RECINTO NERD NUZLOCKE - LEAF GREEN -
CAPÍTULO 19: ÓDIO
Haviam chegado a Lavender. Comparada a todas as outras cidades em que haviam estado, essa era definitivamente a mais fúnebre. Uma névoa pesada se estendia pelas ruas, bloqueando a visão deles. Não haviam pedestres andando pelas calçadas, carros, ou mesmo crianças. De fato, toda a cidade era bizarramente silenciosa. Os únicos sons que podiam ser ouvidos eram seus passos, ecoando na imensidão solitária.
Kari se sentiu imediatamente mal naquele lugar. Seu estômago se retorcia e os pelos da nuca estavam eriçados o tempo todo. Ela virava para trás a cada quinze passos, sentindo estar sendo vigiada. Começou a andar mais depressa, e antes que percebesse estava correndo. Um estranho zumbido surgiu em seus ouvidos, e ela balançou a cabeça com violência. Viu um enorme vulto à frente, do tamanho de um arranha-céu, se destacando na névoa. Sem pensar, ela se dirigiu a ele.
Havia chegado em uma estranho edifício, construído na montanha. Kari abriu a porta com força, e entrou no átrio. Era uma sala bem branca, com decorações fúnebres espalhadas pelas paredes. Uma recepcionista vestida de roxo era a única alma viva ali dentro, escrevendo algo em um grande livro negro. Ela mal ergueu os olhos quando a garota explodiu pela porta de vidro, suando e ofegando. Kari se apoiou nos joelhos, recuperando o fôlego, e foi de encontro à mulher.
- Com licença. Poderia saber onde estou? - A recepcionista levantou os olhos, encarando-a através de olhos púrpura rodeados por maquiagem negra. Sem dizer uma palavra, ela voltou a escrever no livro. Kari olhou para os lados, se sentindo inconfortável.
- É... com licença--
- Por favor, aguarde. - Disse a mulher, com uma voz aguda que parecia arranhar seus ouvidos, sem voltar a encará-la. - Os serviços funerários da Torre Pokémon estão lotados. Espere até que possamos liberá-la.
Kari se sentiu desconcertada, e foi se sentar em uma das cadeiras. Então estou na Torre Pokémon, pensou, enquanto se acomodava no objeto duro. A Torre era o único ponto de visita digno de menção em Lavender, que havia perdido seu Ginásio para Vermilion havia alguns anos. A cidade nunca foi exatamente aberta ao público, e muitos dos treinadores que passavam por lá reclamavam do clima mórbido do local. Ouvindo essas reclamações, a Liga Pokémon decidiu retirar o Ginásio de lá, realocando-o para a nova cidade que estava sendo criada. Desde então, a única coisa que fazia os treinadores pararem mais de um dia naquela região era o gigantesco cemitério vertical, símbolo macabro de Lavender. Kari se sentiu na necessidade de fazer uma homenagem a Bernard e Felícia. Assim, aguardou pacientemente.
A garota pegou uma revista de atualidades que estava parada em cima de uma mesinha transparente ao seu lado. Folheou-a distraída, percebendo que até mesmo as matérias daquela publicação eram mórbidas. Uma grande artigo de quatro páginas no centro da revista falava sobre o sequestro do dono da Casa de Voluntários de Lavender, chamado de Senhor Fuji, um famoso ex-pesquisador e ex-explorador, com uma antiga amizade com o líder do Ginásio de Cinnabar, Blaine. Na cena do crime, os policiais haviam achado o cadáver de uma Marowak, brutalmente assassinada pelos raptores. Enjoada, Kari fechou a revista, percebendo um estranho anúncio na parte de trás. Era uma propaganda da Companhia Silph, megacorporação com sede em Saffron que produzia diversos artigos para treinadores, prometendo um produto capaz de "identificar, falar e ver os espíritos". Mórbido, concluiu a garota, e se virou na cadeira.
Ela batucou na mesa, esperando ser chamada. Depois de vinte minutos, uma garota com aparentes quinze anos, desceu as escadas, esfregando os olhos vermelhos ainda cheios de lágrimas. Ela começou a conversar em voz baixa com a recepcionista, e saiu do edifício. Um pouco depois, a mulher mais velha anunciou:
- Próximo! - Kari sentiu o estômago embrulhar, e se aproximou do balcão.
- Quantos Pokémon? - Perguntou a mulher, sem nem mesmo parar de escrever.
- Desculpe, o quê?
- Para quantos Pokémon você vai rezar hoje?
- Ah... dois.
A mulher retirou duas velas azuis de uma gaveta embaixo do balcão, e voltou a escrever. - Segundo andar, apenas procure um altar disponível.
- O-obrigada.
A mulher não respondeu. Kari pegou as velas e subiu com passos lentos.
O segundo andar era bem maior do que o primeiro. Inúmeros monumentos de pedra roxa se estendiam pelo aposento, e estranhas mulheres de quimono branco andavam entre eles. Velas ardiam em diversos lugares, e a garota andou pelos corredores, procurando um espaço vazio. No entanto, havia uma pessoa bem familiar de costas, chamando a atenção dela.
- Gary? - Disse, incerta. Gary levou um susto, e se virou para ela. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, mas seus punhos se fecharam assim que viu a garota.
- Eu não estou acreditando nisso. - Disse, baixinho. - Saia daqui, Kari. Agora.
Kari ficou confusa, e um pouco amedrontada. A voz dele estava extremamente mais séria, e ódio pingava em cada palavra. - Gary, o que houve?
- Eu disse para sair daqui! - Eles proferiu as duas últimas palavras em um grito, e antes que a garota percebesse, seu Pidgeotto foi lançado em cima dela. Por reflexo, levou a mão ao cinto, e Sara surgiu para bloquear o ataque.
- O que você pensa que está fazendo?
- Saia daqui. Eu não quero mais ver o seu maldito rosto, e sua maldita presença me faz mal. - Ele cuspiu no chão. - Vou te dizer pela última vez. Saia. Da. Minha. Frente.
- Gary, o que houve? - Kari se sentiu verdadeiramente assustada. Os olhos do rival a encaravam com ódio e desprezo, e ele respirava profundamente, tremendo de raiva. - Quem morreu?
- Quem morreu? QUEM MORREU? NALA, SUA IMBECIL, FOI ELA QUEM MORREU. E A MERDA DA CULPA É SUA! - O Pidgeotto se moveu como um raio, e atingiu Sara em cheio. A Sandslash foi jogada em um monumento, que ruiu com o contato. No entanto, Kari nem se mexeu, sentindo o estômago se retorcer e o mundo parar de girar.
- N-Nala? - Disse, com a voz fraca.
- SIM. ELA FOI SALVÁ-LA, E SE AFASTOU E... AAAARGH. - Gary socou o monumento mais próximo, enquanto Kari o encarava, com lágrimas escorrendo pela sua face. Quando voltou a encará-la, ele tinha um outro olhar no rosto, mais sério, determinado e com um estranho brilho de insanidade. - Esqueça o que eu disse antes, Kari. - Com uma voz que fez os pelos da nuca da garota voltarem a se eriçar. - Você não vai mais fugir. Não depois de tornar minha vida tão miserável. Eu não irei ser tratado assim por uma vaca covarde e chorona, que de repente se sentiu como se valesse algo. Seu lugar é na sarjeta, Kari. E eu farei questão, não importa o que custe, de acabar com você.
- Gary... - A voz de Kari estava fraca. Por um instante, se lembrou do garoto ativo e bagunceiro que compartilhou sua infância com ela, e essa imagem se contrastou com o homem sombrio e desesperado que estava à sua frente. - Por favor, não faça isso. Por favor.
- Kari. Esqueça. - Disse uma voz atrás dela. Sara se levantou com dificuldades. - Eu sei o que você está sentindo. Sei que está se culpando. Só que esse não é o momento para isso. Gary, Nala, cada um de nós fez suas próprias escolhas. E não adianta culpar os outros pelos seus erros. Viver pelas escolhas dos outros não a levará a nada.
- CALE A BOCA! HERMES! - Gritou Gary, e o Pidgeotto voltou a investir contra a Sandslash. No entanto, Sara saltou, segurando dois restos do monumento e lançando-as contra o corpo de Hermes, que desmaiou no processo. O treinador imediatamente recuou seu Pokémon.
- TITÃ! - Seu Wartortle foi lançado, e Kari rapidamente trocou Sara por Liz. - Gary, preste atenção. - A garota se sentiu mais decidida do que antes. Sua Sandslash estava certa. Não adiantava se culpar agora. Ela precisava fazer Gary voltar ao normal, e depois pensar no restante. - Esse é um lugar de repouso. Vamos sair daqui.
- PARE DE SE SENTIR A SUPERIOR! VOCÊ É UM VERME, KARI, E VOU PROVAR ISSO! - Titã se moveu, mas Liz desferiu um poderoso chute antes que ele pudesse atacar. Seu caso brilhou enquanto era jogado pelo ar, até que encontrou outro monumento, que novamente ruiu. Antes que pudesse se levantar, a Wigglytuff saltou e pisou em cima dele, desacordando-o.
- ALEX! - Um Growlithe saiu de sua Pokébola, e Kari contra-atacou com Zelda.
- GARY, PARE COM ISSO! - Gritou a garota, mas o rival pareceu não ouvir. O Growlithe encarou a Golbat com um olhar ensandecido. Zelda reagiu lançando um raio brilhante de encontro ao adversário, que perdeu o equilíbrio por alguns instantes. Quando recuperou os sentidos, ele lançou um feixe de chamas contra sua rival. Zelda foi atingida em cheio, mas se recuperou antes de alcançar o chão. Em seguida, voou em velocidade realizando giros em torno de Alex, mordendo-o quando tinha uma abertura. O Growlithe tentou atacá-la, mas seus sentidos falharam novamente e ele atingiu o chão com força. Antes que levantasse, Zelda o mordeu de novo, o retirando da partida.
Gary não respondeu, apenas lançou um Exeggcute no campo de batalha. No entanto, Kenichi soprou um mar de chamas em cima dele antes que o Pokémon pudesse fazer algo.
- MALDITA! POR QUÊ NÃO FAZ ALGO DE ÚTIL E MORRE? - Gritou Gary, lançando seu último Pokémon em campo. O Kadabra se virou para a própria treinadora, mas antes que pudesse atacá-la Wanda o atingiu com seu ferrão, derrubando-o.
- Acabou, Gary. Chega. - Disse Kari, com a voz firme. A área em torno deles estava em pedaços. Dois monumentos jaziam em ruínas, e pedaços do chão ainda estavam fumegantes. - Fomos longe demais hoje.
O rival ficou parado por um tempo, mas de repente deu passos largos em direção a garota, desviando de sua Beedrill. Antes que Kari pudesse reagir, ele a agarrou pela camisa e jogou-a contra um monumento. Sua cabeça bateu com força na pedra dura, e tudo que ela pôde fazer em resposta foi segurar os braços do rival.
- Gary, mas que inferno?
- Preste atenção, Kari. Eu só vou falar uma vez. - Ele a encarou, e seus olhos apresentavam novamente aquele brilho de insanidade. Seus rostos estavam tão próximos que ela conseguia sentir a respiração dele. - Você é um nada. Por mais que ache que venceu, uma hora você vai cair, chorando e tremendo. Você sabe tanto quanto eu quem é de verdade. Uma perdedora covarde, que nunca conseguiu fazer nada de útil na vida, que de repente tentou ser boa na coisa em que mais me orgulho. E eu não irei ser derrotado no MEU sonho por alguém que nem você. Nem que eu tenha que derrubá-la sozinho.
- Gary, querido. Acho que agora já chega. - Wanda tentou afastá-lo de sua treinadora. Ele se desvencilhou com violência das duas, e desceu as escadas com pisada forte. Kari ficou parada onde estava, em silêncio. As funcionárias do local chegaram furtivamente, e começaram a limpar os destroços. Kari se arrastou pelo monumento, parando sentada. Ficou assim por um par de horas, refletindo sobre o garoto que tinha o inocente sonho de ser o Campeão e o garoto que havia acabado de sair.
Finalmente, se levantou e colocou suas duas velas em um monumento livre. Acendeu-as e rezou em silêncio. Quando terminou, encarou o local onde Gary havia acendido seu artefato. Sem dizer uma palavra, ela desceu as escadas, pegou mais uma vela e acendeu-a perto da de Gary, e recomeçou a rezar.