sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Aurora: Capítulo 35 - Toda Esperança Deve Afundar


AURORA
CAPÍTULO 35: TODA ESPERANÇA DEVE AFUNDAR

 - Ugh! - Soltou Amanda com os olhos arregalados, correndo até a beira do navio. Ela agarrou o corrimão com as duas mãos e jogou o tronco para fora do barco como se sua vida dependesse disso. Um som nojento ecoou por toda a extensão do convés da Intrépida Saída, embarcação que Tom Burstin havia cedido aos membros da Aurora para uma viagem. Estavam a caminho de uma cidade chamada Kanon, onde uma estalagem relaxante os aguardaria. O trajeto passava pelo meio do Mar de Cellintrum, que naquele dia estava calmo e brilhante embaixo de um limpo céu azul. Aves brancas se agitavam, mergulhando em um vôo baixo que as deixava perto da embarcação.

 Amanda continuou mais alguns segundos dobrada no corrimão, sentindo o vento salgado agitar seus cabelos desembaraçados. Respirava debilmente, tentando recuperar a compostura, até que uma nova contração a fez fechar a boca e abrir os olhos novamente, e o som asqueroso voltou a cruzar o ar. Ela estava tão concentrada nesse ato que nem ouviu os passos na madeira atrás de si, indicando que uma pessoa se aproximava.

 - Você sabe que pode pedir um remédio de enjoo para Kulela, não? - Perguntou Dalan, apoiando as costas no corrimão ao lado dela.

 - Eu estou bem... - Conseguiu responder a garota em uma voz débil. - Só preciso de um pouco de ar fresco. - Tentou se levantar, mas imediatamente desistiu da ideia.

 - Dá pra ver. - Zombou o rapaz com um sorriso no rosto. - Eu poderia me aproveitar dessa situação, não é mesmo? Um pouco de vingança por tudo que me fez passar.

 - Bem, você pode tentar. - Disse ela, inclinando momentaneamente a cabeça para o lado. - Só que um dia vou sair desse barco. Aí a vingança vai mudar de lado, e acredite. - Acrescentou, virando o rosto para o companheiro. - Irá se arrepender. - Os dois sorriram, e Dalan a ajudou a voltar para o convés.

 - Às vezes acho que você se superestima demais. - Riu o garoto, esperando Amanda se recompor com os braços cruzados e as costas no corrimão. Ela estava pálida e fedia levemente, mas parecia um pouco melhor do que antes. - Eu recomendo que beba água. Pode se desidratar desse jeito, o que talvez fosse uma benção ao restante de nós.

 - Me lembra de vomitar em cima de você da próxima vez. Na sua boca. - Ela começou a andar enquanto se apoiava no ombro do amigo, os dois na direção das escadas.

 - Anotado. Vou dormir lá no topo do mastro da próxima vez. - O rapaz riu, balançando um pouco o corpo para desequilibrar a companheira. - Um lugar que a senhorita nunca vai alcançar se enjoando desse jeito. Chamo de paraíso.

 - Não tenho culpa se eu fui criada em terra firme como pessoas normais, garoto-peixe. - Retrucou ela após dar um soco fraco nas costas de Dalan. Sua cabeça se elevou até avistar o mastro, com uma singela bandeira branca tremulando no topo. - Você não estava lá agora mesmo?

 O garoto acompanhou sua visão, e um pouco da animação fugiu de seu rosto. Virou o pescoço para trás, avistando as ondas azuis que se agitavam atrás da Intrépida Saída. Fora ali que, um dia, Gamora se encontrava. Estavam atravessando os territórios de sua ilha natal, e não parecia haver uma prova de que realmente tivesse existido. Navegavam por cima de fantasmas. - Estive. Achei que tinha visto alguma coisa, mas não era nada de mais. - Se esquivou sombriamente, ajudando Amanda a descer os degraus.

 Após isso, o convés voltou a ficar silencioso. Os membros da Aurora estavam cansados de todos os acontecimentos das últimas semanas, e decidiram se ater a seus quartos para descansarem. A maioria, pelo menos. Quando a lua já estava alta e cheia no céu, algumas pessoas se encontravam fora de suas camas, como era o caso de Koga, que caminhava tranquilamente pelos corredores sombrios com uma vela na mão.

 O rapaz bateu levemente em um dos quartos disponibilizados pela tripulação no convés inferior, colando o ouvido à porta em busca de qualquer som como resposta. Um chamado fraquinho do outro lado o fez entrar, tendo cuidado para verificar se não havia ninguém o observando no corredor.

 Lyra o encarou de dentro de seu quarto, sentada na cama com as costas no batente e cobertas brancas por cima do corpo. Vestia uma simples camisa branca, e sorriu ao identificar o companheiro. - Não achava que iríamos nos encontrar assim tão cedo. - Disse, se ajeitando levemente para que seu ferimento não voltasse a doer. - Sou em quem marca normalmente essas reuniõezinhas, não é mesmo?

 - Bem, eu quis agitar um pouco as coisas. - Respondeu Koga, rindo enquanto trancava a porta atrás de si. Puxou o banco mais próximo e se sentou ao lado da cama, apoiando os braços nas costas do assento. - Sabe, pra não cairmos na rotina.

 A garota fechou os olhos e balançou a cabeça, rindo pelo nariz. - Bem, então você gostaria de apimentar as coisas. - Zombou, mas não conseguiu manter o rosto sério e desviou os olhos, voltando a rir. - Sobre o que você quer falar? - Perguntou finalmente com o rosto tranquilo.

 Koga engoliu em seco e começou a corar, parecendo se arrepender de ter iniciado aquela conversa. Juntou as mãos nervosas e passou a fitar uma tábua de madeira levemente solta no chão, como se ela possuísse todas as respostas do universo. - Eu quero falar sobre Julie. - Murmurou quase que inaudível.

 Lyra arregalou os sobrancelhas por um instante, até inclinar a cabeça e adotar uma expressão de compaixão. - Own... - Soltou.

 - Ah, começou. - Resmungou o rapaz, revirando os olhos enquanto se inclinava para trás. Sua companheira aumentou o sorriso, se ajeitando na cama mais uma vez.

 - Então. - Começou, estalando a língua antes de continuar. - Sobre o que quer saber? - Perguntou com o rosto inclinado. Koga coçou a cabeça, procurando um jeito de continuar sem que a amiga o zombasse.

 - Ela está estranha. - Confessou finalmente. - Tipo, sem falar com ninguém e passando muito tempo sozinha. No início achei que era normal, já que passamos pelo inferno recentemente. - Engoliu em seco, dando uma olhadela para a garota na cama. - Só que Amanda me disse que... que Sasha e ela brigaram. Sobre aquela mania de Julie sempre evitar missões para nos proteger. Sasha mandou ela resolver isso ou sair da guilda. - Os dois ficaram em silêncio depois daquilo. Lyra sumiu com o sorriso e abaixou o queixo, procurando algo a dizer.

 - Amanda me contou, mas... não acho que Sasha realmente faria isso. - Falou lentamente após o período de reflexão. - Você sabe como ela é. Deve ter sido só uma pressão pra que Julie fizesse a cabeça. - Completou encarando o amigo.

 - Sim, mas e se ela não fizer? - Perguntou Koga, se agitando um pouco. - Você sabe como Julie é. Orgulhosa demais. Se realmente não achar um jeito de se acostumar com o perigo que a gente pode passar... - Ele mordeu a língua, com o peso das consequências finalmente o atingindo. - Acho que ela realmente nos abandona.

 - Bem... - Lyra também parecia nervosa, passando um dedo pelo queixo. - Não sou tão boa quanto Amanda nessa coisa de saber o que fazer com as outras pessoas, mas acho que você deveria dar um tempo a ela. - O amigo a encarou, parecendo confuso. - Digo, é um problema muito grande, e ela realmente precisa resolver isso. - Continuou com as mãos se agitando. - E apenas ela pode achar essas respostas. Fique por perto, mostre que pode ajudá-la com qualquer coisa, mas no final a decisão não vai ser sua.

 Koga permaneceu em silêncio após ouvir aquilo, batendo os polegares em um ritmo constante. - Não era exatamente o que eu queria ouvir... - Riu ele, se levantando. - Mas acho que consigo entender a lógica. Vou tentar fazer isso.

 - Vai ser melhor assim. - O tranquilizou Lyra. O amigo recolheu a vela e se aproximou da porta, destrancando-a. - Se quiser mais conselhos amorosos, estou aqui para te ajudar. - Acrescentou ela.

 - Segura sua onda, cupido. - Zombou o rapaz, colocando a cabeça para fora do corredor em busca de outra alma viva. - Mesmo se alguma coisa acontecer, você vai ser a última a saber. Consigo imaginar as coisas que vai dizer.

 A garota lhe deu a língua, aviso suficiente para que Koga saísse dali rindo. O rapaz caminhou pelo convés escuro, se tornando mais pensativo a cada passo. Acabou tão distraído que nem percebeu os dois vultos que se embrenhavam nas trevas, escondidos atrás de uma grande pilha de barris repletos de carne salgada. Uma das sombras, após um longo período imóvel, se levantou lentamente e espiou a área ao redor.

 - Acho que estamos seguros agora. - Disse Dalan, se recolhendo para a pequena fresta que tinha entre os barris e a parede. Se sentou em um canto com as pernas dobradas perto do peito, deixando a metade do espaço disponível para que Sophie fizesse a mesma coisa. - Já é a segunda vez que vejo Koga passar por aqui perto. Se não soubesse, diria que ele está nos procurando.

 - Tomara que não. - Torceu a garota no outro canto, com o rosto afundado nos joelhos. O espaço ali era bastante apertado, impedindo que um deles pudesse sequer sentar com as pernas cruzadas. Os barris balançavam ligeiramente, acompanhando o navio, e infestavam aquele local com um forte cheiro de carne e sal.

 - Bem... - Começou o rapaz, rindo pelo nariz com o nervosismo. Mesmo que Sophie e ele tivessem a melhor das intenções, não podia deixar de imaginar a reação de um membro da Aurora ao encontrá-los ali. Especialmente Julie. - Quer que eu comece hoje de novo? - Perguntou, estremecendo um pouco ao tentar exorcizar a imagem de Julie socando-o com os pedaços de carne.

 - N-não... - Se adiantou a outra, levantando o queixo. - Obrigada, mas acho que já está na minha vez.

 - Podemos revesar, se quiser. - Deu de ombros Dalan, tentando anuviar o clima. Conseguiu, pois a garota deu um tímido sorriso. - Então, do que quer falar?

 - Bem... - Pensou ela, desviando o olhar. - Pode ser a primeira vez que meus poderes se manifestaram. Tudo bem? - Perguntou ao companheiro, que sorriu.

 - Ei, você pode falar do que quiser. - A acalmou. Ela ruborizou um pouco, escondendo o queixo entre os joelhos e os abraçando. Demorou alguns segundos para começar a falar.

 - Eu devia ter uns treze anos. Já estava na Aurora, e naquele dia fui fazer uma missão no centro de Helleon, se não me engano ajudar a trazer dois cavalos para um novo estábulo. - Ela olhava para baixo enquanto contava, de vez em quando fitando Dalan para ver se ele continuava escutando. - Fiz minhas tarefas e comecei a voltar para a sede. Só que quando cheguei na zona baixa, um grupo de ladrões tentou me assaltar.

 - Ah. Então era por isso que você me alertou sobre a vizinhança naquele dia. - Se recordou Dalan, lembrando de quando ele e Sophie tinham ido fazer compras na cidade. Uma péssima lembrança, mas a garota não pareceu se importar, pois acenou positivamente com a cabeça.

 - Sim. Naqueles dias os assaltos não eram tão frequentes por causa do senhor Adam, mas não podiam deixar uma garota andando sozinha passar batido. Me emboscaram e eu corri, conseguindo me afastar um pouco. - Ela intensificou o aperto nos joelhos, levando-os mais perto do rosto. - Virei a esquina e me encontrei em um beco sem saída. Se eu saísse eles com certeza iriam me achar, então fiquei parada e rezei para que não me vissem.

 - Acho que funcionou, não é? - Perguntou o garoto, procurando provocar um novo sorriso, mas rapidamente se arrependeu da tentativa.

 - É, eles olharam para o beco, mas me ignoraram. Demorei um pouco para perceber que estava invisível. - Ela olhou para a própria mão, escondida nas sombras. - Eu... me lembro que pensei em lutar contra eles. Me defender e voltar para a Aurora. Só que... - Ela fechou os olhos, aguardando alguns segundos. - Não consegui. Fiquei parada, tremendo em um canto, com medo de sair do beco até Julie chegar. De algum jeito, sabia que isso ia se tornar frequente com o tempo.

 - Sophie... - Tentou começar Dalan, mas ela já estava nervosa demais para ser interrompida.

 - Eu... eu juro que tentei várias vezes fazer alguma coisa nos anos seguintes. - Mesmo naquela escuridão, dava para notar que seus olhos começavam a se marejar. - Tiveram algumas missões em que procurei lutar e ajudar, mas apenas fiquei no caminho. Quando você foi... atacado por Desaad naquele dia e eu fiquei sem saber o que fazer, percebi finalmente que não era feita para isso.

 - Escuta. - Disse o rapaz no momento em que a companheira se calava e voltava a afundar o queixo nos joelhos. - Você foi excelente em Thomas Galvan. Eu me lembro disso. Se não fosse por sua ajuda, estaria morto por aquele elfo maluco. - Ela o encarou com os olhos brilhantes, mas não falou nada. Dalan se inclinou para frente, ficando de joelhos. - Eu sei que pode ser difícil, mas você tem que tentar. Mesmo que erre às vezes, não pode parar.

 - Dalan, um erro em uma missão pode custar uma vida. - Alertou ela com a voz abafada pela própria pele. - Eu sei que não conseguiria lidar com isso.

 - Sim, mas... - Ele coçou a cabeça, olhando para a parede ao seu lado. - Isso não é só com você. Todos nós sabemos que falhar pode ser fatal, mas é nessa hora que temos... temos confiança em nossos companheiros. - O rapaz pareceu se animar com sua frase, e optou por seguir essa linha de pensamento. - Em Thomas Galvan, eu confiei em você. Sabia que poderia fazer o que pedi. E tenho certeza de que os outros fariam a mesma coisa.

 - Nem todos... - Confessou a garota, se lembrando da irmã.

 - Se tem gente que não confia... - Começou Dalan, engolindo em seco enquanto pensava no que iria falar. Era mais difícil do que achava. - Prove a eles que estão errados. O único jeito de fazer isso é provar seu valor. E... não vai conseguir fazer isso sem tentar. - Sophie ficou em silêncio, observando o companheiro com os olhos marejados enquanto considerava suas palavras. Era muito estranho ouvir alguém falar que confiava nela. Passou anos sem que nem mesmo ela desse algum valor a si própria. Só que agora alguém lhe estendia a mão, e esse alguém era justamente Dalan. O rapaz que havia feito mais confusa do que nunca nas últimas semanas. No entanto, ele acreditava nela. E não podia ignorar isso, não quando finalmente alguém lhe dava algum crédito.

 Naquele momento percebeu que não podia perder essa confiança. Era a única que lhe restava, e não conseguiria achar outra nem mesmo dentro de si. Deveria fazer algo para retribuir o sentimento dele, pois era o único jeito de conseguir o dos outros. Era sua última chance de provar seu valor, para Dalan, para Julie e para o resto da Aurora. Era só agarrar na única corda que haviam lhe jogado.

 - Posso... posso tentar. - Disse finalmente, levantando um pouco o queixo. Havia um mínimo sorriso em seus lábios, que foram espelhados nos do companheiro. Aproveitaram esse raro momento de tranquilidade, ao mesmo tempo em que uma estranha sensação se apoderou do navio, invisível a quase todos. Quase.

 Naquele momento, em outro lugar, Marcus levantou a cabeça. Ele olhou ao redor com seu olho descoberto, com o coração batendo cada vez mais forte.

 - Algum problema? - Perguntou Sasha, sentada na mesa em que compartilhavam. Estavam na cozinha da Intrépida Saída, dividindo uma simples ceia. O rapaz ficou de pé, com o coração na boca.

 - Precisamos reunir as pessoas e sair daqui. Agora. - Ordenou nervoso, e a garota se levantou.

 - O que houve? - Perguntou ela, mas o destino respondeu por Marcus. Uma enorme torrente d'água estourou a parede atrás deles, explodindo água e pedaços de madeira para todos os lados. Os dois membros da Aurora se abaixaram instintivamente, se protegendo dos restos de comida e utensílios que foram catapultados para longe. O cheiro de água salgada infestou suas narinas e a multidão de respingos os encharcou quase que imediatamente, fazendo com que a adrenalina subisse para níveis estratosféricos. - PARA FORA, JÁ! - Gritou Sasha através do som de cascata, protegendo o rosto com os braços enquanto se virava para a porta. Seus tornozelos já estavam afundados na água do mar, mas ela correu para saída, chapinhando no oceano que invadia o aposento.

 Assim que alcançaram o corredor e fecharam a porta atrás de si, um estrondo ao longe os fez estremecer. Se viraram e viram um redemoinho de ondas em sua direção, com as camadas lutando pela primeira posição naquela apertada galeria. A água veio tão rápida que impediu qualquer reação, batendo neles com a força do mar e arremessando-os para longe.

 Marcus se viu arrastado pela torrente, que o cobriu e o socou por todos os lados. Se viu jogado como um boneco de pano, perdendo a noção de espaço até chocar suas costas em uma parede. Se impeliu rapidamente para cima e conseguiu sentir o ar frio do convés inferior, arfando em busca de energia. Abriu os olhos através do sal, vendo que os corredores já estavam tomados quase que por inteiro pela água.

 Sasha emergiu ao seu lado e ele se virou para ela, percebendo que o navio estava inclinando. Isso era péssimo, mas havia um mísero lado bom: as galerias à direita ainda não haviam sido completamente submergidas. - POR AQUI! - Rugiu ele, segurando o braço da companheira e nadando para a saída. Os dois bateram contra as ondas, ouvindo o ranger maléfico da madeira se destacar através do som do oceano martelando o convés. Estavam em um navio condenado.

 - PRECISAMOS ACHAR OS OUTROS! - Gritou Sasha, segurando uma maçaneta para tomar impulso. O chão já se dobrava perto dos sessenta graus, e ela se apoiou no batente para saltar em direção à esquina, conseguindo abraçar a parede com a água em suas canelas. Atrás dela, Marcus se segurava em uma mesa que boiava.

  - Consegue ver alguém? - Perguntou o rapaz. Sasha passou uma mão pela testa, afastando as mechas encharcadas. As velas haviam apagado, e a única luz vinha dos buracos por onde o Mar de Cellintrum tentava invadir. Portanto, demorou algum tempo para ela ver os barris que rolavam em sua direção.

 A garota instintivamente se largou, caindo nas ondas abaixo de si. Os barris seguiram seu caminho, cobrindo sua visão. Eram diversos, muito mais do que conseguia atravessar. Eles formaram uma mortalha, jogando-a para o fundo do convés. Sasha tentou passar por eles, mas sempre que conseguia se desviar de um, dois outros ocupavam seu lugar. Seu coração bateu mais forte e seus olhos se arregalaram através do sal ardido, buscando alguma saída milagrosa. Bolhas de ar escaparam por sua boca, elas também procurando a superfície.

 Eis que uma mão agarrou sua maria-chiquinha, puxando-a para cima. Impeliu a cabeça para trás ao romper a barreira do ar, buscando o oxigênio salvador. A voz de Dalan se sobrepôs ao caos, chamando-a pelo nome.

 - SASHA! VEM PRA CÁ AGORA! - Ela seguiu o som, nadando cega através dos redemoinhos. Conseguiu apalpar um braço que a encaminhou, e duas mãos a puxaram para um chão molhado.

 - Ela está bem? - Parecia Sophie. Abriu os olhos, vendo que os dois estavam ajoelhados ao seu lado. Atrás de si, Marcus os alcançava.

 - O que está acontecendo? - Tossiu a garota, colocando as duas mãos na madeira aos seus joelhos enquanto recuperava o fôlego.

 - Bem, acho que está claro. Mas só pra ratificar uma informação que pode passar batida... - Ofegou Dalan, batendo o cotovelo na parede. - Isso aqui era o chão. - Os outros três olharam para ela, e perceberam que as tábuas horizontais realmente comprovavam a afirmação.

 - Se estamos em noventa graus... - Pensou Marcus em voz alta, olhando para cima. - Podemos sair por aqui.

 - Espera, e os outros? - Perguntou Sophie, abrindo os braços. Havia perdido sua boina, e os cabelos encharcados estavam colados ao redor da cabeça. - Não podemos simplesmente deixá-los aqui!

 - Se alguém tivesse ficado para trás, teríamos visto. - Avisou Sasha, se levantando debilmente. - E de qualquer jeito, podemos iniciar uma procura inútil caso todos tenham escapado. Só saberemos disso se chegarmos à superfície. - Sophie fez uma cara de desespero, mas não havia o que questionar. Marcus estendeu a mão para o teto, que mais cedo era a parede.

 - Protejam a cabeça. - Os três obedeceram rapidamente, e ele fez uma pequena explosão que arrebentou a madeira acima deles. Alguns objetos avulsos caíram pelo buraco, mas felizmente não acertaram nenhum dos membros da Aurora. Um aposento escuro os encarava do alto, e Dalan se adiantou e juntou as mãos em uma concha.

 - Damas primeiro. - Sasha foi na frente, colocando o pé nas mãos do garoto e sendo impulsionada para o rombo no teto. O rapaz quase escorregou com a força, muito porque o chão já estava se inundando. - Rápido, por favor. - Pediu nervoso. Sophie foi a segunda, e a companheira a ajudou a subir. Um estrondo agourento se propagou no corredor abaixo, e Dalan engoliu em seco. - Vai, vai, vai! - Marcus foi o próximo da fila, e as garotas o ajudaram a alcançar o aposento em que estavam. Sasha estendeu a mão, convidando-o a pular.

 Naquele instante, no entanto, uma nova torrente explodiu. A água veio com tanta velocidade que Dalan sumir em um piscar de olhos, arrastando-o para a morte. - DALAAAN! - Gritou Sophie, se ajoelhando perto do buraco. Marcus rapidamente se jogou pelo espaço.

 - Eu pego. - Disse ele antes de sumir. Sasha apenas conseguiu estender a mão, mas o companheiro já havia sumido no córrego violento abaixo deles. Ao seu lado, Sophie começava a chorar.

 - Preste atenção! - Ordenou Sasha, segurando a colega pelos dois ombros. Seus olhos azuis encontraram com os verdes da companheira, ambos arregalados e nervosos. - Precisamos ir para cima! Eles sabem se virar, mas temos que sair daqui! - Se perguntou se estava tentando convencer Sophie ou ela mesma. De qualquer jeito se levantou, procurando alguma saída. Estava no que parecia um quarto de hóspedes não usado, com uma cama tombada e escrivaninhas esparramadas. Havia uma janela acima de si, e uma noite escura e tempestuosa os encarava.

 A garota correu para pegar alguma coisa para arrebentar o vidro mas a parede se rompeu à sua frente, trazendo consigo uma torrente para abraçá-la. Foi impelida para trás, tentando se livrar da água que invadia sua boca e suas narinas, fechando os olhos para tentar ao menos garantir um sentido para uso futuro. Sophie a puxou para o lado, salvando-a momentaneamente. No entanto o aposento começava a se inundar, acompanhando o restante do navio.

 Sasha arregalou os olhos, com o medo envolvendo seu coração. Havia esperado um momento de paz, mas parecia que era pedir demais. - Temos que sair daqui! - Gritou, começando a socar a parede atrás de si. Talvez o aposento ao lado tivesse alguma saída, pensou meio que rezando. Seus punhos se chocavam com a madeira, batendo com tanta força que começaram a sangrar.

 Sophie por sua vez foi em direção ao buraco, bambaleando através da água que já chegava à cintura. Talvez pudessem sair pelo rombo, pensou ela. As lágrimas se confundiam com os resquícios do mar, mas ela tentou seguir em frente. Quando passou pelo buraco do chão, algo segurou seu tornozelo. E gritou.

 Sua companheira olhou para trás com o berro agudo, conseguindo ver a garota sendo arrastada para baixo. - SOPHIE! - Sasha saltou em sua direção, mergulhando na água para salvar a colega. Ela já estava com o tronco atravessando o buraco, as bochechas infladas e os olhos abertos de terror. Tentou estender a mão, mas um puxão a fez descer até sumir. Seu grito se tornou uma miríade de bolhas, que se agitaram no espaço em que estivera antes.

 Sasha voltou à superfície, arfando. - SOPHIE! - Berrou para o teto, que já estava bem próximo. O aposento se inundava com uma velocidade impressionante, e a garota já não conseguia alcançar o chão. Se dirigiu à janela, começando a socar o vidro. - ALGUÉM ESTÁ AÍ? - Não conseguia enxergar nada do outro lado, com exceção dos pingos de chuva que martelavam impiedosamente. O mar já alcançava seu pescoço, e ela levou a boca tão próxima do vidro para respirar que seu hálito marcou o material. - ALGUÉM! - Em um instante já estava submersa, e naquele momento um raio cruzou as nuvens. O traço branco iluminou uma imagem que se gravou nas retinas de Sasha, tão forte que ainda a via enquanto mãos agarravam desajeitadamente seu tronco e puxavam para baixo. Ela continuou pensando na cena quando perdia os sentidos, sendo arrastada para o fundo da Intrépida Saída em seu caminho para o leito do mar. Era tal como uma pintura, e nela se conseguia ver o céu tempestuoso e uma figura solitária planando acima da janela, tão alta que parecia um boneco. A iluminação não entregava sua identidade, mas mostrava o que estava vestindo.

 Uma capa roxa, decorada com prata, que se agitava rebeldemente no vento. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Aurora - Capítulo 34: Celebridade


AURORA
CAPÍTULO 34: CELEBRIDADE


 - Ele acordou? - Perguntou Stella ao abrir a porta do almoxarifado médico, um pouco ofegante e suada por ter descido as escadas correndo. Dentro do aposento, Kulela se sobressaltou.

 - Céus. Aprendam a bater na porta. - Retrucou o reptiliano, guardando uma caixa de madeira em uma das várias prateleiras nas paredes. Aquela sala de teto baixo parecia mais apinhada e escura do que de costume, muito pela improvisada cortina azul-escura que a cortava quase que pela metade. O homem que havia caído ferido na frente da sede da Aurora havia quase dez horas fora tratado ali, uma enfermaria improvisada. Kulela resmungou um pouco, empurrando um pouco a prateleira para a direita. - Mas sim, ele está consciente. É meio que esperado, visto quem é. - Disse, verificando o conteúdo de algumas outras caixas. - Embora tenha levado consigo metade de nossos medicamentos.

 - Se não atrapalhou o tratamento dos outros, não vejo isso como um problema muito grave. - Respondeu Stella, entrando no aposento e passando ao lado do companheiro. - Se Tom Burstin morresse em nossos portões, eu nem sei o que faria. Provavelmente fecharia a guilda. - Não que isso parecesse muito improvável naqueles tempos, pensou veementemente seu lado negativo, mas rapidamente tentou esquecê-lo. Afinal, tinha uma celebridade na Aurora. O famoso Tom Burstin da mítica Sociedade do Infinito, a maior guilda proveniente de um território humano, estava se recuperando em seu próprio almoxarifado. O mesmo homem que lutara sozinho contra uma horda de esqueletos de prata e saiu sem nenhum ferimento. Aquele que avançara solitariamente por quase duzentos quilômetros além da Fronteira para salvar uma garotinha de orcs sequestradores. A lenda que...

 ...que agora estava seminua na frente dela, pensou Stella assim que abriu a cortina. Do outro lado, um homem de tez bem escura e extremamente definido a encarou desconcertado enquanto que travava seu movimento de botar uma calça. Por um ínfimo instante, os olhos dela foram do rosto quadrado e os cabelos curtos e negros, passando pelos olhos grandes e castanhos e pelo nariz reto, descendo até o tórax marcado por cicatrizes e ao abdômen, conseguindo ver o... pano, por favor, correu ela enquanto puxava novamente a cortina para tapar sua visão. Acabou girando e quase caindo, se segurando no tecido que por um breve segundo ameaçou acompanhá-la. Com o rosto tão vermelho quanto o vestido que usava, se virou assustada para Kulela. - Ele já deveria estar de pé? - Perguntou, quase que sibilando. Do outro lado, o reptiliano deu de ombros.

 - Se eu não consegui até agora manter quatro garotos imberbes na cama durante a droga do tratamento deles, acho que não tenho a menor chance com aquele ali. - Retrucou ele, dando as costas para voltar a arrumar seus medicamentos. Stella pigarreou, tentando se recompor. Pare de agir como uma colegial, ordenou a si mesma. Era uma líder de guilda e uma viúva, não uma adolescente. Assim, ajeitou a postura e voltou a abrir a cortina, se deparando com o paciente desta vez vestido. Graças aos deuses.

 Do outro lado, Tom parecia tão envergonhado quanto Stella havia estado alguns segundos atrás. Ele era bem alto, com quase um metro e noventa, e usava um colete verde por cima de uma camisa marrom clara e uma calça negra. - Oh. Boa... - Começou ele com a voz animada, olhando ao redor em busca de alguma indicação das horas. No entanto, não haviam janelas no almoxarifado. - Noite, acho eu. Me desculpe por agora há pouco, mas eu odeio usar essas camisolas hospitalares. - Comentou, apontando para os trapos embolados ao pé da cama. Ele em seguida sorriu, um gesto que parecia tão natural naquele rosto quanto respirar.

 - Não se preocupe. - Se apressou a dizer Stella, acenando minimamente uma das palmas enquanto fechava os olhos. - Foi apenas um desencontro.

 - Bem, eu agradeceria se você pudesse não mencionar esse tal desencontro para minha mulher, se um dia encontrá-la. - Soltou Tom, rindo nervosamente. - Quer dizer, eu gosto muito dos meus braços onde estão. Assim como meu pescoço. - A líder da Aurora apenas sorriu, imaginando que essa seria a última coisa que iria contar a qualquer alma viva. O homem em seguida estendeu a mão. - Bem, acho que começamos com o pé esquerdo. Meu nome é Tom Burstin, membro da Sociedade do Infinito.

 - Stella Alba, líder da Aurora. - Respondeu a mulher, apertando energeticamente a mão que lhe foi oferecida. Já sabia quem ele era, mas não viu motivo de mencionar isso. Ao ver o traço de confusão que passou pelos olhos do outro, acrescentou. - É uma guilda aqui em Helleon.

 - Ah. Ufa. - Se aliviou Tom, colocando a mão no peito. - Estou em uma guilda, graças aos deuses. Eu realmente não fazia ideia do que havia acontecido. Quando acordei, pensei que havia sido capturado por algum grupo terrorista. Sem ofensas. - Soltou rapidamente, com as palmas estendidas à frente do corpo.

 - Tudo bem. - O acalmou Stella, sorrindo. Havia algo em Tom que a deixava tranquila e contente, embora não soubesse o quê. Muito provavelmente era seu modo alegre e falante, mesmo quando havia acabado de ser hospitalizado em um lugar que não conhecia. De alguma forma, ele transpirava intimidade e confiança mesmo com as poucas palavras que haviam trocado. Assim, as formalidades não pareciam tão importantes, dando-lhe oportunidade para sanar sua curiosidade. - Se não se importa, gostaria de saber o que aconteceu com você. Quero dizer, hoje de manhã estava caído em frente à nossa sede, e não acordou até agora há pouco.

 - Bem, deixe me ver. - Disse ele, girando os olhos para cima enquanto que parecia pensar. - Estava atravessando o Mar de Cellintrum, se não me engano. Perseguindo um cara chamado Ladrão das Nuvens, que havia roubado um banco lá em Luthaneras. Consegui alcançá-lo e derrotá-lo, mas pelo visto o cansaço foi o suficiente para me fazer cair. - Ele falava como se fosse um simples passeio matinal, ignorando o fato de que havia acabado de dizer que cruzara um mar por si mesmo. - Ladrão das Nuvens. - Riu ele, apoiando as costas na parede enquanto cruzava os braços. - Esses caras estão começando a vir com uns nomes estranhos, recentemente. Bandidos tentando se diferenciar dos outros bandidos.

 - Felizmente não temos esse problema em Arasteus. - Comentou Stella, no mesmo momento em que a barriga do paciente roncava audivelmente. Tom corou, segurando a região.

 - Me desculpe, mas vocês tem algo para comer? - Perguntou ele, meio rindo e meio desconcertado. A líder da Aurora sorriu como se ele fosse uma criança.

 - Estamos servindo o jantar. - Disse ela, apontando com o dedão para a porta. - Você pode ir para lá e pegar um prato. Eu tenho que ficar aqui e... verificar umas coisas. - Acrescentou, sabendo que deveria checar as reservas de medicamentos com Kulela. Provavelmente seriam mais notícias ruins, concluiu com desânimo. Tom por sua vez agradeceu e se levantou, passando pelo curandeiro com novos agradecimentos e adentrando o saguão da Aurora.

 No aposento maior, todas as cabeças se viraram para ele assim que passou pela porta. Tom parou, um pouco desconcertado, e passou os olhos pelas pessoas rapidamente em busca de um bom lugar para se sentar. Havia um anão na direita, e atrás dele alguém de cabelos azuis. Um rapaz de tranças e outro de cabelos negros compartilhavam uma mesa, e à esquerda haviam duas gêmeas e uma garota de cabelos longos e castanhos. No entanto, sua atenção se voltou para um grande homem no canto, com o rosto estranhamente familiar.

 - Eu conheço você. - Disse alegremente, caminhando na direção do homem. Dominic engoliu em seco, olhando para os companheiros de forma assustada e constrangida. O outro se sentou à sua frente, se inclinando na mesa circular de madeira com o rosto animado. - Eu me lembro! Você era um membro do exército da Aliança!

 - Ah... sim. - Respondeu Dom desconcertado. Todos no saguão olhavam para os dois, mas Tom não pareceu se importar desta vez, genuinamente alegre.

 - Uma vez quando eu tinha dez anos, meu pai me levou para a Fronteira. - Começou ele, tentando tirar a expressão de confusão do outro homem. - Ele queria que eu fosse um soldado, e decidiu fazer uma viagem comigo para o Passo dos Andrealphus, onde eu tenho certeza de que você estava lá!

 - Ooh. - Se lembrou o membro da Aurora, sorrindo enquanto as memórias se solidificavam. - Sim, eu me lembro daquele lugar. Fora conquistado com muito empenho pelos Andrealphus. Na época era apenas um posto avançado fora da linha da Fronteira, mas um pouco mais tranquilo do que o restante dos outros territórios. - Dom também se inclinou na mesa, colocando os cotovelos na superfície. - Eu acho que sei do que você está falando. Tem uns... trinta e dois anos, se não me engano. Naquela época, eu era só um simples batedor recém-aprovado pela Academia, no topo de seus vinte e dois aniversários.

 - Sim! - Disse alegremente Tom, feliz em ver que o outro recordava da história. - Naquele dia, um esquadrão de harpias atacou de surpresa aquele lugar! Quase alcançaram a mim e ao meu pai, mas você surgiu do nada e nos defendeu de três delas sozinho! - Sua admiração era quase palpável, fazendo com que Dom se sentisse constrangido e feliz por todo aquele reconhecimento.

 - Ah, bem, não foi nada. - Tropeçou ele nas palavras, coçando distraidamente uma das inúmeras tatuagens azuis em seu peito. - Não tanto quanto sua famosa batalha contra o Escorpião nas tumbas de Woondani. A cidade não falava de outra coisa. - Soltou, fazendo com que o outro se reclinasse na cadeira e corasse.

 - As histórias são mais exageradas do que a realidade. - Confessou em tom de desculpas, soltando um sorriso nervoso.

 - E a vez em que você caçou um grupo de orcs que havia conseguindo atravessar a Fronteira? - Disse Koga, surgindo do nada e batendo as mãos na mesa com o rosto explodindo de animação.

 - E as histórias que dizem que você encontrou um centauro? - Perguntou Amanda, repetindo o gesto do companheiro. Dom pareceu desconcertado pelos dois garotos, mas Tom não se importou pela pressão.

 - Bem, a vez do centauro foi uma história engraçada. Se quiserem, eu posso contar. - Acrescentou ele, e naquele exato momento Koga e Amanda se sentaram com velocidade e barulho nas cadeiras, e Julie e Dalan se aproximaram para ouvir. Do outro lado, Wieder se levantava com um sorriso no rosto.

 - Ele parece bem amigável, não? - Perguntou para Sasha, mas quando se virou para trás percebeu que não havia ninguém ali. Ficou curioso por alguns segundos, mas deu de ombros e se encaminhou até Tom Burstin, onde uma conversa animada se estenderia por horas.

 Após isso, quase quarenta minutos depois de todos terem ido dormir, Dalan saía de seu quarto vestido com seu habitual traje negro. Ele olhou para os lados, temeroso de estar sendo observado. O corredor sombrio da Aurora o encarou, mas nenhuma alma viva fez a mesma coisa. Um pouco nervoso, o rapaz saiu e se embrenhou no escuro, tentando se lembrar das direções. Era direita, esquerda, e depois... esquerda de novo? Ou era direita? Ficou na bifurcação com os batimentos cardíacos crescendo, mas uma mão o encostou no ombro antes que pudesse fazer alguma coisa.

 - Estou aqui. - Sibilou Sophie, voltando a ficar visível. Estava mesclada nas trevas, vestida com um casaco escuro por cima do roupão, o que a ajudava a se camuflar. 

 - Ufa. - Riu o rapaz inquieto, acompanhando-a através da escuridão. Ela o levou até um canto do corredor, dando passos silenciosos. Seria a primeira vez que os dois iriam conversar sobre os problemas que afligiam a garota. Ela havia decidido aquele lugar pois apenas Lyra dormia ali perto, e por estar em recuperação seria muito difícil que acordasse para beber um copo d'água ou algo do tipo. Assim, os dois foram até a janela, onde Sophie se sentou no chão.

 - Desculpa por te fazer se esconder dos outros. - Pediu enquanto que o companheiro se agachava ao seu lado. - Mas eu prefiro que Julie não saiba de nossos encontros por enquanto. N-n-não que tenha algo de mais, digo... - Tentou acrescentar, balançando as mãos agitada.

 - É melhor assim. - Se adiantou Dalan, baixinho. Dominic havia dito que era um consenso geral que deixassem Sophie cuidar sozinha de seus problemas, e não achava que o restante da guilda ficaria feliz em vê-lo quebrar esse tal pacto. Assim, era melhor que se encontrassem em segredo. Deslizou uma das pernas pelo chão enquanto dobrava a outra, apoiando as costas na parede em busca de uma posição confortável. Do outro lado, a garota apenas puxou os joelhos contra o peito.

 Um silêncio nervoso ocorreu em seguida, um acontecimento comum quando se tratava daqueles dois. Dalan, incomodado, começou a pensar em como quebrar aquilo o mais rápido possível. Não queria que a outra pensasse que essa fora uma má ideia. - Então... - Grasnou baixinho, imediatamente se arrependendo. - Por onde começamos.

 - Ah, desculpa. - Pediu a garota com a voz quase sumindo, encolhendo um dos ombros enquanto corava e fazia uma careta. - Eu não estou muito acostumada a falar sobre essas coisas. Nem mesmo com Julie. - O companheiro esfregou um dedão no outro, virando o olhar para o corredor escuro à sua frente.

 - Bem, eu posso começar, se quiser. - Soltou, colocando uma mão sobre o joelho dobrado. - Quer dizer, enquanto você não se sentir confortável. O que acha? - Sophie acenou positivamente a cabeça, corando mais um pouco. Dalan suspirou, pensando em alguma história. - Bem, eu posso contar sobre a minha primeira missão. Foi um pouco estranha.

 - Está falando sobre o gato da senhora Cattuveis? - Perguntou a garota, fazendo com que o rapaz refletisse um pouco até se lembrar do que ela estava falando.

 - Ah, não. Estou falando do recrutamento de Wieder, um dia depois dessa missão. - Ele ajeitou sua postura, se aproximando alguns milímetros da companheira. - Veja, eu estava transportando algumas caixas com Dominic quando...

 No meio daquela frase, a porta do quarto de Lyra se abriu. Dalan e Sophie se calaram e ficaram imóveis, ambos extremamente vermelhos e com o coração batendo tão rápido como o de um beija-flor. Não conseguiram ver que era Koga quem saía pela porta, mas ficaram em silêncio muito tempo depois dele virar o corredor.

 Por sua vez o rapaz de tranças caminhava tranquilamente pelos corredores, se dirigindo até seu próprio quarto. Começou a assoviar baixinho, tentando imitar uma música que havia ouvido alguns marinheiros cantarem alguns dias atrás. Teria continuado sem preocupações até que escutou um barulho estranho, vindo da academia. Franziu a testa e mudou seu rumo, se dirigindo até aquele aposento.

 Ao abrir a porta, descobriu que era Sasha quem fazia aqueles sons, iluminada pela luz que vazava pelas janelas abertas. A garota estava fazendo flexões no tapete, mas se imobilizou no momento em que foi avistada. Koga mordeu o lábio superior, se inclinando para olhar o céu lá fora. - Ahn... devem ser meia-noite, Sasha. - Perguntou, se virando para a companheira. - O que está fazendo aqui a essa hora?

 - Tom Burstin já foi dormir? - Perguntou ela com os olhos bem arregalados, ainda em posição de flexão. 

 - Eu... acho que sim. - Respondeu, olhando para o corredor atrás de si. - Pra quê você... ngh. - Não conseguiu dizer mais nada, pois a garota havia se adiantado e o empurrado contra a parede, com o cotovelo em seu pescoço. - Não me mate, não me mate, não me mate, por favor. - Repetiu o rapaz em um tom agudo, fechando os olhos em temor.

 - Koga, preste atenção. - Ordenou ela, passando uma mão no cabelo molhado que caía em sua testa, encharcada de suor. - Preciso que você faça uma coisa para mim. - Ofegou.

 - Você pode me soltar primeiro? - Pediu o rapaz com o indicador estendido. Sasha o obedeceu, dando-lhe as costas. - O que você quer? Diga que não envolve algo perigoso. - A garota passou a mão pelo braço, como se estivesse arrependida de ter iniciado aquela conversa.

 - Perigoso? Não. - Soltou ela finalmente, virando minimamente o pescoço para encará-lo. - Só que eu preciso que você faça exatamente o que eu mandar. - Do outro lado, Koga engolia em seco. Conseguia sentir a profundidade da furada que estava se metendo.

 Assim, no alvorecer do dia seguinte, ele adentrou o terreno da parte de trás da sede, acompanhado por Dalan e Tom Burstin, que estava bem mais animado do que seus sonolentos companheiros. O sol lançava um tom rosado no céu, ainda fraco demais para gerar algum calor e espantar os resquícios frios da noite. 

 Dalan bocejou, colocando a mão direita na frente da boca. Descobrira ontem que era um lentíssimo contador de histórias, e a descrição de sua missão em Vertreit havia durado no mínimo duas horas. Tinha a sensação de que Koga bateu em sua porta apenas dez minutos depois dele ter se deitado. Distraído, nem percebeu a tábua de madeira jogada no chão até que tropeçasse nela. Conseguiu permanecer em pé, olhando ao redor para ver se haveriam mais obstáculos. Eram resquícios das casas para os Recons, projeto abandonado porque o material fora transferido para Wieder restaurar a sede depois da luta contra o Culto Púrpura.

 - Eu não sabia que vocês possuíam Recons de estimação! - Disse animadamente Tom, cortando os pensamentos do rapaz. O homem colocou a mão por cima dos olhos, esticando o pescoço para frente para tentar enxergar melhor. - Não são animais fáceis de domesticar! Como os pegaram?

 - É... melhor não perguntar. - Se evadiu o rapaz, dando um sorriso nervoso. Mal poderia esperar para ter que contar para Sophie sobre aquela missão vergonhosa, concluiu sarcasticamente. Os três continuaram andando pela relva molhada, até que Koga se adiantou.

 - Olha só, é Sasha! - Alertou ele, apontando para frente. Dalan acompanhou seu dedo, conseguindo ver a garota fazendo um trote pelo jardim interno. Bem, ele tinha que parabenizá-la pela dedicação, concluiu consigo mesmo. O sol mal havia aparecido no céu. - Puxa vida, como ela é incrível! - Continuou Koga, colocando a mão animadamente nos quadris. - Nunca desiste, nunca descansa, está sempre preparada para treinar e treinar! Certamente, é um exemplo de pessoa!

 Dalan semi-cerrou os olhos para o companheiro, em uma expressão da mais pura confusão. Sasha, que se aproximava, imediatamente ficou rubra. Olhou para o rapaz de tranças em fúria velada, transpirando um desejo homicida que não foi captado. Tom, por sua vez, também parecia alheio à tudo aquilo.

 - Realmente, é impressionante! - Disse ele, e a garota o encarou com os olhos arregalados e o rosto ainda mais vermelho. - Não são nem seis da manhã!

 - Ah, bem... obrigada. - Respondeu timidamente Sasha, passando as mãos por uma das maria-chiquinhas. Dalan colocou as mãos nos bolsos e entortou um canto da boca, continuando com sua face confusa. Que tipo de dimensão paralela havia invadido durante seu sono?

 - Bem, eu não quero atrapalhá-la! - Avisou Tom, levantando as mãos enquanto que apoiava o queixo no peito. - Continue com seu bom trabalho. - A garota acenou positivamente com a cabeça e passou por ele, ficando entre um transtornado Dalan e um Koga que parecia muito cheio de si. Este a encarou com um sorriso confiante no rosto, até que ela puxou sua trança para perto.

 - Você escapou por pouco da morte. - Ameaçou por entre os dentes, soltando-o. O rapaz guinchou baixinho com medo, e Dalan suspirou aliviado. As coisas pareciam normais, agora. Os três homens continuaram até onde os Recons estavam deitados, presos pelo pescoço a uma estaca no chão e com um balde de carne ao lado.

 - Meu filho iria adorar ver isso. - Confessou Tom, cruzando os braços enquanto observava os animais ainda sonolentos. - Ele ama seres fantásticos. De fato, possui conhecimento para se tornar um veterinário, se quisesse. - Se virou para Koga, que continuava atônito. - Vocês tem um veterinário para cuidar de seus animais?

 - Ah, não exatamente. - Respondeu ele, saindo de seu estupor. - Adotamos uma solução mais caseira. Dalan e Amanda os alimentam, já que são os únicos que os bichos não tentam morder. Quer dizer, em circunstâncias normais. - Acrescentou, encolhendo os ombros.

 - Como assim circunstâncias normais? - Questionou o homem, e Dalan se adiantou.

 - Não se preocupe com isso. - Teve pressa em dizer, dando um olhar reprovador para o companheiro. A senhora Stella havia pedido que não contasse a Tom sobre os problemas que a guilda havia passado recentemente. - Nós estávamos procurando um veterinário, mas decidimos adiar um pouco.

 - Até termos certeza de que a guilda vai estar em pé mês que vem. - Comentou distraidamente Koga, o que chamou a atenção do convidado.

 - O que houve? - Perguntou ele, se virando para encarar o rapaz. Dalan também fez isso, lançando um olhar fulminante ao companheiro. Qual é o seu problema, perguntaram seus lábios. Eu estou com muito sono, se desculparam os do outro. Tom, percebendo que havia algo de estranho ali, se virou para os animais, dando um passo à frente. - Eles estão cobertos de cicatrizes! Aconteceu alguma coisa com eles antes de virem? - Questionou novamente, e Dalan sentiu o suor descer pelo pescoço, puxando um pouco do colarinho para deixá-lo passar. Os dois ficaram em silêncio, e Tom passou os olhos de um para o outro. - O que aconteceu com a guilda de vocês? - Dalan e Koga engoliram em seco e se entreolharam em nervosismo. O ato de saber mentir era um dom, e muitos na Aurora partilhavam dessa habilidade. Infelizmente, essa lista não incluía aqueles dois.

 Enquanto isso, Stella estava adormecida em seu escritório. Estava com o rosto colado na superfície de sua mesa, cercada pelas planilhas financeiras da guilda. Seu sono era tão profundo que dormiria até o meio-dia, se não fossem as repentinas batidas na porta. Ela abriu os olhos, e o som se repetiu.

  - U-um momento! - Ela levantou rapidamente a cabeça, passando as mãos no rosto para espantar os últimos resquícios da letargia. Olhou para baixo e percebeu os papéis espalhados por toda a expansão da mesa, recolhendo-os agitada de qualquer jeito. - Espera um pouquinho! - Pediu novamente, jogando as planilhas em uma gaveta qualquer enquanto que passava uma mão pelos fios entrelaçados. Pigarreou e se ajeitou na cadeira, procurado fazer parecer que não estava sentada ali há mais de doze horas. - Pode entrar!

 Tom adentrou o quarto, mergulhado em uma expressão diferente da que apresentou no dia anterior. Ele tinha o rosto indeciso, parecendo um pouco nervoso. As mãos estavam enfiadas nos bolsos da calça, e caminhava agitado. Se sentou em frente à Stella, que o encarou curiosa.

 - Ah... bom dia. - Disse ele, coçando o pescoço e virando o rosto. A mulher o acompanhou, mas o homem ficou em silêncio por mais alguns segundos. - É... eu gostaria de agradecer vocês. Por terem me salvado. Acho que não fiz isso direito. - A líder da Aurora se surpreendeu um pouco com aquilo, mas acabou sorrindo.

 - Não há de quê. Era uma forma de retribuir por tudo o que você já fez. - Comentou, e Tom arregalou os olhos para ela.

 - Sim! Retribuir! É isso mesmo! - Se agitou ele, agarrando os braços da cadeira. - É o que eu faço! Tentar retribuir a bondade das pessoas! E é isso que vim fazer! - Ele se adiantou, e Stella inconscientemente apoiou as costas no encosto da cadeira. - O irmão da minha esposa possui uma estalagem em Konan! - Começou a dizer, tão rápido que certas palavras se atropelavam. - Eu gostaria que vocês passassem duas semanas lá como forma de agradecimento por terem me tratado!

 A mulher ficou alguns segundos tentando decifrar a mensagem, e começou a agitar as mãos assim que a compreendeu - N-não precisa! - Se apressou em dizer. - Não fizemos isso esperando nenhuma recompensa!

 - Não se preocupe com isso. - A acalmou Tom, abrindo um sorriso aliviado. - Além do mais, eu me sentiria melhor se vocês fossem. Acredite. - Stella começou a pensar, se lembrando das planilhas que se amontoavam em sua gaveta. Talvez uns dias de folga não fossem tão ruins.

 - Bem, eu acho que podemos aceitar esse pedido então. - Respondeu ela, um pouco receosa porém de certa forma contente. - Embora não tenhamos te salvado por alguma recompensa.

 - Eu não pensei nisso, acredite. - Disse Tom, se levantando da cadeira. - Bem, vou aproveitar e voltar para casa, agora. Minha esposa não tem notícias minhas faz um tempo, e ainda preciso comunicar meu irmão sobre a estadia de vocês.

 Stella se levantou, contornando a mesa - Vou te acompanhar até a saída. Aceita pelo menos um café antes de ir?

 - Eu posso gastar uns minutinhos a mais. - Comentou ele, sorrindo. Revirou os olhos, parecendo se lembrar de algo importante. - Ah, quase ia me esquecendo. Vocês estão aceitando novos membros para a guilda? - Perguntou enquanto que a mulher abria a porta.

 - Sempre estivemos. Por quê a pergunta? - Disse, parando ao lado da saída. Tom atravessou o portal, procurando desviar o olhar.

 - Ah, nada. Apenas... espere me encontrar em Konan. - Se evadiu. Stella encarou com curiosidade suas costas por algum tempo, mas esqueceu isso com facilidade, fechando a porta atrás de si.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Aurora: Capítulo 33 - Aos quatro cantos


AURORA
CAPÍTULO 33: AOS QUATRO CANTOS

 Kulela estava caminhando de volta à sede da Aurora, atravessando ruas desoladas e vazias com duas bolsas de couro abarrotadas nas mãos. Uma delas estava transbordando de faixas de linho, mas o reptiliano não parecia se importar com as poucas que caíam a cada sacudida. Ele continuou seguindo distraído, com os olhos semi-abertos e a crina desembaraçada. Haviam sido dias difíceis. Estava acostumado a cuidar de um ou outro reptiliano por mês, um total contraste aos quatro pacientes que havia ganho na guilda. Trabalhoso, resmungou consigo mesmo.

 Passou pela praça em frente à sede, recém-reparada por Wieder, observando o chafariz em pedaços no centro. Ele estava despedaçado, com destroços se espalhando por vários metros. A única providência que havia sido tomada fora desligar a água, tornando a fonte ainda mais desolada do que antes. Um belo reflexo, pensou Kulela enquanto que virava o rosto. Continuou andando até que uma voz o chamou por trás.

 - SENHOR REPTILIANO! SENHOR REPTILIANO! - Ele se virou, vendo um garoto gordo correndo em sua direção. Vestia uma camisa vermelha e um suspensório preto, junto com um pequeno chapéu em sua redonda cabeça. Seus cabelos eram castanhos, e o nariz parecia uma pequena batata. Ele carregava um caderninho na mão esquerda enquanto trazia uma pena na direita, que seria abastecida pelos dois potes de tinta que se penduravam no suspensório. - TENHO QUE FALAR COM O SENHOR!

 - Não sou seu amigo para me chamar pelo nome de minha raça, garoto. - Resmungou o curandeiro, dando-lhe as costas. - Nem estamos em uma ocasião formal. Aprenda a se dirigir às pessoas.

 - Desculpa, desculpa. - Ofegou ele, conseguindo alcançar Kulela. Levou as mãos aos joelhos enquanto buscava retomar o ar, mas o reptiliano continuou adiante. - Meu nome é Galvin Prado. Sou da Gazeta de Helleon e queria que... ei! - Exclamou ao ver que já estava bem longe de seu alvo. Desatou a correr novamente, se pondo entre o membro da Aurora e sua sede.

 - Garoto, se o que quer é um conselho, eu não sou nutricionista. Não posso te ajudar. - Disse o curandeiro cansado, mas Galvin não saiu do lugar.

 - É rápido. Rápido. Quinze segundos. - Ele abriu um pote de tinta em seus suspensório, manchando toda a sua camisa na agitação. Kulela levou a cabeça para trás, pensando se realmente deveria cronometrar o tempo que havia disponibilizado.

 - Você... você é da Aurora, não? - Perguntou o garoto enquanto que corria por suas anotações, manchando agora seu caderninho.

 - Sabe enxergar? - Perguntou o outro, apontando para sua novíssima marca de guilda no braço com um dos dedos. Galvin não levantou a cabeça, parecendo ter finalmente achado a página que procurava.

 - Ah, aqui está. Senhor... - Ele olhou para Kulela esperando que dissesse seu nome, mas o curandeiro se negou com um olhar entediado. - Certo. Senhor, o povo tem uma pergunta muito importante. De fato, eles anseiam por essa reposta.

 - Vá direto ao ponto. - Reclamou o membro da Aurora, suspirando pesadamente.

 - Certo. Certo. - Se agitou o garoto, apoiando a pena no papel. - Senhor, você acha que a Aurora está realmente tão desesperada assim para ter que contratar um reptiliano? - Perguntou animado, levantando a cabeça para enxergar os olhos semi-cerrados do curandeiro.

 Alguns minutos depois, Kulela explodia pelos corredores da Aurora. - Eu juro, se eu tiver que ouvir mais um desses malditos racistas me fazendo perguntas imbecis, vamos ter que adicionar um outro assassinato à lista de crimes dessa guilda. - Ele pisava no chão com força, se dirigindo ao quarto de Lyra. - Acredite, eu farei questão de mostrar as provas desse homicídio. A cabeça daquele moleque é tão redonda que posso usá-la como... - Naquele momento o reptiliano abriu a porta, se calando ao encontrar a cena lá dentro. - O que está acontecendo aqui? - Perguntou com os olhos arregalados.

 Lyra, do outro lado, corou furiosamente. Ela estava de pé ao lado de sua janela, limpando o vidro com um pano úmido. Vestia uma simples e longa camisola branca, por onde seus revoltos cabelos roxos se espalhavam. - Eu... - Começou ela, apoiando o pano no batente.

 - Para sua cama! Agora! - Ordenou, apontando para o móvel. A garota tentou correr para cumprir a ordem, mas algo fisgou em seu abdômen e ela parou, segurando a região ferida com uma careta. Kulela soltou o ar de forma irritada, ajudando-a a se deitar. - Qual o problema de entender que não é uma Yulliana? Teve sorte de não ter morrido, e mais sorte ainda de te terem dado um mês para se recuperar. Portanto, não abuse uma terceira vez.

 - Sinto muito. - Se desculpou ela, deitando em sua cama. - Eu ia ficar repousando como você me disse, mas vi que as janelas estavam sujas e pensei que...

 - Existem outras pessoas para fazer isso. - A interrompeu o curandeiro, puxando um pote branco de sua bolsa e esfregando seu conteúdo nas mãos. - Pessoas que não estão com um rombo no corpo. Me parece inteligente deixá-las fazer isso.

 - Eu não quero atrapalhar. - Confessou Lyra, com uma expressão de culpa. - Eles já estão com muita coisa na cabeça nos últimos dias.

 - Acredite, se continuar assim eles terão que se adicionar um corpo à lista de preocupações. - Avisou Kulela, levantando a camisola da companheira para revelar os enormes curativos em seu abdômen. Ele começou a desenrolar o linho gasto que cobria sua cintura, revelando lentamente a gigante ferida no lado do corpo. A garota se silenciou, virando o rosto enquanto os tratamentos se iniciavam.

 - Como estão os outros? Já descobriram como vão sair dessa? - Perguntou ela com o rosto sofrido. Embora tentassem privá-la dos problemas que a Aurora passava, era impossível quando se tinha uma melhor amiga tão falante quanto Amanda ou um confidente distraído como Koga. Lyra sabia que o dinheiro havia acabado, e que ninguém queria os contratar. Tal fato era excruciante, ainda mais sabendo que não poderia fazer nada enquanto não se recuperasse.

 Kulela não respondeu de imediato, preferindo passar uma substância verde escura na ferida da garota. Ela fechou os olhos e cerrou a boca com a dor, deixando que o reptiliano se reservasse com seus pensamentos. A situação para ele soava insustentável. Se a guilda não recebesse pagamentos, não havia nenhum outro modo de receber dinheiro. Já não tinham aparentemente muitas reservas, e os altos gastos estavam minando o pouco que restava. No entanto, sabia que afirmar suas dúvidas não contribuiria com nada no psicológico de Lyra.

 - Eu espero que sim. Apostei em vocês. - Resmungou, se esticando para puxar as novas bandagens na bolsa ao seu lado. A marca da Aurora se destacou em seu braço verde, um retrato de sua aposta. Espero não ter feito a escolha errada, pensou ele.

 No segundo andar do prédio, uma reunião ocorria na sala de Stella com o objetivo indireto de provar que Kulela não estava errado. O aposento estava lotado, exigindo muito mais do que as três singelas cadeiras que eram proporcionadas. Amanda e Wieder estavam sentados em frente à mesa da líder, enquanto que Koga, Sasha e Marcus aguardavam atrás deles.

 Stella, em seu próprio assento, esfregava os dedos na testa. Haviam sido duras semanas para ela, que ainda não havia conseguido recarregar as energias. Olheiras se acumulavam embaixo de seus olhos, marcando seu rosto pálido e ligeiramente doente. Seu cabelo azul caía desembaraçado pelos ombros, com uma mecha atravessando sua testa. Ela retirou os fios para o lado com a mão, aproveitando o movimento para esfregá-la na testa. - Por favor, digam que vocês têm notícias boas. - Pediu ela com um leve toque de desespero e cansaço em sua voz.

 - Bem... - Começou Amanda, se virando para encarar Sasha. - Nós percorremos a cidade de cabo a rabo. Não encontramos ninguém que queira nos contratar novamente. Nem mesmo clientes antigos.

 - E se não encontramos em Helleon, é impossível esperar algo do resto de Arasteus. - Concluiu a filha da líder, com os braços cruzados. - É mais provável que a moda de contratar milicianos e mercenários se espalhe, agora. São mais baratos, fazem missões que não temos direito, e pela primeira vez tem mais respeito do que nós.

 - E se depender da mídia, é o que vai acontecer. - Disse Wieder, se remexendo inconfortável em sua cadeira. - Querendo ou não, viramos o inimigo público número um para eles. Visandre era um representante da classe alta, que agora se vê realmente ameaçada pelo adversário dele, um homem de origens populares. E acho que eu não preciso acrescentar que os ricos controlam os jornais. - Completou, se virando para Stella.

 A mulher apoiou o queixo nas mãos, considerando as alternativas. - E esse tal candidato novo? Você acha que eles nos apoiaria?

 - Só se quiser perder o apoio do povo. - Respondeu Wieder, encolhendo um dos ombros. - O estrago já está feito com eles. Tiveram semanas de ataques contra nós nos jornais.

  - Acho que a única solução é fazermos missões fora da região. - Sugeriu Amanda, se virando para os outros garotos. - Como está o transporte para fora de Arasteus?

  - É possível, mas temos duas notícias ruins e uma boa. - Disse Marcus, colado à parede no fundo. - A primeira ruim é que os marinheiros locais não querem nos oferecer mais transporte. Especialmente de graça. Quanto à notícia boa, descobrimos que os de fora não se importam.

 - Só que a segunda ruim é que eles exigem pagamento. - Se adiantou Koga, antes que um sentimento de esperança pudesse se propagar no escritório.

 - Não havia como ter dado a notícia boa por último? - Perguntou Wieder, se inclinando todo na cadeira para que pudesse enxergar os rapazes. - Normalmente isso deixa um gostinho melhor no final.

 Koga encolheu os ombros, torcendo o canto da boca. - Ei, eu tentei fazer isso. Só que não tinha como deixar essa pro final sem estragar toda a lógica dos argumentos. - Sasha naquele momento se adiantou, batendo com as duas mãos na mesa e encarando a líder nos olhos.

 - Nós temos que fazer essas missões, mãe. É nossa única esperança. - Pressionou, mantendo o olhar obstinado. Stella por sua vez voltou a esfregar as mãos nos olhos, levando-as até as têmporas.

 - Não há dinheiro para isso. - Alertou lentamente, como se estivesse falando com uma criança. - Eu sei o quanto eles devem nos cobrar por um transporte oficial para fora de Arasteus, seja por mar ou por terra. Só iremos conseguir pagar caso juntemos todas as nossas reservas, mas e depois? Como vamos pagar a missão? Como vamos nos alimentar, pagar o aluguel, sobreviver enquanto isso? - Ela encarou a filha nos olhos, começando a se agitar. - Não há como fazermos um empréstimo. Fui a todos os bancos da cidade, e não temos garantia nenhuma para que nos permitam algo assim.

 - Eu juro que volto o mais rápido possível. - Pediu Sasha, se inclinando na mesa. - É a nossa última chance!

 - Mesmo que você faça a missão em tempo recorde e volte em apenas um dia... - Começou Stella, se afundando na cadeira. - O investimento não vai valer a pena. Vamos gastar mais te mandando para lá do que você pode trazer de volta. - Ela apoiou o queixo nos dedos, sentindo que a realidade se tornava visível para cada um dos membros da Aurora ali. Os olhos de Amanda começaram a se marejar, enquanto que Koga apoiava a testa no punho enquanto cerrava os dentes. Marcus se tornava mais sombrio em seu canto, ao mesmo tempo em que Wieder coçava a barba, procurando uma alternativa. Os olhos de Sasha se arregalaram enquanto ela respirava cada vez mais rápido, procurando manter a compostura. - O dinheiro acabou. - Conseguiu completar a líder da guilda com a voz embargada. Um silêncio desesperador se seguiu, até que a porta se abriu com foça.

 Kulela adentrou a sala, esquadrinhando todos os cantos antes de falar. - Onde estão meus pacientes? - Resmungou por entre os dentes rangidos.

 Em outro canto de Helleon, Sophie estava sentada em um pequeno barranco relvado, com os dois pés balançando para fora. O mar de Cellintrum se estendia diante dela, soprando um vento que agitava a grama e os cabelos da garota, mas não o suficiente para levar sua boina branca. A membra da Aurora possuía o olhar distante, se perdendo por entre as ondas rebeldes que complementavam o ambiente desabitado. Sequer formulava um pensamento, preferindo deixar a mente vagar livre, se perdendo enquanto mergulhava em um oceano de melancolia tão grande quanto o corpo d'água à sua frente. O mar se quebrava na praia, revolvendo e batendo, batendo, e batendo...

 - Eu... não me lembro de te ter visto por aqui. - Disse uma voz, sobressaltando a garota. Ela se virou para o lado e viu Dalan se sentando a dois metros dela, olhando em sua direção. O vento sacudia seus cabelos, batendo no rosto pálido.

 - Dalan? O que... você... - Se desconcertou Sophie, corando e arregalando os olhos. - O que veio fazer aqui?

 - Bem, o motivo principal foi fugir de Kulela. - Admitiu o rapaz, encolhendo um dos ombros enquanto torcia levemente a boca. Se ajeitou na ponta do barranco, também deixando os pés balançarem no pequeno precipício. - Só que se está perguntando porque exatamente aqui, é outra história... - Completou ele, se virando para o oceano.

 Um silêncio se seguiu, sendo pontuado apenas pela quebrada das ondas na praia. A garota se incomodou um pouco, procurando as palavras certas para que a conversa continuasse. Antes que conseguisse, no entanto, Dalan voltou a falar.

 - Você... - Tentou dizer, estalando a língua. De todas as pessoas da Aurora, era Sophie quem mais o fazia ter vontade de voltar a agir de forma contida. Se lembrou naquele momento de Amanda e imaginou a garota lhe dando um esporro por isso. Talvez fosse melhor controlar essa vontade. Por mais que o incomodasse, ela parecia saber mais sobre esse tipo de assunto do que jamais conseguiria. Estendeu o dedo para frente, direcionando o olhar da companheira. - Minha ilha ficava para lá. - Admitiu em voz alta o suficiente para ser ouvido através do vento. Sentiu algo aquecer levemente os olhos, mas procurou ignorá-lo. - Quando eu cheguei em Helleon, descobri por acidente esse lugar. Sei que dava para ver Gamora aqui, e às vezes dou uma escapada da guilda para vir aqui e... sei lá, torcer para que caia um raio e ela volte ao lugar que sempre esteve.

 Sua voz começou a ficar embargada. Não havia falado sobre isso com outra pessoa desde que entrou na Aurora. Do outro lado, Sophie ficou observando aquele determinado pedaço do mar por alguns segundos enquanto pensava. - Como você está passando? - Conseguiu dizer de forma truncada, se virando para ele com uma expressão retorcida de compaixão. - Digo, sobre sua ilha.

 Dalan refletiu um pouco, procurando as palavras certas para explicar o que sentia e tentando controlar a voz. Tossiu. - De vez em quando eu prefiro não pensar muito nisso. Parece algo muito grande, descobrir o que aconteceu. - Disse, batendo levemente uma das mãos na grama e engolindo em seco. Era mais difícil falar sobre aquilo do que pensava, mas conforme seguia em frente, mais naturais as palavras soavam. - A senhora Stella disse que, assim que eu entrei na guilda, ela procurou falar com o tal tenente Wolff sobre isso. Ninguém toca no assunto, parece uma conspiração. Por enquanto eu não consigo fazer nada, e tentei abstrair disso para não pirar. - Ele abaixou o queixo, sentindo a tristeza abraçar seu coração. - Às vezes eu acho que estou fazendo a coisa errada. Parece muito egoísmo esquecer de todos eles para tentar me sentir melhor.

 - Não, não... - Se adiantou Sophie, com uma expressão condescendente. Ela levou os joelhos ao peito, abraçando as canelas enquanto voltava a fitar o mar. - Eu... sei como é. Se sentir assim.

 - Sobre seu pai, não foi? - Perguntou o rapaz. A garota acenou positivamente com a cabeça, mas o silêncio voltou a se manifestar. Ótimo, pensou Dalan consigo mesmo. Nada como ser extremamente direto, se condenou sarcasticamente. No entanto, Sophie voltou a falar.

 - Quando meu pai sumiu... - Começou ela, com os olhos se marejando. - Eu achei que quando crescesse, seria forte o suficiente para procurar por ele. Que nem Julie. - Abraçou com mais força as pernas, apoiando o queixo entre os joelhos. - Achava que eu não continuaria a ser a menina chorona e medrosa que eu era. Que me tornaria uma super-heroína.

 - Sophie... - Tentou dizer Dalan, até ele percebendo que a companheira não parecia bem. Ela se virou em sua direção, conseguindo trazer consigo um sorriso fraco.

 - Eu... realmente queria agradecer pela chance que você me deu na Caverna dos Reclusos, Dalan. De coração. - Confessou ela com o rosto vermelho, fechando os olhos e tentando abrir o sorriso. - Eu não tenho essas chances todo dia. Não me lembro de alguém ter confiado em mim a tal ponto. - A garota desviou o rosto, voltando a afundar o queixo. - Só que isso provou o que todos diziam. Eu não estou pronta para participar da Aurora. Não nesse nível.

 - Como assim? - Perguntou o rapaz enquanto que a outra se levantava.

 - Eu não consegui fazer nada contra Desaad. Você quase morreu enquanto eu apenas olhava. E Sasha nem conseguiu prendê-lo porque fiz a besteira de ser envenenada. - Ela espanou os pedaços de grama da roupa, fungando um pouco. - Julie estava certa. Não nasci para isso.

 - Espera... - Tentou dizer Dalan, mas a garota o interrompeu.

 - Me desculpa por ter te incomodado com isso. - Soltou ela com a voz abafada, tentando manifestar um sorriso que já não era mais possível. Passou a mão no rosto, limpando os princípios de lágrimas. - Eu normalmente tento não encher vocês com meus problemas, só que... - A garota engoliu em seco, os olhos já brilhando. - Eu não me sinto bem. - Soltou com a voz embargada.

 Começou a se afastar, deixando seu companheiro para trás. Dalan se levantou para segui-la, mas estancou. Uma lembrança aflorou em sua mente, onde Dom conversava com ele nos saguões da Aurora. Que era um consenso da guilda deixar com que Sophie conseguisse resolver seus problemas sozinha. Deixe ela ir, disse a voz do homem. Ela precisa disso. Precisava ter a força interior para depender apenas de si mesma.

 O rapaz fechou os punhos com força enquanto que o coração batia forte, sentindo uma estranha familiaridade com aquela situação. As costas solitárias de Sophie se afastando lhe lembravam um certo alguém, mas não conseguia se lembrar de ter visto uma cena parecida com aquela. Ficou em conflito, tentando alcançá-la e ao mesmo tempo permanecer onde estava, enquanto que seu cérebro tentava lhe dizer algo que não conseguia traduzir. Rangeu os dentes, com o rosto marcado pela dúvida que se agitava em seu coração. A companheira agora parecia sumir de vista, e algo martelava firmemente a cabeça do garoto.

 Naquele momento, se fez a luz. Dalan correu na direção da garota, conseguindo finalmente entender o que aquela situação o lembrava. Era a recordação de um garotinho andando sozinho na mata, sem ninguém para chamar de amigo e marcado permanentemente pela solidão. Aquela criança era ele, e percebeu naquela hora que não poderia jamais deixar Sophie se sentir daquele jeito. O rapaz a alcançou e agarrou a mão dela, fazendo com que a companheira se virasse para encará-lo.

 - Dalan... - Tentou dizer ela, com o rosto corando imensamente e as lágrimas brilhando no sol de meio-dia.

 - Sophie, preste atenção. - Começou o garoto, ainda segurando seus dedos. - Você é boa. - Fechou os olhos com força, percebendo a besteira que havia falado. - Digo, não nesse sentido. Quer dizer, talvez sim, mas... argh! - Grunhiu fechando as pálpebras, tentando reformular rapidamente seus pensamentos. - Escute. - Recomeçou, encarando-a no fundo dos olhos. - Você não tem que se sentir assim.

 - Mas... - Dalan no entanto a interrompeu, percebendo que precisava dizer rápido o que queria antes que a fina corda que unia suas ideias se partisse.

 - Eu sei que você está passando por problemas. - Se atropelou o rapaz. - E eu sei que passar por isso sozinho é uma droga. Eu realmente sei. Isso te corrompe, fazendo achar que está tudo de errado com o que você é, como se não houvesse nada aproveitável em si mesmo. - Sophie ficou em silêncio, apenas o encarando com os olhos ainda marejados. Inconscientemente, apertou a mão de Dalan, que ofegava em continuar. - Eu passei por isso. Nunca tive amigos de verdade, e essa coisa me marcou por anos e anos. Mas olhe, a Aurora me deu a chance de rever esses meus medos. Me deu companheiros que se importam com o que eu sou, e vão além do caminho deles para me ajudar. - Pensou naquele momento em Wieder e Amanda, e toda a ajuda que lhe deram. - E eu sou imensamente grato por isso. - Confessou, balançando energeticamente a cabeça. - E eu quero fazer isso com você. Quero ser essa pessoa para você. Quero que saiba que pode contar comigo. - Conseguiu soltar, como se estivesse arrancando um monstro de seu coração. - Eu não quero que passe pelas mesmas coisas que eu passei. Não quero que ninguém passe.

 Sophie por sua vez se manteve quieta, parecendo não conseguir acreditar no que estava ouvindo. Acabou derramando um filete de lágrimas, contorcendo as bochechas para prendê-las. - Você tem certeza? - Perguntou com a voz embolada. O rapaz se lembrou mais uma vez do que Dominic havia lhe dito, mas desta vez o ignorou facilmente.

 - Sim. - Os dois ficaram em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, com o interior de Sophie se aquecendo e Dalan tentando ao máximo não estragar aquele momento. Poderiam ficar ali para sempre, mas uma figura esverdeada se destacou atrás da garota. - Oh céus. - Soltou seu companheiro, vendo que Kulela estava andando em sua direção. E não parecia nada feliz. 

 De volta à Aurora, Julie estava sentada em uma das mesas ainda remanescentes do saguão, apoiando a face no braço deitado enquanto que passava o dedo distraidamente pela superfície. Teria ficado ali durante horas, até que Dominic se sentou à sua frente.

 - Você sabe que pode comer, não é? - Perguntou o homem com sua característica voz altiva. - Quer dizer, não me lembro de ter visto você almoçado nesses dias. Ou feito qualquer outra refeição. - A garota esperou alguns segundos antes de se ajeitar, passando a mão pelos curtos cabelos.

 - Como você consegue? - Perguntou ela de súbito, ajeitando sua postura na cadeira. Dominic revirou os olhos, tentando entender o que aquela frase significava.

 - Ser incrivelmente musculoso mesmo sem malhar constantemente? - Perguntou, encolhendo levemente os ombros. - Bem, é uma história engraçada. Uma vez eu...

 - Não. - Interrompeu Julie, sem ânimo para piadas. - Eu quero dizer como você consegue deixar que nossos companheiros se envolvam em situações de vida ou morte. - Ela contorceu o rosto, abrindo os braços. - Quer dizer, você se preocupa com os membros da guilda tanto quanto eu me preocupo. Só que caminha numa boa com eles enquanto que se dirigem aos portões do inferno. Como. Você. Consegue? - Repetiu ela, apoiando os cotovelos na mesa e segurando os cabelos. Aquilo já estava a deixando insana.

 Dominic suspirou, cruzando os braços. - Sabe, Julie, eu vivi minha cota de anos.

 - Eu sei, você sempre fala isso. - Interrompeu ela, mas o companheiro pareceu não se importar.

 - E na minha cota de anos, vi quase todos os meus amigos morrerem. - Isso foi o suficiente para que a garota se calasse, e Dom se inclinou na mesa. - Passei trinta anos na Fronteira. Não é um lugar agradável, mas lá aprendi uma das coisas mais importantes da minha vida. Se alguém quer arriscar a vida em prol de um bem maior, você deve respeitar isso.

 Julie começou a corar, mordendo o lábio enquanto pensava. - Eu ainda não entendo. - Confessou em voz baixa, encarando o amigo.

 - Não é algo tão simples. - Riu singelamente o homem, se ajeitando na cadeira. - Só que você pode encarar esse assunto por outra perspectiva. Se quer tanto protegê-los, faça por onde. Não irá conseguir domá-los. No máximo um ou dois, mas te garanto que não serão todos.

 Com aquelas palavras, a garota se pôs novamente em silêncio meditativo enquanto mordiscava o lábio inferior. Fazer por onde? O que Dom estava tentando dizer? Precisava entender aquilo rapidamente, pois em partes concordava com Sasha, por mais que isso a matasse por dentro. Se não conseguisse aceitar que existiriam missões potencialmente mortais, não adiantaria continuar na Aurora.

 Naquele momento ela estendeu o queixo, observando o saguão acabado ao seu redor, e seu ânimo voltou a murchar. De quê adiantaria fazer sua decisão se não existisse mais uma guilda após isso? A Aurora estava com seus dias contados. Era uma questão de tempo até que o dinheiro acabasse, e depois seriam forçados a se debandar, deixando para trás seus sonhos e suas amizades. No meio de todo aquele desespero, ela riu. Os deuses eram seres, no mínimo, engraçados. Havia conseguido o que sempre quis. Ninguém mas ali iria correr perigo em uma missão, visto que elas não iriam mais ocorrer. Era o fim.

 Acontece que os deuses eram mesmo seres engraçados. Pois no exato momento em que Julie terminava seus pensamentos, um estrondo varreu os céus. Chamou a atenção de todos ali, desde os que se enfurnavam em uma reunião infrutífera no segundo andar, passando pelos companheiros no térreo até Dalan, Sophie e Helder, que se aproximavam da sede. Pois as nuvens se iluminaram com um brilho vermelho e uma estrela desceu dos céus, caindo na praça em frente à Aurora. Um novo estrondo se seguiu, e uma cratera nasceu onde os resquícios da fonte se aglomeravam.

 E no meio dela, jazia um homem pegando fogo.