sábado, 25 de outubro de 2014

Aurora: Capítulo 37 - Promessa de Retorno


AURORA
CAPÍTULO 37 - PROMESSA DE RETORNO

 A primeira coisa que Lyra viu quando abriu seus olhos negros foi o céu estrelado. Uma miríade de pontos brilhantes a encarava do alto, manchas brancas em um fundo de ébano infinito. Ela piscou um pouco antes de se sentar com leveza, arregalando o olhar enquanto virava a cabeça para os lados. Estava no que parecia uma mata fechada, o chão coberto de grama verde e árvores torcidas formando uma clareira ao redor dela.

 - Pensei que não iria acordar tão cedo. - Era a voz de Kulela. A garota demorou um pouco para reconhecê-lo, de costas para ela e sentado na relva. Sua camisa branca estava rasgada, e diversos pontos rubros marcavam suas escamas.

 - O-o que aconteceu? - Perguntou, esfregando o dedo nas pálpebras.

 - Sofremos um acidente de navio. - Contou o reptiliano, ainda sem se virar. Lyra demorou alguns instantes para processar aquela informação, ainda acordando.

 - E os outros? - Sussurrou, imediatamente ficando alerta e esquadrinhando a área ao redor, como se encontrasse um companheiro escondido no meio dos arbustos.

 - Estão ali. - Apontou o curandeiro. Lyra se inclinou e avistou uma pequena fortaleza de madeira à frente, escondida por tantas árvores no caminho. Tochas acesas marcavam as paredes puídas, e um grande buraco rachado marcava a entrada, sem um portão a vista. Ao todo a construção era bem mirrada, mas cerca de seis guardas a esquadrinhavam de cima para baixo. A garota estreitou os olhos, tentando entender o que estava acontecendo.

 - O que é isso? - Perguntou assombrada.

 - Um forte esquecido no meio do Mar de Cellintrum. Você quase foi sequestrada hoje mais cedo, e supostamente seria levada para um navio. - Começou o outro. - Te resgatei e segui a embarcação até aqui, onde tenho a ligeira impressão de que estão trancafiando os membros da Aurora. - Lyra se aproximou, percebendo que aquelas manchas rubras eram na verdade feridas. - Tenho um plano que envolve--

 - Isso são queimaduras? - Interrompeu a garota, apontando para as chagas. O reptiliano olhou para baixo, parecendo ter se esquecido delas. 

 - Ah, não é nada. - Tentou desconversar. - Escute, nós--

 - Você disse que me resgatou, não foi? - Cortou a voz sofrida de Lyra, agarrando a grama que crescia ao lado de seus joelhos. - Isso aconteceu ao tentar me proteger?

 - Não é hora de entrarmos nesse mérito. - Disse firmemente o curandeiro. - Precisamos nos concentrar em salvar nossos companheiros. Não é mesmo? - Ele a encarou com rigidez, acentuando uma ferida bem entre seus olhos. A garota desviou o olhar, sentindo-se culpada.

 - Sim... - Concordou, passando a mão pelas pernas nuas. Usava apenas uma camisa branca e um short curto, as roupas que havia usado para dormir no Intrépida Saída. Não eram exatamente as vestimentas mais apropriadas para um passeio na mata. - Você disse que tinha um plano, não?

 - Fico feliz que tenha voltado ao assunto. - Comentou o reptiliano com um tom de sarcasmo na voz. Ele olhou para as chamas bruxuleantes da fortaleza, franzindo de leve o cenho. - Bem, como eu disse, desconfio que estejam aprisionando nossos companheiros naquele forte. - Apontou, como se fosse difícil localizar aquela construção. - Felizmente parecem haver poucos guardas, então um de nós pode atrair a atenção deles para fora enquanto que o outro resgata os presos.

 - Certo... - Começou Lyra, apoiando as mão na grama. - Eu grito e faço um escândalo para você--

 - Na verdade quem vai servir de isca vai ser eu. - Cortou Kulela. A garota ficou levemente boquiaberta antes de continuar.

 - Não. - Disse finalmente, colocando uma mão no peito. - Eu faço isso, você não precisa se arriscar assim.

 - Nós dois vamos nos arriscar. - Soltou ele, inclinando a cabeça na direção da companheira. - A questão é que você está mais preparada para lutar caso a fortaleza tenha mais guardas em seu interior.

 - Do quê está falando? Eu estou em recu... - Ela segurou o abdômen, e se surpreendeu ao ver que ele havia parado de doer. Levantou a camisa em descrença, percebendo que a cicatriz estava muito mais tênue do que antes.

 Quando ela levantou a cabeça, o curandeiro estava sorrindo de forma triste. - Eu produzi um composto enquanto você estava desacordada, o suficiente para te deixar em condições de lutar. - Ele encolheu os ombros. - Não é exatamente adequado para humanos comuns, mas podemos ignorar os avisos médicos nesses casos. - Lyra ficou calada, novamente olhando para as chagas no corpo de Kulela. Seus olhos começaram a marejar, mas esfregou-os com as costas da mão. Tinha que se concentrar em salvar os outros. Eram os únicos que poderiam fazer isso.

 - Certo. - Concluiu com a voz embargada. - Vamos logo então.

 - Era o que eu estava esperando ouvir. - O reptiliano se levantou, acompanhado pela garota. Ele se adiantou até ficar na beira da mata, observando a fortaleza mequetrefe atrás de uma grossa árvore. Virou os olhos para a direita, avistando um paredão de rochas nuas que se estendiam até o forte. - Vá para lá. - Pediu para Lyra, apontando na direção das pedras. - Fique escondida até que os guardas saiam em busca de mim. Depois disso, entre e salve os outros.

 - Eu vou ser rápida. - Tentou dizer ela, mas Kulela não pareceu precisar de incentivos. Apenas a apressou com a cabeça, fazendo com que a garota corresse por entre a mata. Seus movimentos não provocavam mais dores, mas o coração estava apertado. Tudo parecia estar caindo aos pedaços, agora que ela tinha algum tempo para entender a situação. A Aurora havia sofrido um ataque e seus membros haviam se separado, supostamente recolhidos e presos, mas não poderia ter certeza de que estavam todos ali. E se estivessem perdidos pelo Mar de Cellintrum? E se... estivessem mortos? Lyra se viu obrigada a parar, a ansiedade a corroendo por dentro. Apoiou a mão em um tronco e respirou fundo. Por favor, rezou aos deuses. Por favor, que estejam todos salvos.

 Após alguns segundos em que tentava controlar o desespero, ela engoliu em seco. Precisava guardar esses sentimentos como havia feito durante quase toda a sua vida. Kulela estava contando com ela, arriscando sua vida para que pudessem salvar os companheiros. Não podia deixar suas fraquezas ficarem no caminho da guilda. Devia se mostrar inabalável, assim como havia feito todos esses anos.

 Assim, respirou fundo e continuou. Lembre-se dos seus amigos, pensava a cada passo. Siga em frente e ignore tudo que te deixa pra baixo. Obedeceu esse mantra com dificuldade, conseguindo guardar no fundo do coração suas inseguranças e manter a cabeça erguida.

 Se viu no limiar da floresta, próxima ao paredão de rochas. Estava separada da fortaleza por um corredor desmatado que se originava da praia, dando aos defensores daquele local uma visão limpa da área ao redor. Lyra se escondeu do luar e aguardou sua deixa, mergulhada em um silêncio quebrado apenas pelos animais silvestres e pelas batidas de seu próprio coração. Tentou enxergar alguma forma de adentrar o forte de onde estava, mas as sombras escureciam seu perímetro. Lhe restava apenas observar as figuras dos guardas percorrendo a construção, se encolhendo cada vez que pareciam olhar em sua direção. A qualquer instante agora, pensava enquanto que os segundos se passavam lentamente. A qualquer instante...

 - EI! - Gritou uma voz ao longe, fazendo com que a garota se sobressaltasse pela adrenalina que começava a descer pelo seu sangue. Olhou à esquerda, vendo que Kulela estava perto da praia, balançando os braços na direção do forte. - Acho que esqueceram um membro da Aurora! - Lyra viu que alguns guardas se entreolharam, parecendo confusos. Gritaram algumas palavras entre si e um destacamento de cinco homens começou a trotar na direção do reptiliano, que correu para se esconder na mata. Sua companheira sentiu o coração bater mais rápido e olhou na direção da fortificação. Parecia vazia, mas era claro que as aparências enganavam. De qualquer jeito, não tinha opção. Engoliu em seco e disparou pelo corredor descampado, iluminada pela brilhante lua acima, o som dos passos engolidos pela relva alta.

 Quando se aproximou da parede, reparou que haviam pequenos buracos na madeira, resultado de anos de descaso e intempéries naturais. A garota olhou para os lados, temerosa de que estivesse sendo observada, mas a lua agora fazia o favor de encobri-la. Se virou novamente para o forte e começou a escalá-lo, aproveitando os rasgos para enfiar suas mãos e os pés descalços. O início foi fácil, mas quando estava se aproximando da metade do trajeto sentiu o abdômen arder e se encolheu em resposta, quase caindo. Ficou pendurada com uma das mãos, o coração batendo tão forte que era quase que como um alarme. Olhou para baixo, mas rapidamente voltou a esticar o queixo. Estava muito alta para se soltar. Engoliu os medos e seguiu em frente, esperando a todo momento uma cabeça se esticar por fora da murada mais acima.

 No entanto, nada aconteceu. Ela continuou a subir e alcançou a murada, jogando o corpo para frente para poder observar melhor o interior da fortificação. Era um espaço quadrado e escuro, com um grande vazio no centro que cortava os andares, demarcado por corredores de apenas dois metros de largura. Não havia um corrimão ou qualquer barreira virada para dentro, mas a visão era encoberta pelas trevas, com exceção de um pedaço da grama verde ao nível do mar. Onde ela estava, agora saltando para o piso interno, o cenário parecia uma bagunça. Haviam canecas de cerveja derramadas, pratos quebrados e... um arco.

 A garota arregalou os olhos. Na direção da praia, um arco e uma aljava se encontravam apoiados na mureta. Se aproximou rapidamente, segurando o objeto nas mãos. A madeira escura parecia um pouco quebradiça, mas as cordas estavam em boas condições. Uma passada pelas flechas a fez imediatamente descartar um punhado de quebradas, mas ainda assim haviam projéteis o suficiente para se defender. Ela suspirou, ganhando um pingo de segurança que não havia conseguido juntar desde o naufrágio.

 Infelizmente era temporário. Uma agitação à noroeste a fez levantar a cabeça, se agachando atrás da muralha. Avistou Kulela sendo jogado para a areia, sem esboçar reação. Ela ofegou, e naquele momento o quinteto de guardas saiu da mata, todos rindo e zombando.

 - Não está tão babaca agora, escamoso? - Gritou um deles, chutando a barriga do reptiliano. Lyra pôs a mão na boca, assustada. Foi até o arco, puxando uma flecha da aljava. - Hein? Quer tentar sacanear a gente de novo?

 Ele parecia irritado. A garota encaixou a flecha, puxando a corda até seu ombro com um ranger familiar. Fechou um dos olhos, procurando ter uma mira melhor. Conseguiu ver um dos homens puxando uma adaga que brilhou ao luar, e antes de pensar qualquer outra coisa já havia soltado o projétil.

 A flecha voou no braço do homem, que gritou em agonia. Cabeças se viraram na direção da fortaleza e dela vieram mais duas setas cortando o ar, atingindo o ferido e o companheiro ao seu lado. O estupor se quebrou e os remanescentes gritaram, disparando na direção da cobertura da mata.

 Lyra disparou mais duas vezes, errando seus alvos e atingindo a areia fofa. Conseguiu ouvir passos mais abaixo, pessoas correndo no interior da fortificação para saber o que estava acontecendo nos andares superiores. No entanto, a prioridade era defender Kulela. Ele estava caído e sob a mercê dos bandidos, e qualquer segundo que a garota gastasse se protegendo era uma oportunidade para que o matassem. Assim, correu na direção da esquina e atirou mais uma flecha, conseguindo derrubar o homem mais próximo da floresta.

 Vozes alertas à sua direita lhe diziam que já tinha companhia. Olhou de relance para o lado e viu um gordo barbudo correndo em sua direção, os braços abertos e a camisa verde manchada. Puxou a corda e atirou em sua perna, fazendo-o cair com um estrondo que rangeu as tábuas de madeira. Três companheiros vinham mais atrás, um deles segurando um ameaçador tacape.

 Ela levou a mão à aljava, conseguindo identificar três flechas. Voltou a virar a cabeça na direção da praia, vendo que um bandido corria na direção de Kulela. Um zunido cortou a noite fria e o homem caiu com as mãos no abdômen. Agora faltavam duas.

.Se virou para se defender, mas o tacape já estava sendo girado em sua direção. A arma acertou suas costelas, trincando audivelmente e impelindo-a até a mureta. Bateu de costas na madeira, perdendo o arco e arfando de dor. Grunhiu em resposta, sendo levantada pelo colarinho da camisa sem esboçar reação. - Piranha. - Conseguiu rugir seu adversário, agarrando-a pelo pescoço e batendo sua cabeça na parede. Lyra contorceu o rosto, incapaz de respirar. As mãos foram tateando até a aljava, meio caída em suas costas. - Eu juro que você terá um tratamento especial antes de te prendermos. Vou fazer questão de te... - Felizmente uma flecha censurou sua frase, encravada até o meio em suas costelas. O aperto se afrouxou e a garota o jogou para longe, recuperando o ar.

 Seus companheiros, porém, não lhe deram trégua. Um punho fechado disparou contra seu rosto, derrubando-a novamente no chão. O sangue encheu sua boca e suas narinas, a mão direita tentando contê-los. Novamente foi agarrada pela camisa, mas dessa vez foi arremessada na direção do vão central, onde sentiu o corpo ficar solto no ar.

 Seu coração quase parou, a gravidade a empurrando para a queda fatal. Esticou os dois braços à frente, onde bateram com força em uma superfície dura. Lyra girou e caiu de costas na grama, o corpo em agonia. Pareceu desmaiar por alguns segundos, os dentes rangendo de dor.

 A escuridão desapareceu ao abrir os olhos com dificuldade, o céu estrelado novamente piscando para ela. Levantou um pouco a cabeça e notou a saída da fortaleza à sua frente, o mar se agitando ao longe. Kulela, pensou ao se levantar imediatamente.

 Disparou para fora da fortificação o mais rápido que as dores nas costas permitiam, os passos abafados pela grama que já morria para dar espaço à areia. Já conseguia identificar o companheiro, e o coração se aliviou um pouco. Ninguém havia tentado matá-lo.

 Subitamente, seu ombro direito foi varado por um projétil, um buraco entre os músculos e os ossos. Sangue espirrou e Lyra caiu, os olhos arregalados de dor. Ao seu lado, uma flecha jazia no chão. A garota levou a mão trêmula até a região dilacerada, não percebendo os passos que se aproximavam.

 - Eu acho que te reconheço. - A voz era aguda, e a garota foi chutada para ficar de costas no chão. Um homem ruivo e imundo a observava de cima, o pé fincado em sua mão livre. - Você é a secretariazinha da Aurora, não? Uma nota de rodapé. - Ele a chutou novamente, jogando-a mais perto do mar. Suas costas encostaram em algo afiado, mas a dor no ombro a impedia de raciocinar direito. Conseguiu observar os outros dois bandidos saindo do forte através das pálpebras semicerradas, correndo na direção deles. - Engraçado. De todas as pessoas de sua guilda, a última esperança de vocês repousou na secretária e no médico. Vocês achavam que tinham chance? - Ele se aproximou, o hálito de cerveja infestando o ar. - Hein? Eu te fiz uma pergunta.

 Lyra abriu a boca levemente e suspirou algumas palavras. O homem se aproximou, a orelha bem próxima para poder ouvir o que estava sendo dito. Seu sorriso zombeiro permaneceu até escutar o que a garota tinha a dizer, uma frase que ecoou em sua mente enquanto caía, pois Lyra havia cravado a adaga que fora usada para ameaçar Kulela em seu estômago, retirando-a em uma cascata de sangue. Somos o suficiente, havia dito ela.

 A garota se levantou cambaleante, encarando os outros dois bandidos que haviam diminuído o passo ao ver o companheiro caído. Estava trêmula, respirava debilmente e o braço ferido pendia inutilmente ao lado do corpo, mas os olhos queimavam de raiva. - Vocês nos sequestraram. - Começou a dizer, tomando pausas entre as frases para recuperar o fôlego. - Deram o máximo para acabar... conosco. Só que não vamos deixar. Eu... não vou deixar. - Ela trincou os dentes, notando que Kulela havia se levantando e caminhado até ficar ao seu lado. Sorriu para ele antes de continuar. - Não vou deixar a Aurora morrer. Se quiserem... tentar nos derrotar... venham. - Abriu o braço sadio. - Passaremos por cima de vocês e vamos resgatar nossos amigos! Vamos para casa. - Acrescentou debilmente, se lembrando de Helleon e dos dias tranquilos que pareciam tão longe. - Vamos para casa.

 Os dois homens se entreolharam, nervosos. O discurso de Lyra parecia ter funcionado para amedrontá-los, isso e a enorme quantidade de corpos ao redor deles e a faca ainda segura pela garota. Deram alguns passos para trás. - Nós... nos rendemos. - Disse um, e o outro acenou positivamente com a cabeça. Lyra quase caiu de alívio, mas o reptiliano a segurou.

 - O que estamos esperando? - Perguntou ela, se forçando a manter as pálpebras levantadas. Foram encaminhados até a fortificação, onde uma sala nos fundos os aguardava. Um dos bandidos abriu a porta, revelando um aposento escuro. Quando o outro acendeu uma vela, foi revelado que Dominic, Koga e Julie estavam lá, amordaçados e acorrentados à parede, ainda vestidos com seus pijamas.

 Kulela e Lyra imediatamente correram na direção dos companheiros, e quando Koga foi libertado ele avançou no pescoço de um dos captores, prendendo-o à parede enquanto tirava a mordaça de sua boca. - Eu poderia matar vocês, sabia? - Rugiu com ferocidade enquanto que o outro homem se afastava, temeroso. - Sabia disso?

 - Acalme-se, Koga. - Pediu Dom, colocando a mão em seu ombro. Tão logo que o garoto o obedeceu, o homem mais velho agarrou o bandido pelo colarinho, levantando-o. - Agora, eu poderia ficar aqui horas espancando vocês por nos emboscarem e nos prenderem. - Disse friamente, o suor do outro pingando em seu rosto. - Mas vamos nos ater às questões mais urgentes. Onde estão os nossos companheiros?

 - Eles não estão aqui? - Perguntou Kulela alarmado, ajoelhado ao lado de Julie enquanto verificava a extensão dos ferimentos dela. O bandido livre gaguejou, apontando para uma porta à sua direita.

 - T-tem outra lá. - Lyra e Julie seguiram naquela direção, mas o restante ficou para o interrogatório.

 - Faltam alguns, não? - Grunhiu Dom, levantando sua presa ainda mais alto.

 - Vocês capturaram todos? - Se adiantou Kulela.

 - E-exceto vocês, sim... - Gaguejou o que estava sendo levantado, se encolhendo. - S-só que... alguns já fora levados.

 - Para onde? - Questionou Dominic, empurrando-o contra a parede com raiva.

 - E-e-eu mostro no mapa! - Guinchou o outro, temeroso pelo companheiro. Koga o olhou com raiva, fazendo com que ele corresse até uma escrivaninha e puxasse um papel manchado, o qual estendeu para os membros da Aurora. - A-aqui. - Apontou para um ponto no meio do mar. Dom soltou o outro bandido, que ficou caído no chão.

 - Eu conheço essas coordenadas... - Concluiu em voz baixa, franzindo a testa. - Gamora ficava aqui.

 - A ilha de Dalan? - Perguntou Koga, também se inclinando para ver o mapa. Havia algo de errado ali. - Só tem mar aqui. Tem certeza disso?

 - Morei anos no Mar de Cellintrum. Mesmo se eu estivesse errado, a ilha ainda estaria nesse quadrante. - Se agitou ele. E era verdade. Não havia sinal da enorme massa de terra que um dia fora Gamora. Sabiam que ela havia sumido, de acordo com Dalan, mas aquele mapa era antigo demais para ter sido atualizado. Dom puxou o papel, virando-o para o bandido. - O que há aqui?

 - Não sei. Uma fortaleza flutuante, acho. - Se encolheu o homem.

 - Se ele não sabe... - Começou uma voz nova, vindo da porta que havia sido apontada antes. - Então as coisas são piores do que eu pensei. - Os quatro se viraram, vendo que era Stella quem passava pelo portal escuro, acompanhada de perto por Julie, que carregava Lyra pelo ombro.

 - O que quer dizer? - Perguntou Dominic, o rosto uma mistura de alívio imediato e preocupação futura.

 Stella demorou alguns segundos para responder, puxando o mapa para si. - Há um tempo, quando Dalan entrou na Aurora, eu comecei a procurar informações sobre Gamora. - Ela esquadrinhou as informações ali contidas, o cenho franzido enquanto pensava. - Ninguém me respondia, então achei que havia uma conspiração. Só que é mais do que isso. - Ela pegou o papel e o mostrou para o bandido, confuso como nunca. - Você não vê nenhuma diferença aqui? Não parece ter algo estranho?

 - N-não. - Gaguejou o homem, suando enquanto encarava os outros. - Deveria?

 - Magia. - Sussurrou a líder da guilda, apertando as pontas do mapa com força. - E está ficando mais forte. Nossas percepções devem estar se alterando a cada segundo.

 - Como nós lembramos e outras pessoas não? - Perguntou Dominic. - E para quê isso? Qual é a vantagem de esconder Gamora do mapa?

 - Sem querer incomodar... - Se adiantou Julie, deixando que Lyra sentasse em um banquinho próximo. - Mas acho que nossa prioridade é resgatar os outros. Independente de onde estejam.

 - Julie tem razão. - Concordou Koga, dando alguns passos para frente. - Embora eu ache que, quem quer que tenha nos atacado, sabe sobre Gamora. Seria muita coincidência, não? - Os outros não responderam, preferindo se ater a seus próprios pensamentos. Uma sombra gelada passou pelo coração de Stella, que respirou fundo. Sabia o que estava acontecendo.

 - Será que Tom Burstin teve algo a ver com isso? - Perguntou Julie, desconfiada e encolhendo os ombros. - A viagem era paga por ele.

 - Não acho. - Respondeu Stella, ainda pensativa. - Desconfio que ele tenha sido apenas algum bode expiatório. É um homem muito grande para ser manipulado. - Ela se virou para o bandido, que recuou. - Para quem vocês estão trabalhando?

 - Não sabemos. - Disse, virando o pescoço para observar seu companheiro agora caído. - Só fomos contratados para recolher qualquer náufrago e entregá-los. Apenas nosso líder se encontrou com eles.

 - Mercenários, imagino. - Cuspiu Dominic, se virando para os outros. - Temos que ir para lá. O mais rápido possível.

 - Preciso ir à Helleon. - Disse Stella. Um silêncio se seguiu, um pouco confuso. - Preciso ir buscar algumas coisas. Não irei ficar de fora da luta dessa vez. - Se explicou ela. A compreensão passou pelos olhos de Dom.

 - Não pode estar pensando em... - Começou ele, mas foi impedido pela líder.

 - Acho que já deu a hora, Dom. - Proclamou ela, melancólica. - Faria isso contra o Culto Púrpura se não tivesse sido sequestrada. Só que não posso aguentar que minha filha e os outros sejam reféns sem que eu faça nada. - O silêncio voltou a predominar, desta vez quebrado por Kulela.

 - Então, o que faremos?

 - Você e Lyra vem comigo para Helleon. Caso alguém esteja na sede, serão meu apoio. - Ordenou a líder, não encontrando resistência entre os companheiros. - O restante vai até essas coordenadas que nos apontaram. Salvem todos, e saibam que eu estarei a caminho. Entendido? - Koga, Dominic e Julie se entreolharam, acenando a cabeça.

 Era hora do contra-ataque.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

LEMBRETE


Olha só, que bonito. Vocês por aqui.

Bem, se estão pensando em ler Aurora, não temam. Existe um PDF bonitão aaaaaaaaqui. Tudo remasterizado, corrigido e ajeitado. Lindo, não?

Aproveitem e curtam a nossa página do Facebook. Espero que tenha um post amanhã.

Beijinhos. 

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Aurora: Capítulo 36 - O Náufrago Verde


AURORA
CAPÍTULO 36: O NÁUFRAGO VERDE

 Regressus era mais uma das centenas de ilhotas que se espalhavam pelo Mar de Cellintrum, tão pequena que nem chegava a aparecer em certos mapas. Mal possuía quinhentos metros quadrados, e embora parecesse um pequeno paraíso por suas praias de areia fina e branca e densa floresta tropical, não recebia um visitante há anos. O máximo que chegava à sua costa eram destroços de naufrágios e caixas que se perdiam, todas atoladas na areia até que a próxima tempestade as levasse para outra residência.

 No entanto, isso havia de mudar. Pois em uma limpa manhã após uma noite de tumulto no céu, uma alma viva se encontrava em Regressus. Era um reptiliano de crina negra, vestido com uma esfarrapada camisa branca e uma calça marrom, deitado de costas na orla. Seu nome era Kulela, e era um membro da Aurora. A maré alta havia o levado até a beira da praia, deixando-o encharcado porém aparentemente vivo. Seu rosto se contorcia no sol da manhã, preso em um pesadelo contínuo de corredores submersos e giratórios. Uma onda vinha em sua direção, tão forte que o arremessou para fora do navio, onde as trevas do mar o abraçaram e o levaram para longe...

 - AH! - Berrou ele, se levantando com um salto. A luz o incomodou em resposta, fazendo com que ele esticasse o braço na frente dos olhos. Seu coração batia com firmeza, bombeando o sangue aquecido pelo sol. Olhou ao redor, percebendo a praia suja de destroços que se aglomeravam ao seu lado. Sua mente fez a associação que não queria fazer. Não havia sido um pesadelo.

 - EI! - Gritou para o vazio, esperando ser respondido. Sem sucesso. Se levantou e sentiu uma pontada no abdômen. Rangeu os dentes e olhou para baixo, mas não havia nenhum corte visível. Provavelmente foi apenas uma pancada, concluir ao tatear a região. Voltou a encarar ao redor, procurando seus companheiros, mas estava sozinho. Sozinho em um lugar desconhecido, com apenas o que tinha no corpo.

 Arregalou os olhos e apalpou o peito, percebendo com alívio uma tira de couro coberta por bolsos que envolvia seu tórax. Costumava guardar seus ingredientes mais raros consigo com medo de perder o restante em algum tipo de acidente, o que surpreendentemente tinha se tornado realidade. Só que eles não fariam nada sozinhos. Eram apenas catalisadores, dependentes de substâncias que recheassem o bolo, por assim dizer. Não o ajudariam ali, em uma terra perdida pelos deuses.

 Kulela, percebendo que estava exausto, se sentou na areia tomando cuidado com o ferimento. Suspirou, pensando no que faria em seguida. Só lhe restava rezar que alguém da Aurora estivesse vivo, mas seria muita ingenuidade achar que o achariam ali. Deu uma olhada na ilha atrás de si, com sua mata selvagem e vazia. Duvidava que aquele lugar fosse sequer catalogado, que dirá uma rota de navios. Por um momento se viu desejando estar de volta às florestas Cellintrunianas. Podia ser um eremita, mas pelo menos tinha a situação sobre controle.

 Um vento quente soprou do mar, agitando sua crina em direção à mata. Observou as árvores desarrumadas, desfocando a visão enquanto que pensava em suas opções. Não adiantaria de nada ficar ali e lembrar de dias mais fáceis. As primeiras tribos de reptilianos haviam conseguido gerar civilizações em florestas fechadas, portanto ele deveria ser capaz de pelo menos garantir uma semana de suprimentos, supôs enquanto que conscientemente ignorava o fato de que não havia nenhum registro de uma tribo alojada em ilhotas minúsculas.

 Talvez alguns frutos ou uma poça de água da chuva o aguardassem, se esperançou enquanto que ficava de pé. Poderia ser o suficiente para sobreviver até que montasse um barco ou algo parecido, mas primeiro precisava garantir sua sobrevivência,

 Deu uma volta no bosque da ilhota, recebendo boas e más notícias. Não haviam animais nem frutos comestíveis ali, mas Regressus possuía um pequeno valão que havia armazenado a água da chuva. Além disso, Kulela notou um cardume de peixes passando bem próximo da ilha ao sair da mata pela primeira vez. Decidiu cortar um galho grosso e usar como lança, assegurando assim seu alimento do dia-a-dia.

 Além disso, conseguiu achar alguns materiais bastante interessantes. Havia um conjunto de árvores ali chamadas de guerrilheiras, cujas folhas largas eram um excelente componente de medicamentos. Sua casca avermelhada também tinha propriedades especiais, no entanto serviriam de forma mais ofensiva. O reptiliano separou o que conseguia da guerrilheira magra e torcida, guardando-os em seus bolsos livres. Talvez pudesse já preparar um remédio, considerou ele enquanto colhia as folhas. Só os deuses saberiam o que aconteceria naquela ilha, e se prevenir nunca era demais. Já as cascas exigiriam quase toda a água doce que ele tinha ali, portanto decidiu guardá-las.

 Se pôs rapidamente a trabalhar, triturando as folhas com as mãos e misturando-as com água e um pouco de pó amarelo que havia trazido consigo. O cheiro do composto começou a ficar forte, enchendo o ambiente do odor semelhante ao de um gato molhado. Kulela buscou um pouco de areia, improvisando a farinha que precisava. Toda aquela atividade o fez se lembrar de seus dias de treinamento, isolado em alguma floresta avulsa enquanto passava os dias recolhendo ingredientes e formulando experimentos diversos.

 Riu com o canto da boca ao se lembrar de seu supervisor, um reptiliano velho e meio senil que se recusava a atender outras raças devido a todo o preconceito que sofreu em sua vida. A maior parte do corpo docente o considerava apenas mais um excêntrico, mas Kulela se fascinou pelo que ele dizia. Fora como se sua mente tivesse se aberto, percebendo a situação de merda que sua raça passava e que não podia mais aceitar aquilo. Se perguntou o que seu mentor diria ao encontrá-lo hoje. Membro de uma guilda humana. Realmente, os deuses gostavam de brincar com as vidas dos mortais.

 Após algumas horas o remédio estava pronto. Kulela o guardou em um dos seus bolsos, se levantou e esticou as costas, sentindo os ossos estalarem. A dor nas costelas havia passado, mas o estômago gemeu, ansioso por se alimentar. Talvez conseguisse pescar alguns peixes para o resto do dia, considerou enquanto pegava sua lança improvisada. Estava quase saindo da floresta quando notou que não estava mais sozinho.

 Havia um pequeno barco à beira de Regressus, uma simples canoa de madeira que balançava a cada pequena onda que passava por perto. Perto dela, na praia, um homem de longos cabelos brancos e acolchoadas roupas negras caminhava calmamente. Sua mão estava presa aos cabelos roxos de uma garota que era arrastada de rosto para baixo na areia, aparentemente desacordada. Ela vestia uma encharcada camisola branca, e mesmo com a face oculta era bastante familiar ao reptiliano. Lyra.

 Kulela voltou instantaneamente às sombras da mata, arregalando os olhos enquanto que respirava fundo. Sua mente paranóica trabalhava em velocidade, atenta à qualquer som oriundo da praia. Aquilo não parecia uma missão de salvamento. O homem estava sequestrando sua companheira. E o que faria depois? Se tinha a encontrado tão rápido, com certeza sabia do naufrágio do Intrépida Saída. Aquilo fora arquitetado? Estavam atacando a Aurora? O coração do reptiliano batia com vontade em seu peito, temendo pelo pior.

 Respirou fundo e inclinou minimamente a cabeça para trás, procurando o homem vestindo negro. Para sua surpresa, não havia nenhum movimento em sua direção. Ele parecia satisfeito com a garota em suas mãos e caminhava de volta para seu barco, assobiando baixinho. Os olhos de Kulela se arregalaram. Não estavam procurando por ele.

 Voltou a se ajeitar atrás da árvore, suspirando aliviado. Havia acabado de entrar na guilda, não era mesmo? Mesmo que fosse um ataque, muito provavelmente iriam se esquecer dele. Estava salvo. Era só aguardar mais alguns minutos e poderia estar em segurança, podendo concentrar todos os seus esforços em sair dali. Talvez voltasse às Florestas Cellintrunianas, considerou. Voltar à vida calma,sem humanos. Fechou os olhos, sorridente.

 O rosto de Lyra se destacou em sua escuridão particular. Haviam conversado um pouco durante as constantes sessões médicas, não? Aprendeu a gostar um pouco dela. Poderia dizer o mesmo de Stella, mesmo que a mulher fosse bastante distraída. Deu uma risada com o canto da boca ao se lembrar de quando caçou Dalan e Sophie por metade de Helleon, bufando a cada passo...

 Não, pensou ele abrindo os olhos, cortando o restante das lembranças em sua mente como uma faca. Sabia como aquilo ia acabar. Não, não, não, ele não devia nada à eles. Havia curado seus ferimentos e era só, não tinha que fazer mais nada. Eram apenas conhecidos, e agora seus caminhos se desencontrariam. Afinal, era um reptiliano orgulhoso. Havia sido ensinado a não se rebaixar às outras raças da Aliança. Todos racistas. Todos...

 ... exceto a Aurora. Não havia sido tratado mal durante seu tempo na guilda. Claro, haviam desavenças, mas elas nunca pareciam motivadas por preconceito. Pelo contrário, desde o início eles foram calorosos, cada um à seu próprio jeito. Não era mesmo? Ele apoiou a nuca na árvore, olhando com dúvidas para o céu. O que seu mentor faria? Ele havia sido tratado com desprezo durante toda a sua vida, chegando rancoroso aos seus anos finais. Só que... será que as coisas teriam sido diferentes caso ele tivesse encontrado uma Aurora? Será que o próprio Kulela agiria de forma diferente após essa experiência?

 Saco.

 -EI! - Gritou o mais alto que podia, saindo da mata com uma expressão obstinada no rosto. O homem se assustou de início, mas voltou a se acalmar assim que viu o reptiliano.

 - Desculpa te incomodar, senhor selvagem. - Disse como se estivesse falando com uma criança. Ele largou Lyra e juntou as mãos, se reclinando na direção de Kulela. - Eu juro que vou sair daqui e nunca mais voltar, tudo bem? Irei te deixar fazer fazendo rituais tribais ou qualquer coisa que sua raça faça para passar o tempo.

 O reptiliano sorriu, ainda com o coração batendo forte. Pelo menos o homem havia tornado sua decisão um pouco mais fácil. Iria adorar bater nele. - Acredito que você esteja procurando por alguém, não é? - Perguntou, levantando a manga e mostrando a Marca da Guilda. O sequestrador demorou um pouco para compreender aquelas informações, e quando fez isso Kulela já havia voltado a se embrenhar na mata.

 - VOLTE AQUI! - Gritou, deixando sua presa jazida na areia. Fechou a mão em um punho e preparou o braço para desferir um soco no ar.

 Kulela estava correndo pela mata quando uma enorme corrente de ar o atingiu pelas costas, arremessando-o para longe. Bateu em uma árvore com o rosto e esteve bem próximo de perder os sentidos. O que aconteceu, perguntou enquanto se recuperava. Olhou para trás a tempo de ver o homem estender o punho em sua direção. Uma nova rajada de força o atingiu, impelindo-o com força através das folhas e dos troncos.

 O reptiliano tentou elaborar um contra-ataque, mas já era tarde. Sem nem ter aberto os olhos foi jogado para o lado, se arrastando na areia. Ouviu passos e tentou reagir, jogando seu rabo na direção dos sons. Aparentemente foi inútil, pois se viu arremessado para o ar. Conseguiu abrir as pálpebras e perceber que estava muito acima da ilha. Naquele momento o homem de cabelos brancos se impeliu ao ar em sua direção, usando seus próprios poderes para gerar impulso. Ele sorria, um riso maníaco e cheio de dentes.

 Em um instante o adversário agarrou o pescoço de Kulela e girou o corpo, atirando-o para a mata. A velocidade era tão grande que apenas a queda foi notada, um estouro no meio da pequena floresta que derrubou as árvores mais próximas e gerou uma pequena cratera. E no meio dela, jazia o membro da Aurora.

 Kulela tossiu, cuspindo o sangue que enchia seus pulmões. Preciso fazer alguma coisa, pensou desesperado. Conseguiu ouvir o homem aterrizar na praia à distância e se arrastou para trás, se forçando pelos braços. Seus dedos mergulharam na poça d'água que havia encontrado antes, e um plano surgiu em sua cabeça em um estalar de dedos.

 Rapidamente ele desamarrou a faixa de couro em seu peito, arranhando sua própria pele na confusão. Eu vou me arrepender disso profundamente, concluiu enquanto arrancava a bolsinha onde estava o composto de cura e jogava o restante do acessório na poça. Passos agora se aproximavam, o som se misturando com o fervilhar grosseiro da água perto de sua cabeça. As cascas avermelhadas estavam em decomposição, soltando um cheiro acre. Vamos, vamos, vamos, implorou enquanto tentava abrir a bolsinha.

 Infelizmente uma nova corrente de ar o atingiu, o separando da valise e o jogando por cima da poça até cair na grama, onde os respingos esvoaçados o encontraram. A pele ardeu de forma insana onde foi atingida, mostrando que o pequeno experimento havia funcionado. Que maravilha, pensou o reptiliano enquanto que rangia os dentes. Tentou se apoiar para elaborar um contra-ataque, mas seu tempo já havia acabado. Os pés do homem se encontravam à sua frente, apenas um pouco à frente da poça ainda sibilante.

 - Acho que não chegamos a nos apresentar. - Disse ele, sorrindo de forma tranquila e estendendo a mão na direção de Kulela. - Meu nome é...

 O membro da Aurora não era muito religioso, disso tinha certeza. Costumava se preocupar mais com seus afazeres do que louvar aos deuses, mas naquela noite reservaria um tempo especial para rezar. Afinal seu adversário havia decidido começar a conversar logo ao lado do composto que havia preparado. Um milagre, motivado pela estupidez.

 Kulela rugiu e balançou o rabo, derrubando o homem para trás. Ele caiu bem em cima da poça d'água, e seus olhos se arregalaram um ínfimo de segundo antes de começar a gritar, um berro moldado pelo mais puro desespero. O reptiliano colocou as mãos nos ouvidos, procurando ignorar a agonia do outro. Aquele não era um composto normal. De fato, mal sabia o que havia criado, pois ninguém nunca havia testado aquela combinação de ingredientes. Pelo visto faziam mal. Iria anotar isso mais tarde.

 E assim, alguns segundos de desespero depois, o silêncio tomou conta de Regressus, sendo quebrado apenas pela distante quebra das ondas na praia. O homem sem nome continuou onde estava, com os olhos virados e rosto contorcido. Kulela se levantou e jogou a cabeça para trás, sentindo o vento salgado agitar sua crina negra. Um cansaço sobrenatural tomou conta de seu corpo enquanto a adrenalina se esvaziava, quase o derrubando. O reptiliano tropeçou e avistou o pacote do medicamento que havia preparado mais cedo, através dos olhos semicerrados.

 Pegou-o com alívio e estava prestes a ingeri-lo quando se lembrou de Lyra. As dores do corpo se aprofundaram como uma forma de protesto, mas não havia indecisão. O membro da Aurora rapidamente se pôs a correr na direção da praia, encontrando a garota virada para baixo na areia.

 Se ajoelhou ao seu lado e abriu o pacote, olhando para frente distraído. Avistou um barquinho balançando nas ondas um pouco à direita, mas o que chamava a atenção era um grande navio em alto-mar, curiosamente parado perto da ilha. A mente de Kulela trabalhou com as possibilidades. Talvez existisse uma relação entre o sequestrador e aquela embarcação. Talvez fosse o resgate, ou algo completamente alheio à situação deles. De qualquer jeito, só havia um caminho a se tomar.

 Para frente. Sempre para frente.