra. As dores do corpo se aprofundaram como uma forma de protesto, mas não havia indecisão. O membro da Aurora rapidamente se pôs a correr na direção da praia, encontrando a garota virada para baixo na areia.
Se ajoelhou ao seu lado e abriu o pacote, olhando para frente distraído. Avistou um barquinho balançando nas ondas um pouco à direita, mas o que chamava a atenção era um grande navio em alto-mar, curiosamente parado perto da ilha. A mente de Kulela trabalhou com as possibilidades. Talvez existisse uma relação entre o sequestrador e aquela embarcação. Talvez fosse o resgate, ou algo completamente alheio à situação deles. De qualquer jeito, só havia um caminho a se tomar.
Para frente. Sempre para frente.
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