AURORA
CAPÍTULO 10: UM HUMANO E UM ANÃO ENTRAM NUM BAR
- Serão cinquenta tens. - Disse uma voz feminina, cortando o ar e fazendo Dalan acordar de seu estupor. Ele estava em uma loja de roupas, ligeiramente empoeirada e um tanto quanto vazia. O garoto levantou a cabeça, como se tivesse acabado de sair de um sonho, e encarou a vendedora loira à sua frente. Ela vestia um avental verde e prendia o cabelo em um rabo de cavalo caprichado. - Cinquenta tens, senhor. - Repetiu ela, inclinando a cabeça.
O rapaz revirou os bolsos, procurando o resto de seu pagamento. Puxou uma nota de cinquenta, a única que restava, e a entregou rabugento à mulher. Ela agradeceu e em troca lhe deu uma sacola, que continha um conjunto de roupas baratas, o suficiente para que ele conseguisse aguentar mais uma semana. O garoto agradeceu e saiu da loja, fazendo com que o sino da porta soasse.
Lá fora, a multidão da manhã começava a se dispersar. Transeuntes conversavam animados, segurando sacos plásticos repletos de alimentos de cheiro forte. Barracas começavam a ser desmontadas, enquanto seus donos contabilizavam os lucros do dia. Uma criança corria pelas pedras negras da rua, até que tropeçou e caiu. Seu choro se elevava acima de todos os outros sons, enquanto seus pais se apressavam para socorrê-la. No entanto, nada disso chamava a atenção de Dalan, que se sentou na calçada enquanto tentava meditar sobre os acontecimentos de mais cedo.
As palavras de Amanda continuavam ressoando em sua cabeça no momento em que deixou a sacola cair no chão ao seu lado. Ele deveria continuar agindo do jeito que estava, fingindo ser o que não era, e arriscar magoar as pessoas ainda mais, ou deveria agir como sempre agiu e terminar sem nenhum companheiro ao seu lado? O garoto colocou as mãos na cabeça, sentindo o desespero crescer dentro de si. Haveria alguma forma dele se dar bem nessa?
No meio de seu pesar, não reparou em uma figura pequena que se aproximava, até que ela o cutucasse no ombro. Levantou a cabeça, sentindo os olhos arderem, e percebeu que Wieder estava ao seu lado.
- Quanto tempo, rapaz. - Disse o anão, sorrindo. Ele vestia um gorro verde que descia até seu pescoço, e uma camisa limpa e da mesma cor por cima da calça negra. Wieder estendeu a mão, convidando o garoto a se levantar. - Amanda me contou que você precisaria de ajuda.
- Amanda? - Perguntou o rapaz, sentindo algo ferver em sua garganta. Agora ela queria ajudá-lo? Depois de tudo que ela havia causado? - O que ela quer?
Wieder olhou em volta, parecendo descompromissado. Acompanhou uma mulher extremamente bonita caminhar pela calçada, e pareceu por um momento se perder no movimento. - Sabe, aprendi que a maior parte das respostas do mundo se encontram em um bar. - Disse finalmente, se recuperando como se nada tivesse acontecido. - Por isso é melhor conversarmos naquele ali. - Completou ele, apontando para o fim da rua. Dalan se virou e reconheceu o Quatro Luas, estabelecimento que havia visitado em seu primeiro dia em Helleon.
- Um bar? - Perguntou o garoto, franzindo as sobrancelhas. - Não são nem doze marcas. E que tipo de resposta se encontra num bar? - Wieder apenas riu, balançando a cabeça.
- Você ficaria surpreso, guri. - Dalan se levantou, acompanhando o anão até o bar. O Quatro Luas estava razoavelmente cheio, considerando que ainda não haviam chegado ao meio do dia, e continuava tão sujo e apertado quando o rapaz se lembrava. Sentaram em uma mesa bem próxima do balcão, tanto que estava encharcada do mesmo líquido cor-de-mel que preenchia uma das garrafas na bancada.
Dalan olhou em volta, procurando a mesa que havia sentado na semana passada. Quando a encontrou, as lembranças de Sophie, Koga e Julie preencheram as cadeiras agora vazias, e o garoto sentiu uma pontada no coração. Era tão simples para os outros, agir normalmente e não se preocupar. Por quê não era assim com ele?
- Parece preocupado, rapaz. - Disse Wieder, se esticando para pegar um vidro de alcaparras do balcão. Dalan o olhou de forma repreendedora, e o anão o retribuiu com um olhar entediado enquanto se aproximava da mesa. - Eu vou pagar, senhor certinho. - Disse ele, retirando um aperitivo do frasco.
Dalan suspirou, se apoiando na mesa. - O quê Amanda queria comigo? - O companheiro coçou a barba distraidamente, se esticando para recolocar o vidro no balcão. Em seguida, ele sentou à mesa, se aproximando bastante.
- Na verdade ela não disse exatamente o que era, mas imagino que tenha algo a ver com Sophie. - Respondeu ele, limpando as mãos em um guardanapo asqueroso que estava jogado na mesa. - Ela parecia bastante chateada quando a encontrei.
Dalan afundou na cadeira, sentindo a depressão o envolver enquanto encarava seus joelhos. Estava confirmado, ele havia realmente magoado a garota. - Você... você a conhece? - Perguntou para Wieder, levantando minimamente a cabeça para encará-lo.
- Eu jantei todos os dias até agora na guilda, e uma vez estava acompanhado dela e da irmã. - Agora ele havia se levantado para pegar uma garrafa abandonada na bancada, de cor vermelha e brilhante, mas o rapaz não se importou desta vez. - Conversei apenas com a irmã, Julie, naquele dia, já que a outra garota não abria a boca por nada. A única vez que falou foi para perguntar de você. - Ele deu um sorriso implicante, e em qualquer outra situação Dalan o retribuiria, mas naquele momento isso o fez apenas se sentir pior.
O rapaz passou a mão pelos cabelos, apoiando o cotovelo na mesa. Até mesmo Wieder, que havia entrado depois dele, parecia mais enturmado. O garoto foi tomado imediatamente por lembranças ruins de sua infância. Será que iria se tornar cada vez mais isolado, até que os outros o ignorassem completamente, assim como antes?
- Eu... não sei o que fazer, Wieder. - Soltou o garoto, pondo as mãos na cabeça. Talvez fosse pelo pensamento anterior, ou pelo péssimo estado de espírito em que se encontrava, mas decidiu se abrir para o anão. - Eu não sei como agir perto das pessoas. Eu não sei. Tenho a impressão de que irei novamente afastar as pessoas de mim, assim como fiz durante toda a minha vida! Vou acabar sendo expulso da Aurora se continuar assim!
Wieder abriu calmamente a tampa da garrafa que havia pego e deu um longo gole, sem tirar os olhos do rapaz. Quando terminou, passou as costas da mão pela boca e se ajeitou na cadeira. - Dalan, a Aurora não tem condições nenhuma de expulsar alguém.
- Você não sabe dizer isso. - Respondeu o garoto, se irritando um pouco. O anão havia entrado um pouco depois dele, e agia como se já conhecesse a guilda como ninguém. - Nós não temos tanta intimidade com os outros. Poderiam nos demitir sem nenhum problema.
- Não, não poderiam. - Disse Wieder, reclinando a cadeira. - A guilda está à beira da falência. Acha que nós estamos convidando o prefeito para jantar lá na sede porque gostamos dele? Stella sabe que precisamos de apoio financeiro, por isso estamos preparando esse encontro há três dias, para sair perfeito. - Ele tomou mais um gole da bebida vermelha, deixando o rapaz absorver as informações. - Então, não, não iremos embora. Eles precisam de gente para fazer missões, e quanto mais melhor. Agora, a minha pergunta é bastante simples: Por quê se importa tanto com que os outros pensam de você?
- O quê? - Perguntou o garoto desconcertado. Ele encarou a mesa enquanto balbuciava, avaliando o que iria dizer. Bem, se a torneira já estava aberta... - Eu preciso do apoio da guilda. Minha ilha, ela... sumiu. Gamora. Desapareceu do mapa. Nenhuma autoridade comentou sobre o assunto, e sinto que terei que bater de frente com a Aliança para obter respostas. Não sei se conseguirei sozinho.
- Hmm. - Meditou o anão, voltando a se reclinar na cadeira. - Bem, não acho que seja tão difícil. Com o tempo, você acabará se enturmando.
- Para você é fácil. - Disparou o garoto, sem nem mesmo pensar. Afinal, não estava vendo Wieder passar pelo mesmo que ele. - Parece que você não teve problema nenhum.
- Realmente, tive muita sorte. - Comentou distraído Wieder, balançando a garrafa e observando seu líquido chacoalhar. - Um anão em uma cidade predominantemente humana geralmente carrega um bocado de preconceito. Graças aos deuses eu não encontrei isso na Aurora.
O garoto imediatamente corou, percebendo a besteira que havia falado. Realmente, o anão deveria ter passado um perrengue em Helleon. Se em cidades mistas o preconceito já era grande, fora delas era muito pior. Ele olhou em volta, percebendo que as outras dez pessoas que estavam no bar mantinham os olhos na mesa em que o rapaz estava, e ele tinha certeza de que não eram acompanhados de pensamentos agradáveis. - Me desculpe. - Falou ele em voz baixa. - Eu não pensei...
- Já foi numa cidade não-humana, Dalan? - O interrompeu Wieder, encarando o garoto desta vez, que concordou com a cabeça. - Já percebeu que todo mundo fica te encarando, como se conseguissem prever que você vai fazer algum crime. - Outro aceno positivo com a cabeça, desta vez acompanhado de um rubor. O anão sorriu, quebrando o clima tenso. - Não se preocupe. Já vivi minha cota de anos, sei me virar.
Dalan apoiou os braços na mesa e cruzou as mãos, fazendo uma careta enquanto pensava na melhor forma de perguntar algo que ele estava curioso há tempo. - Por quê você veio até uma cidade humana? Digo, não seria mais simples procurar uma guilda anã?
- E eu perderia todas essas mulheres maravilhosas? Há! - Ele tomou um gole longo e inclinou a cabeça para trás, esperando Dalan rir com ele. No entanto, isso não aconteceu. Quando Wieder voltou à conversa, estava exponencialmente mais sério. - Dalan, eu tenho cento e oitenta e um anos. Sob todos os aspectos, já passei da metade da minha vida. Um dia eu estava no chuveiro, cuidando da minha própria vida como sempre, e de repente isso me bateu com força. - Ele apoiou os braços curtos na mesa, puxando a cadeira para ficar mais perto. - Eu notei que precisava fazer algo diferente. Não sei se você consegue compreender, é muito jovem ainda. Apenas imagine que... imagine que você seguiu toda a sua vida seguindo um padrão, e percebeu que, pelo restante dela, as coisas continuariam no mesmo padrão de sempre se não mudasse completamente.
- Eu precisava mudar. Era como se eu já tivesse predito todas as minhas ações até a minha morte. Perguntei a mim mesmo o que queria fazer da minha vida, e... descobri que queria ser lembrado. Não queria ser mais um anão a viver nesse planeta. Parecia um desperdício de vida. Queria que as pessoas lembrassem do meu nome. - Ele levantou a cabeça, encarando o garoto. - Parece mesquinho?
- Não. - Se apressou a dizer Dalan.
- Bem, esse desejo limitou os lugares que eu poderia ir a partir dali. - Ele colocou a garrafa na mesa, brincando distraidamente com ela novamente. - Não tinha nenhuma habilidade especial para me destacar, então decidi ir para uma guilda. O problema é que guildas anãs compartilham do mesmo princípio de igualdade que o governo, então não valeria a pena. Quando soube que a Aurora estava contratando, bem... foi a escolha mais simples.
Dalan cruzou os dedos, se sentindo um pouco mal vendo o esforço que o anão fazia para perseguir seus sonhos. - Eu... tenho medo de não conseguir recuperar minha ilha. É muita gente dependendo de mim. Às vezes eu nem consigo pensar nisso.
- Se é sobre se relacionar com as pessoas, seja apenas você mesmo. - Respondeu simplesmente Wieder, como se a conversa já tivesse terminado. - É bem mais simples. - O rapaz ficou calado diante dessa proposta. Todos estavam dizendo aquilo. Deveria realmente deixar as coisas rolarem? Ainda não tinha resposta, mas no momento estava inclinando naquela direção.
O garoto estava prestes a pedir alguma coisa para beber e tentar relaxar quando as portas do bar se abriram. Três humanos, no alto de seus vinte anos, entraram no estabelecimento gargalhando e tropeçando. Mesmo ainda sendo cedo, estavam claramente bêbados. O mais alto, um homem moreno e de cabelo espetado, visualizou Dalan e Wieder, sentados bem do lado do balcão.
- OOOOH! - Gritou ele, quase caindo para trás. - O que temos aqui?
- Não reaja. - Ordenou rapidamente o anão para Dalan. Ele estava sério, e segurava a garrafa com força. - Somos membros de guilda. Não podemos causar confusão com civis.
- Um anão? - Perguntou o segundo homem, loiro e de cabelos longos e ondulados. Ele cambaleou até a mesa, deixando Dalan tenso. - O que faz tão longe, inferior? - Inferior era um dos piores xingamentos que podia se dar para um anão. Wieder segurou por um momento a garrafa com tanta força, que ela parecia prestes a explodir.
- Acho que ele está perdido. - Grunhiu o terceiro, de pele clara e cabelo raspado. - Você sabe que inferiores não conseguem fazer nada sozinhos, né? Precisam de quatro amiguinhos apenas para abrir um mapa!
- Isso é verdade, inferior? Você precisa de ajuda para achar o caminho de volta pra sua toca? - Perguntou o moreno, se curvando para encarar o anão nos olhos. Wieder não respondeu, apenas mordeu o lábio, e os outros riram. - Acho que ele precisa de mais dois companheiros só pra abrir a boca! - O loiro puxou a garrafa das mãos do anão, entornando todo seu conteúdo em sua cabeça.
- Chama um companheiro pra te ajudar a limpar isso! - Zombou ele. Dalan trincou os dentes, se levantando com truculência. Wieder o encarou temeroso, mas o garoto apenas levantou a manga da camisa, revelando sua Marca.
- Somos da Aurora. - Grunhiu ele, encarando os três badernistas com raiva profunda. - Sugiro que nos deixem em paz. - Por um instante, os rapazes pareceram assustados e Dalan soltou um pequeno sorriso, mas era tudo uma farsa. Eles caíram na gargalhada com vontade, apontando para o garoto.
- Aurora? Aurora? Pensei que eles tinham acabado mês passado! - Ria o loiro, enquanto que o de cabeça raspada segurava a barriga.
- Não se preocupe, eles estão salvos! - Anunciou o loiro, puxando o colarinho de Dalan. - Eles tem um inferior e um garotinho agora! Era tudo que faltava para conseguirem realizar suas missões de vital importância!
- Ei, Aurora preciso que alguém limpe minha privada! - Disse o loiro, jogando um pouco da bebida no rapaz. - Vou pagar a vocês dois tens. Deve ser tudo que conseguiram em quatro meses, não é?
- Aproveite e mande uma daquelas gostosas de vocês. - Disse o garoto de cabelo raspado. - Elas são um desperdício naquele chiqueiro que vocês chamam de guilda. Estariam melhor na minha cama! - Eles recomeçaram a rir e fazer gestos obscenos, e Dalan sentiu o rosto pegar fogo. A bebida que corria em sua face estava prestes a evaporar, e seus dedos se fecharam com tanta força que as unhas ficaram à beira de rasgar a pele. Quando estava prestes a socar um deles, as portas se abriram.
A luz banhou o interior do Quatro Luas, mas foi um sujeito sombrio que entrou ali. Ele vestia um casaco púrpura e cheio de bolsos, mesmo naquele calor, e uma calça preta e pesada. Sua pele era clara e seu cabelo curto e negro era penteado para trás. Sua boca era um traço, e seus olhos eram verdes e puxados. Na verdade, um olho era verde e puxado. O outro estava coberto por um tapa-olho, que era preso por uma simples fita de pano ao redor de sua cabeça. O sujeito aparentava ter a mesma idade de Dalan, e olhou com calma e indiferença o princípio de confusão ali.
- Algum problema, senhores? - Perguntou ele com uma voz. Silêncio. Dalan olhou ao redor, e viu que os badernistas haviam ficado tensos e suados. O garoto de cabelos raspados se adiantou, de repente sem um pingo de álcool no sangue.
- N-n-n-não, senhor Marcus. Nós estávamos apenas... - Ele parou ao ver a mão esticada de Marcus, que levantou as sobrancelhas. - D-d-d-esculpe. Senhor Vastre.
- Agora sim. Um pouco de respeito é tudo que precisamos, não? - Perguntou ele, franzindo a testa para encará-los de forma gélida. Outra rodada de silêncio. - Agora, saiam daqui e eu vou fingir que esse ataque à Aurora nunca aconteceu. - Os badernistas fugiram correndo, e Dalan se lembrou de onde tinha visto aquele homem antes. Era o membro da Aurora que vira uma vez, quando havia acabado de sair da sala da senhora Stella. Na hora, ele não havia conseguido enxergar o rosto, mas a fisionomia encaixava como uma peça de um quebra-cabeças.
- Obrigado, Marcus. - Agradeceu Wieder, passando a mão pela barba para secá-la. - Mais dois minutos e aqueles três iriam voltar pra casa em potes para aperitivos.
- Então foi oportuno eu ter chegado aqui. E mais oportuno ainda me lembrar da sua fixação por bares, Wieder. - Respondeu ele, ainda de forma impassível. Ele encarou Dalan com seu único olho à vista, e o garoto sentiu um arrepio passar pela espinha. - A senhora Stella pediu para voltarem à sede. Temos muitas tarefas a fazer para a chegada do prefeito.
- Não se preocupe comigo. - Suspirou o anão, saltando da cadeira de forma cansada. Ele colocou alguns tens na mesa para pagar pelas alcaparras e a bebida, e andou em direção à saída. Dalan foi atrás dele, olhando de relance para Marcus, que agora encarava o resto do bar. Os clientes, que até então haviam observado em silêncio a confusão, se amedrontaram e voltaram à suas conversas como se nada tivesse acontecido. Marcus soltou o ar pelo nariz, e se virou para acompanhar os companheiros de volta à Aurora.
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