quinta-feira, 27 de março de 2014

Aurora: Capítulo 9 - Vértices

AURORA
CAPÍTULO 9: VÉRTICES

 Dalan dormia profundamente, o que recentemente era uma visão completamente garantida. Sua cama, até então apenas uma vez usada, parecia agora fazer parte de seu corpo. Assim, semanas pareceram se passar, com vozes gritando do lado de fora, pessoas batendo na porta e chuva irrompendo na janela. Mesmo assim, Dalan continuava dormindo, cansado demais para até mesmo formular sonhos.

 Eis que, um certo dia, o sol iluminou o aposento em que o garoto estava, revelando as partículas de poeira dançando na luz matutina. O rapaz abriu os olhos pela primeira vez em dias, tentando focar sua visão enferrujada. Por um doce instante, imaginou-se em seu quarto em Gamora, e toda sua viagem até ali teria sido um sonho. Um breve sorriso surgiu em seus lábios, até que a realidade batesse com força, tal qual um soco. Os poucos móveis empoeirados contrastaram com suas lembranças, e a verdade se mostrou clara. Aquele não era seu quarto, ainda estava na Aurora e Gamora, sua ilha, continuava desaparecida.

 Com um leve ar depressivo, o garoto se sentou na cama, esticando todos os músculos que conseguia. Algo perto de sua costela começou a doer, e seu próprio cheiro invadiu suas narinas. Estava fedendo terrivelmente. Dalan deu mais uma forte espreguiçada e se dirigiu à pequena porta de madeira que indicava o banheiro.

 Alguns minutos depois, com a escova de dentes em sua boca, o garoto voltou ao quarto. O pó cobria quase todos os seus móveis, que se limitavam a um guarda-roupas baixo, uma escrivaninha bamba e a cama de madeira. Provavelmente havia ganhado alguma doença por estar ali, pensou, afinal havia dormido por... quantas horas? Não sabia. Sua única pista era seu estômago, que roncava dolorosamente. Dalan separou a única muda de roupa que restava das que Lyra havia lhe emprestado, voltou ao banheiro para guardar a escova, e saiu do quarto para tomar o café da manhã.

 Os corredores simples da Aurora estavam silenciosos, com exceção de um sibilar constante mais à frente. O garoto seguiu em direção ao salão, ainda se espreguiçando até conseguir estalar os ossos. Vestia uma camisa amarela, muito grande para seu corpo, e uma confortável calça branca de lã. Sentiu um cheiro agradável de ovos fritos, e quando adentrou o grande aposento, avistou Lyra atrás do balcão, cozinhando com um sorriso tranquilo.

 - Olha quem acordou! - Disse a garota de cabelos roxos, abrangendo o sorriso. Naquele dia ela usava um rabo de cavalo para prender seus longos fios, e vestia um vestido verde por baixo de um avental de cozinha azul. Lyra se esticou para pegar um prato, colocando-o à frente dela. - Espero que tenha aproveitado esses três dias dormindo! Bom dia!

 - Bom dia. - Disse Dalan corando, e em seguida se sentou na bancada. Lyra colocou um ovo estrelado no prato, e o garoto se esticou para pegar os talheres. - Eu dormi três dias?

 - Pelo menos foi o que conseguimos contar. - Respondeu a mulher, sorrindo para si própria. - Mas não se preocupe, pouca coisa aconteceu. - Ela pegou dois ovos da bancada acima de sua cabeça, quebrando-os na frigideira. - Seu amigo Wieder entrou na guilda, mesmo com Sasha sendo contra. Além disso, nós praticamente terminamos as preparações para a visita do prefeito hoje à noite. - Dalan se lembrou desse evento, ficando ainda mais envergonhado por ter dormido todos aqueles dias. Colocou um pouco do ovo na boca, mastigando lentamente a clara.

 - Sobrou alguma coisa para eu fazer? - Perguntou ele corado, levantando a cabeça. Lyra apenas riu, olhando-o de relance enquanto mexia nas panelas.

 - Não se preocupe, querido. Ainda tem algumas coisas se quiser se sentir... oh, bom dia! - Disse ela, sorrindo para a área atrás de Dalan. Ele se virou, vendo Sophie Helder se aproximar. Ela vinha com o cabelo bagunçado e esfregando os olhos, e vestia um roupão branco por cima de um pijama de flanela roxo, sem a boina do outro dia. No entanto, era fácil diferenciá-la da irmã gêmea, visto que a garota se encolheu e corou quando viu que Dalan estava ali.

 - Oh... bom dia. - Respondeu ela com a voz quase sumida, ajeitando distraidamente o roupão de forma a cobrir qualquer parte desnuda do tórax. Dalan, por sua vez, inconscientemente passou a mão pelos cabelos molhados, imediatamente se reprimindo quando tomou consciência de seus atos. Sophie se sentou ao lado dele, olhando-o de soslaio.

 - Sophie, eu estava falando agora mesmo... - Lyra pegou mais um prato, servindo à outra garota ovos mexidos. - Precisávamos de peixe fresco para o jantar de hoje, mas eu estou muito atarefada terminando de arrumar a sede. Então me lembrei que o senhor Wieder havia dito que a família de Dalan costumava se envolver com negócios de pesca, e ia pedir pra ele comprar pra mim. - Ela se agachou para pegar uma frigideira, e quando voltou continuou a falar. - O problema é que ele não conhece bem a cidade... você se incomoda de levar ele até o cais?

 Se o garoto pudesse, teria sorrido tão forte que suas bochechas estourariam. No entanto, se forçou a ficar impassível, concentrando seus esforços no prato à sua frente. Ao seu lado, Sophie voltou a falar.

 - Bem, eu... podemos fazer isso. Quer dizer, se não for muito incômodo. - Se apressou ela a dizer. Não, definitivamente não era, pensou o garoto, mas respondeu de outra forma.

 - B-bem, eu não vejo nenhum problema...

 - Porque diabos esta gaguejando, Dalan? - Disse uma voz nova atras do balcão. O garoto, ainda sorrindo abobalhado, levantou a cabeça e encarou o rosto de Amanda, suado e desconfiado, o encarando. O sorriso de Dalan se manteve, no entanto seus olhos lentamente se arregalaram e suas sobrancelhas subiram, dando ao garoto um ar de maníaco. Ele abriu um pouco mais os lábios, respirando fundo enquanto o cérebro tentava entender o que estava acontecendo.

 - Amanda! - Disse ele finalmente, sem mudar a expressão. - O-o que esta fazendo aqui?

 - Estava ajudando Lyra a arrumar a sede. - Ela se esticou por cima do balcão, e Dalan recuou. - Agora responda a pergunta: Pra que tanto gaguejar? Esta com vergonha de alguma coisa?

 - Não! - Se apressou em dizer, mas o rosto corou em contraste. O garoto olhou de relance para Sophie, que encarava os dois de forma interessada. - N-não sei do que esta falando, Amanda. - Disse ele, sorrindo com os olhos fechados. A garota, por sua vez, estreitou os olhos.

 - Acho que estou com um sério problema de memória. - Disse ela lentamente. - Da última vez que nos encontramos, você era tão irritadiço e mal-humorado quanto um...

 - Amanda! - Exclamou em voz alta Dalan, ainda sorrindo, interrompendo a outra. - Me lembrei que eu... tenho que... algo pra te dar. - Ele se levantou, andando rapidamente até o outro lado do salão. A garota, bufando, o seguiu. Vestia um simples vestido branco, que a cobria até seus joelhos. - O que está fazendo? - Sibilou o rapaz quando teve certeza de que nem Lyra nem Sophie conseguiriam escutá-los.

 - O que eu estou fazendo? O que o senhor está fazendo seria a pergunta mais pertinente! - Disse ela, encostando o dedo no peito do rapaz e começando a falar rapidamente. - Gaguejando embaraçado? Sendo educadinho com todo mundo? O que houve, tem dupla personalidade? Ou tem um problema comigo?

 - Não! - Disse Dalan por entre os dentes, olhando de relance para as outras garotas, entretidas agora em uma conversa. - Escute, o que quer que você tenha entendido de mim naquele dia... esqueça. Não era o que eu vou ser.

 - Eu... não entendi. - Respondeu Amanda, inclinando a cabeça para o lado. - Aquele não era você?

 - Era, mas... - Dalan suspirou pesarosamente. Amanda já desconfiava demais. Tinha que contar para ela, mesmo que isso soasse bastante contra-produtivo. - Escute, eu preciso da confiança e apoio de todos aqui. Toda a minha ilha sumiu, e estou sozinho na busca por ela. Necessito muito do apoio de outras pessoas para encontrá-la. Só que... - Contar tudo isso para a garota, ou mesmo para qualquer um, definitivamente não estava nos planos dele, mas agora que a torneira estava aberta não podia mais fechá-la. - Eu nunca fui uma pessoa sociável. Sempre fui solitário, e tinha poucos amigos. - Admitiu ele, deixando a cabeça pender. - De alguma forma, eu consegui uma chance de começar de novo, e preciso fazer as coisas diferentes. Não é nem mais por mim, mas por minha família e todos os outros. - Ele levantou a cabeça, encarando os olhos castanhos da garota, esperando ver compreensão. - Entendeu?

 Amanda apoiou o queixo na mão, coçando-o de forma distraída enquanto pensava. - Você está querendo mudar sua personalidade apenas para ser amigo de todo mundo aqui?

 - Um pouco mais complicado do que isso, mas pode-se dizer que sim. - Ele passou a mão pela nuca, pensativo. - Todo mundo gosta de um cara educado, calmo e simpático. E é isso que eu preciso ser.

 - Isso não vai funcionar. - Disse prontamente a garota, colocando as mãos no quadril magro. - Ninguém consegue se passar por outra pessoa por tanto tempo.

 - Se você não contar pra ninguém, talvez eu consiga. - Disse o rapaz irritado por entre os dentes.

 - Ah, não precisa se preocupar com isso. - Respondeu Amanda, cruzando os braços com uma expressão tranquila e sorridente. - Você ira fazer isso sozinho. - E com essa frase, ela deu meia-volta e voltou a cozinha. Dalan se apoiou na parede, suspirando. De todas as pessoas, era justamente ela que sabia de seu segredo. Havia definitivamente cometido um grande erro.

 Uma hora depois, no entanto, ele estava distraído demais para pensar nisso. Estava caminhando pela região pobre da cidade, sozinho com exceção de Sophie ao seu lado. A garota havia vestido a boina, e usava um vestido florido, branco e laranja, para completar. Dalan tentava não olhá-la, com medo de não conseguir parar.

 Em seu bolso, haviam dois envelopes. O primeiro era o dinheiro necessário para pagar a quantidade de peixes e outros condimentos que Lyra havia pedido, e o segundo era seu pagamento pela missão que havia realizado dias atrás, quando ele perseguiu o gatinho de uma senhora por toda a cidade. A recompensa era bastante generosa, cerca de duzentos e cinquenta tens, o que dava ao garoto uma oportunidade de comprar roupas e outros bens que faltavam a ele.

 Subitamente, uma duvida irrompeu em sua mente: Sophie iria acompanhá-lo para comprar a comida. E depois? Iria acompanhá-lo em seus próprios afazeres? Isso não parecia educado de sua parte, nem divertido para ela. No entanto, ele iria apenas expulsar a garota? Deixá-la ir sozinha até a guilda? Dalan olhou para o lado, e teve certeza de que captou uma sombra andando por um beco. Não parecia seguro deixá-la sozinha, mas precisava comprar roupas urgentemente. O que faria?

 - Vamos por aqui. - Disse subitamente Sophie, puxando a manga de Dalan. Estavam caminhando aparentemente em direção à uma ponte de pedra bastante erodida, de quase dez metros de comprimento, mas a garota o levava até um caminho alternativo, que descia em direção à praia. - Há muitos assaltos naquela área.

 - Sério? - Perguntou o garoto, olhando ao redor. - Parece que estamos sozinhos.

 - Eles estão debaixo da ponte. - A garota diminuiu a voz, procurando esticar o pescoço para espiar por debaixo da construção que atravessava o canal fétido. - Pontes desertas são uma armadilha em regiões como a parte baixa de Helleon. Bandidos cercam as pessoas e roubam tudo que puderem, podendo até mesmo matá-las. - Ao ver que Dalan tentava avistar algum larápio, ela se adiantou. - E-eu morei por muitos anos nas ruas com a minha irmã. Já vi muitas vezes isso ocorrer.

 - Você o quê? - Perguntou o rapaz, se virando para Sophie, que começou imediatamente a corar. Dalan imediatamente se retratou, como se tivesse feito algo errado. - D-desculpa, mas... não me leve a mal, mas você não parece o tipo de pessoa que viveu nas ruas.

 - Tudo bem. - Respondeu a garota, encolhendo um dos ombros. - Faz algum tempo desde que entramos na Aurora. Antes disso, no entanto, vivemos quatro anos na rua... procurando... - Ela olhou para o chão, parecendo absorta em pensamentos.

 - E-essa cidade sempre foi assim? - Perguntou o rapaz, tentando manter a chama da conversa viva. - Digo, parece estranho que uma guilda tenha se firmado em uma região tão... problemática.

 - Quando eu e Julie chegamos, não era assim. - Admitiu Sophie, levantando a cabeça. - Só que... depois que o senhor Adam morreu, as coisas desandaram. A Aurora começou a encolher, e nem mesmo os bandidos da região nos respeitavam mais. - Ela ficou calada novamente, passando a mão no cabelo.

 - Ah. - Excelente, Dalan, pensou o garoto consigo mesmo. Um verdadeiro ás da conversação. Os dois caminharam mais alguns minutos em silêncio, até que chegaram à praia. A visão das ondas espirrando na areia branca fez o rapaz voltar ao passado, e foi a vez dele ficar refletindo. Assim, chegaram os dois no mercado sem trocar mais nenhuma palavra.

 O lugar, por sua vez, era barulhento e agitado. Dezenas de pessoas estavam apinhadas em duas ruas de pedra negra, que eram cercadas por barracas ocupadas por vendedores berrando e pelo cheiro variado dos alimentos. Crianças corriam gritando, e mulheres seguravam suas bolsas e suas compras. Homens tentavam pechinchar em voz alta, agitados, enquanto que o vento forte trazia os grãos de areia da praia, à qual as ruas do mercado cercavam. Dalan e Sophie se aproximaram instintivamente para não se perderem, enquanto procuravam pelo vendedor de peixes.

 Depois de dez minutos em que dois garotos que raramente se meteram em uma multidão tentavam se achar naquela baderna, eles se viram em frente ao balcão dos frutos do mar. Nele, fileiras de postas de peixe brilhavam ao sol, enquanto um homem gordo e bigodudo abanava as moscas com seu jornal. Dois baldes completavam a bancada, um cheio de tentáculos vermelhos que ainda se mexiam lentamente e outro composto do que pareciam pedras porosas, mas que Dalan sabia que eram abrigos de tatunos brancos, seres minúsculos que eram usados como tempero.

 - Você se lembra do que deveríamos comprar? - Perguntou Sophie, mas o barulho no lugar era tão grande que o garoto, mesmo ao seu lado, não conseguiu ouvir. Ela gritou para repetir sua pergunta, e imediatamente corou quando Dalan se assustou com o grito.

 - Eu acho que... - Começou a dizer o garoto, mas naquele momento algo se chocou contra suas costas, fazendo-o cair em cima da bancada. As postas de peixe voaram, e seu rosto foi afundado em um material viscoso e frio. Ele apoiou as mãos na madeira, procurando forças para se levantar, enquanto Sophie o puxava.

 - Dalan... - Disse ela em seu ouvido. - Acho que você precisa ver isso! - Quando o rapaz se levantou, a garota apontou para trás. Havia um princípio de confusão, totalmente despercebido pelo restante das pessoas no mercado. Dois homens fortes estavam cercando uma pessoa, e parecia que iriam chegar às vias de fato. Dalan inclinou o pescoço para ver quem era, e suspirou fundo ao descobrir. O destino parecia sacaneá-lo em todas as chances possíveis.

 - Sophie... fique aqui. - Disse Dalan para a garota, ignorando o vendedor que tentava arrumar sua bancada bagunçada. O rapaz foi até os dois homens, se esquivando dos transeuntes distraídos, e se entrepondo entre os valentões e sua futura vítima. - Senhores, posso saber o que está acontecendo aqui? - Perguntou ele.

 - Não é da sua conta, moleque. - Disse um deles, um homem musculoso, de pele cor de oliva e bigode cheio. Seu companheiro, de quase dois metros e pele cor de ébano, acenou em concordância. - Queremos só pegar a nossa grana dessa aí e iremos sair.

 Dalan olhou para trás enfurecido, encontrando os olhos de Amanda. A garota parecia extremamente tranquila, e quando o encarou ela fechou os olhos e soltou um sorriso sem dentes. O rapaz sentiu o sangue ferver, e voltou a se virar para os dois homens.

 - O que ela fez? - Perguntou ele, já retirando a carteira do bolso.

 - O quê, você é namorado dela agora? - Perguntou o negro. Pelos deuses, por favor não, pensou o garoto para si mesmo. - Ela nos empurrou e derrubou nossas compras. Duzentos tens jogado no lixo.

 - Imagino... - Comentou Dalan, separando o dinheiro de sua carteira. Haviam apenas duzentos e cinquenta tens ali, o que o deixou bastante melancólico. No entanto, separou o dinheiro. Entrar em uma confusão com aqueles homens no meio do mercado não parecia a atitude mais inteligente a ser tomada. Assim, o garoto os pagou e eles se afastaram, lançando olhares irritados na direção de Amanda. Algum tempo depois, foi a vez de Dalan fazer isso. - O que você pensa que está fazendo?

 - Eeeeu? - Perguntou ela de forma claramente sarcástica, colocando a mão no peito enquanto fazia cara de surpresa. - Eu não fiz nada! Que calúnia! - Naquele momento o rapaz se lembrou da conversa que tiveram na sede, e sentiu o sangue ferver.

 - Você está fazendo isso para me tirar do sério? - Perguntou por entre os dentes, se aproximando de Amanda para que ela pudesse ouvi-lo. - É esse seu plano?

 - Eu não conseguiria tirar uma pessoa tão educada e calma do sério. - Respondeu ela, estreitando os olhos e ampliando o sorriso enquanto balançava negativamente a cabeça. - Conseguiria, Dalan? - O garoto suspirou, tentando se acalmar.

 - Não, você não conseguiria. - Se forçou a dizer. Ele virou a cabeça, vendo que Sophie ainda o esperava. - Agora eu vou comprar o que vim comprar e não te ver mais pelo resto do dia. Entendeu? - Amanda não respondeu, apenas cruzou os braços e continuou a sorrir. Bufando, Dalan se virou e pisou forte até a barraca de peixes, tentando se acalmar a cada passo.

 - Aconteceu alguma coisa? - Perguntou Sophie quando ele se aproximou. O rapaz se virou para trás, mas já era impossível de localizar a outra garota. Respirou fundo.

 - Não... nada. - Ele ainda sentia raiva, portanto preferiu ficar quieto para não dizer algo que se arrependeria depois. Assim, novamente em silêncio, os dois membros da Aurora fizeram suas compras e se puseram a caminhar de volta à sede da guilda. Dalan não falava nada, tentando imaginar o que Amanda tentaria fazer com ele e como se defender disso. Sophie, por sua vez, ficava cada vez mais sombria.

 Quando finalmente adentraram no saguão da Aurora, ela ajeitou o cabelo, pondo as compras em cima do balcão que separava o aposento da cozinha. - Eu... eu vou pro meu quarto, tudo bem? Foi uma manhã cansativa.

 - Tudo bem... - Começou a dizer o garoto, até que encarou o rosto da companheira, melancólico e cabisbaixo. - Aconteceu alguma coisa? - Perguntou.

 - O quê? - Exclamou ela, corando. - N-não... nada... - Ela ajeitou novamente o cabelo, se apressando em caminhar até seu quarto. Dalan ficou onde estava, tentando entender a expressão sombria da garota. Não percebeu as portas se abrindo atrás de si, até que uma pessoa se apoiou em seu ombro.

 - Seu dia não foi tão bom assim, né campeão? - Perguntou a voz de Amanda, colada em seu ouvido. Dalan se afastou com o susto, e a garota quase caiu sem o apoio. Ela se equilibrou, esticando as mãos. - Às vezes acho que você tem algo contra mim, sabia? Quase me fez cair!

 - Não estaria errada! - Disse o rapaz, se aproximando enquanto deixava as compras no chão. - Vou te perguntar pela última vez: o que está fazendo?

 - Te mostrando o quão contra-produtivo é fingir ser alguém que você não é! - Respondeu a garota, cruzando os braços e franzindo a testa. - E não sei se reparou, mas essa sua atitude acabou de te render uma garota magoada!

 - Quem, você? - Perguntou Dalan, não entendendo a frase.

 - Não, seu retardado, Sophie! - Exclamou Amanda, fechando os punhos e batendo o pé. - Sério, qual é o seu problema de entender o que está acontecendo ao seu redor?

 - O-o que houve com Sophie? - Perguntou o rapaz, olhando para a direção em que a garota havia sumido.

 - Ela passou o dia inteiro ao seu lado e você ficou nessa de tentar fingir ser alguém tímido, sensível e blá blá blá. - Amanda suspirou, indo se sentar em uma mesa e convidando com a mão Dalan a fazer o mesmo. - Preste atenção: imagine que você está andando com alguém durante o dia inteiro. Com você, essa pessoa não fala nada e se mantém tímida. Com os outros, é falante e cheio de atitude. O que pensaria? - Ela esperou dois segundos, enquanto o rapaz pensava. - Vou responder porque você claramente não é o tipo mais esperto: Você acharia que a pessoa não gosta de ti.

 - O quê? Eu não... você nos seguiu o dia inteiro? - Perguntou o garoto, indignado.

 - Isso não vem ao caso. - Se apressou a dizer Amanda. - A questão é a seguinte, Dalan: Você não é uma pessoa tímida e sensível. - Declarou ela, se esticando na mesa. - Ao tentar ser alguém assim, você acaba se fazendo passar por mal-educado. E isso vai totalmente contra o seu lema de fazer as pessoas gostarem de você para que a guilda fique ao seu lado e blá blá blá, não é?

 - Eu... - Não havia pensado nisso, concluiu o garoto. Enquanto tentava reunir seus pensamentos, Amanda se levantou, pondo a mão em seu ombro.

 - Você é meio lerdo e essa reflexão pode demorar algumas horas, então vou te deixar sozinho. - Ela deu três passos, antes de virar para trás. - Ah, e essa sessão terapêutica não foi de graça, tudo bem? Só que você foi uma pessoa tããão legal ao pagar o que eu devia para aqueles valentões, que irei te dar uma colher de chá dessa vez. - Dalan se virou indignado, mas a garota apenas apontou os dedos indicadores para ele, estalando a língua duas vezes, antes de se virar para a cozinha.

 O rapaz suspirou, se largando na cadeira. Por mais que odiasse admitir isso, Amanda estava certa. Não sabia ser essa pessoa que tentava passar, e isso acabaria causando mais problemas para ele. Se ela estivesse correta, havia acabado de magoar Sophie, e isso poderia ser apenas o começo. No entanto, iria arriscar e manter sua atitude normal que nunca havia lhe dado amigos? Seria esse o caminho certo a se seguir.

 Sua cabeça começou a doer, e se lembrou de que não havia comprado roupas novas. Um pouco de ar pode me fazer bem, concluiu, se levantando para voltar ao centro de Helleon, tomando duplo cuidado dessa vez para não cair em nenhuma armadilha de assaltantes.

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