quinta-feira, 27 de março de 2014

Aurora: Capítulo 9 - Vértices

AURORA
CAPÍTULO 9: VÉRTICES

 Dalan dormia profundamente, o que recentemente era uma visão completamente garantida. Sua cama, até então apenas uma vez usada, parecia agora fazer parte de seu corpo. Assim, semanas pareceram se passar, com vozes gritando do lado de fora, pessoas batendo na porta e chuva irrompendo na janela. Mesmo assim, Dalan continuava dormindo, cansado demais para até mesmo formular sonhos.

 Eis que, um certo dia, o sol iluminou o aposento em que o garoto estava, revelando as partículas de poeira dançando na luz matutina. O rapaz abriu os olhos pela primeira vez em dias, tentando focar sua visão enferrujada. Por um doce instante, imaginou-se em seu quarto em Gamora, e toda sua viagem até ali teria sido um sonho. Um breve sorriso surgiu em seus lábios, até que a realidade batesse com força, tal qual um soco. Os poucos móveis empoeirados contrastaram com suas lembranças, e a verdade se mostrou clara. Aquele não era seu quarto, ainda estava na Aurora e Gamora, sua ilha, continuava desaparecida.

 Com um leve ar depressivo, o garoto se sentou na cama, esticando todos os músculos que conseguia. Algo perto de sua costela começou a doer, e seu próprio cheiro invadiu suas narinas. Estava fedendo terrivelmente. Dalan deu mais uma forte espreguiçada e se dirigiu à pequena porta de madeira que indicava o banheiro.

 Alguns minutos depois, com a escova de dentes em sua boca, o garoto voltou ao quarto. O pó cobria quase todos os seus móveis, que se limitavam a um guarda-roupas baixo, uma escrivaninha bamba e a cama de madeira. Provavelmente havia ganhado alguma doença por estar ali, pensou, afinal havia dormido por... quantas horas? Não sabia. Sua única pista era seu estômago, que roncava dolorosamente. Dalan separou a única muda de roupa que restava das que Lyra havia lhe emprestado, voltou ao banheiro para guardar a escova, e saiu do quarto para tomar o café da manhã.

 Os corredores simples da Aurora estavam silenciosos, com exceção de um sibilar constante mais à frente. O garoto seguiu em direção ao salão, ainda se espreguiçando até conseguir estalar os ossos. Vestia uma camisa amarela, muito grande para seu corpo, e uma confortável calça branca de lã. Sentiu um cheiro agradável de ovos fritos, e quando adentrou o grande aposento, avistou Lyra atrás do balcão, cozinhando com um sorriso tranquilo.

 - Olha quem acordou! - Disse a garota de cabelos roxos, abrangendo o sorriso. Naquele dia ela usava um rabo de cavalo para prender seus longos fios, e vestia um vestido verde por baixo de um avental de cozinha azul. Lyra se esticou para pegar um prato, colocando-o à frente dela. - Espero que tenha aproveitado esses três dias dormindo! Bom dia!

 - Bom dia. - Disse Dalan corando, e em seguida se sentou na bancada. Lyra colocou um ovo estrelado no prato, e o garoto se esticou para pegar os talheres. - Eu dormi três dias?

 - Pelo menos foi o que conseguimos contar. - Respondeu a mulher, sorrindo para si própria. - Mas não se preocupe, pouca coisa aconteceu. - Ela pegou dois ovos da bancada acima de sua cabeça, quebrando-os na frigideira. - Seu amigo Wieder entrou na guilda, mesmo com Sasha sendo contra. Além disso, nós praticamente terminamos as preparações para a visita do prefeito hoje à noite. - Dalan se lembrou desse evento, ficando ainda mais envergonhado por ter dormido todos aqueles dias. Colocou um pouco do ovo na boca, mastigando lentamente a clara.

 - Sobrou alguma coisa para eu fazer? - Perguntou ele corado, levantando a cabeça. Lyra apenas riu, olhando-o de relance enquanto mexia nas panelas.

 - Não se preocupe, querido. Ainda tem algumas coisas se quiser se sentir... oh, bom dia! - Disse ela, sorrindo para a área atrás de Dalan. Ele se virou, vendo Sophie Helder se aproximar. Ela vinha com o cabelo bagunçado e esfregando os olhos, e vestia um roupão branco por cima de um pijama de flanela roxo, sem a boina do outro dia. No entanto, era fácil diferenciá-la da irmã gêmea, visto que a garota se encolheu e corou quando viu que Dalan estava ali.

 - Oh... bom dia. - Respondeu ela com a voz quase sumida, ajeitando distraidamente o roupão de forma a cobrir qualquer parte desnuda do tórax. Dalan, por sua vez, inconscientemente passou a mão pelos cabelos molhados, imediatamente se reprimindo quando tomou consciência de seus atos. Sophie se sentou ao lado dele, olhando-o de soslaio.

 - Sophie, eu estava falando agora mesmo... - Lyra pegou mais um prato, servindo à outra garota ovos mexidos. - Precisávamos de peixe fresco para o jantar de hoje, mas eu estou muito atarefada terminando de arrumar a sede. Então me lembrei que o senhor Wieder havia dito que a família de Dalan costumava se envolver com negócios de pesca, e ia pedir pra ele comprar pra mim. - Ela se agachou para pegar uma frigideira, e quando voltou continuou a falar. - O problema é que ele não conhece bem a cidade... você se incomoda de levar ele até o cais?

 Se o garoto pudesse, teria sorrido tão forte que suas bochechas estourariam. No entanto, se forçou a ficar impassível, concentrando seus esforços no prato à sua frente. Ao seu lado, Sophie voltou a falar.

 - Bem, eu... podemos fazer isso. Quer dizer, se não for muito incômodo. - Se apressou ela a dizer. Não, definitivamente não era, pensou o garoto, mas respondeu de outra forma.

 - B-bem, eu não vejo nenhum problema...

 - Porque diabos esta gaguejando, Dalan? - Disse uma voz nova atras do balcão. O garoto, ainda sorrindo abobalhado, levantou a cabeça e encarou o rosto de Amanda, suado e desconfiado, o encarando. O sorriso de Dalan se manteve, no entanto seus olhos lentamente se arregalaram e suas sobrancelhas subiram, dando ao garoto um ar de maníaco. Ele abriu um pouco mais os lábios, respirando fundo enquanto o cérebro tentava entender o que estava acontecendo.

 - Amanda! - Disse ele finalmente, sem mudar a expressão. - O-o que esta fazendo aqui?

 - Estava ajudando Lyra a arrumar a sede. - Ela se esticou por cima do balcão, e Dalan recuou. - Agora responda a pergunta: Pra que tanto gaguejar? Esta com vergonha de alguma coisa?

 - Não! - Se apressou em dizer, mas o rosto corou em contraste. O garoto olhou de relance para Sophie, que encarava os dois de forma interessada. - N-não sei do que esta falando, Amanda. - Disse ele, sorrindo com os olhos fechados. A garota, por sua vez, estreitou os olhos.

 - Acho que estou com um sério problema de memória. - Disse ela lentamente. - Da última vez que nos encontramos, você era tão irritadiço e mal-humorado quanto um...

 - Amanda! - Exclamou em voz alta Dalan, ainda sorrindo, interrompendo a outra. - Me lembrei que eu... tenho que... algo pra te dar. - Ele se levantou, andando rapidamente até o outro lado do salão. A garota, bufando, o seguiu. Vestia um simples vestido branco, que a cobria até seus joelhos. - O que está fazendo? - Sibilou o rapaz quando teve certeza de que nem Lyra nem Sophie conseguiriam escutá-los.

 - O que eu estou fazendo? O que o senhor está fazendo seria a pergunta mais pertinente! - Disse ela, encostando o dedo no peito do rapaz e começando a falar rapidamente. - Gaguejando embaraçado? Sendo educadinho com todo mundo? O que houve, tem dupla personalidade? Ou tem um problema comigo?

 - Não! - Disse Dalan por entre os dentes, olhando de relance para as outras garotas, entretidas agora em uma conversa. - Escute, o que quer que você tenha entendido de mim naquele dia... esqueça. Não era o que eu vou ser.

 - Eu... não entendi. - Respondeu Amanda, inclinando a cabeça para o lado. - Aquele não era você?

 - Era, mas... - Dalan suspirou pesarosamente. Amanda já desconfiava demais. Tinha que contar para ela, mesmo que isso soasse bastante contra-produtivo. - Escute, eu preciso da confiança e apoio de todos aqui. Toda a minha ilha sumiu, e estou sozinho na busca por ela. Necessito muito do apoio de outras pessoas para encontrá-la. Só que... - Contar tudo isso para a garota, ou mesmo para qualquer um, definitivamente não estava nos planos dele, mas agora que a torneira estava aberta não podia mais fechá-la. - Eu nunca fui uma pessoa sociável. Sempre fui solitário, e tinha poucos amigos. - Admitiu ele, deixando a cabeça pender. - De alguma forma, eu consegui uma chance de começar de novo, e preciso fazer as coisas diferentes. Não é nem mais por mim, mas por minha família e todos os outros. - Ele levantou a cabeça, encarando os olhos castanhos da garota, esperando ver compreensão. - Entendeu?

 Amanda apoiou o queixo na mão, coçando-o de forma distraída enquanto pensava. - Você está querendo mudar sua personalidade apenas para ser amigo de todo mundo aqui?

 - Um pouco mais complicado do que isso, mas pode-se dizer que sim. - Ele passou a mão pela nuca, pensativo. - Todo mundo gosta de um cara educado, calmo e simpático. E é isso que eu preciso ser.

 - Isso não vai funcionar. - Disse prontamente a garota, colocando as mãos no quadril magro. - Ninguém consegue se passar por outra pessoa por tanto tempo.

 - Se você não contar pra ninguém, talvez eu consiga. - Disse o rapaz irritado por entre os dentes.

 - Ah, não precisa se preocupar com isso. - Respondeu Amanda, cruzando os braços com uma expressão tranquila e sorridente. - Você ira fazer isso sozinho. - E com essa frase, ela deu meia-volta e voltou a cozinha. Dalan se apoiou na parede, suspirando. De todas as pessoas, era justamente ela que sabia de seu segredo. Havia definitivamente cometido um grande erro.

 Uma hora depois, no entanto, ele estava distraído demais para pensar nisso. Estava caminhando pela região pobre da cidade, sozinho com exceção de Sophie ao seu lado. A garota havia vestido a boina, e usava um vestido florido, branco e laranja, para completar. Dalan tentava não olhá-la, com medo de não conseguir parar.

 Em seu bolso, haviam dois envelopes. O primeiro era o dinheiro necessário para pagar a quantidade de peixes e outros condimentos que Lyra havia pedido, e o segundo era seu pagamento pela missão que havia realizado dias atrás, quando ele perseguiu o gatinho de uma senhora por toda a cidade. A recompensa era bastante generosa, cerca de duzentos e cinquenta tens, o que dava ao garoto uma oportunidade de comprar roupas e outros bens que faltavam a ele.

 Subitamente, uma duvida irrompeu em sua mente: Sophie iria acompanhá-lo para comprar a comida. E depois? Iria acompanhá-lo em seus próprios afazeres? Isso não parecia educado de sua parte, nem divertido para ela. No entanto, ele iria apenas expulsar a garota? Deixá-la ir sozinha até a guilda? Dalan olhou para o lado, e teve certeza de que captou uma sombra andando por um beco. Não parecia seguro deixá-la sozinha, mas precisava comprar roupas urgentemente. O que faria?

 - Vamos por aqui. - Disse subitamente Sophie, puxando a manga de Dalan. Estavam caminhando aparentemente em direção à uma ponte de pedra bastante erodida, de quase dez metros de comprimento, mas a garota o levava até um caminho alternativo, que descia em direção à praia. - Há muitos assaltos naquela área.

 - Sério? - Perguntou o garoto, olhando ao redor. - Parece que estamos sozinhos.

 - Eles estão debaixo da ponte. - A garota diminuiu a voz, procurando esticar o pescoço para espiar por debaixo da construção que atravessava o canal fétido. - Pontes desertas são uma armadilha em regiões como a parte baixa de Helleon. Bandidos cercam as pessoas e roubam tudo que puderem, podendo até mesmo matá-las. - Ao ver que Dalan tentava avistar algum larápio, ela se adiantou. - E-eu morei por muitos anos nas ruas com a minha irmã. Já vi muitas vezes isso ocorrer.

 - Você o quê? - Perguntou o rapaz, se virando para Sophie, que começou imediatamente a corar. Dalan imediatamente se retratou, como se tivesse feito algo errado. - D-desculpa, mas... não me leve a mal, mas você não parece o tipo de pessoa que viveu nas ruas.

 - Tudo bem. - Respondeu a garota, encolhendo um dos ombros. - Faz algum tempo desde que entramos na Aurora. Antes disso, no entanto, vivemos quatro anos na rua... procurando... - Ela olhou para o chão, parecendo absorta em pensamentos.

 - E-essa cidade sempre foi assim? - Perguntou o rapaz, tentando manter a chama da conversa viva. - Digo, parece estranho que uma guilda tenha se firmado em uma região tão... problemática.

 - Quando eu e Julie chegamos, não era assim. - Admitiu Sophie, levantando a cabeça. - Só que... depois que o senhor Adam morreu, as coisas desandaram. A Aurora começou a encolher, e nem mesmo os bandidos da região nos respeitavam mais. - Ela ficou calada novamente, passando a mão no cabelo.

 - Ah. - Excelente, Dalan, pensou o garoto consigo mesmo. Um verdadeiro ás da conversação. Os dois caminharam mais alguns minutos em silêncio, até que chegaram à praia. A visão das ondas espirrando na areia branca fez o rapaz voltar ao passado, e foi a vez dele ficar refletindo. Assim, chegaram os dois no mercado sem trocar mais nenhuma palavra.

 O lugar, por sua vez, era barulhento e agitado. Dezenas de pessoas estavam apinhadas em duas ruas de pedra negra, que eram cercadas por barracas ocupadas por vendedores berrando e pelo cheiro variado dos alimentos. Crianças corriam gritando, e mulheres seguravam suas bolsas e suas compras. Homens tentavam pechinchar em voz alta, agitados, enquanto que o vento forte trazia os grãos de areia da praia, à qual as ruas do mercado cercavam. Dalan e Sophie se aproximaram instintivamente para não se perderem, enquanto procuravam pelo vendedor de peixes.

 Depois de dez minutos em que dois garotos que raramente se meteram em uma multidão tentavam se achar naquela baderna, eles se viram em frente ao balcão dos frutos do mar. Nele, fileiras de postas de peixe brilhavam ao sol, enquanto um homem gordo e bigodudo abanava as moscas com seu jornal. Dois baldes completavam a bancada, um cheio de tentáculos vermelhos que ainda se mexiam lentamente e outro composto do que pareciam pedras porosas, mas que Dalan sabia que eram abrigos de tatunos brancos, seres minúsculos que eram usados como tempero.

 - Você se lembra do que deveríamos comprar? - Perguntou Sophie, mas o barulho no lugar era tão grande que o garoto, mesmo ao seu lado, não conseguiu ouvir. Ela gritou para repetir sua pergunta, e imediatamente corou quando Dalan se assustou com o grito.

 - Eu acho que... - Começou a dizer o garoto, mas naquele momento algo se chocou contra suas costas, fazendo-o cair em cima da bancada. As postas de peixe voaram, e seu rosto foi afundado em um material viscoso e frio. Ele apoiou as mãos na madeira, procurando forças para se levantar, enquanto Sophie o puxava.

 - Dalan... - Disse ela em seu ouvido. - Acho que você precisa ver isso! - Quando o rapaz se levantou, a garota apontou para trás. Havia um princípio de confusão, totalmente despercebido pelo restante das pessoas no mercado. Dois homens fortes estavam cercando uma pessoa, e parecia que iriam chegar às vias de fato. Dalan inclinou o pescoço para ver quem era, e suspirou fundo ao descobrir. O destino parecia sacaneá-lo em todas as chances possíveis.

 - Sophie... fique aqui. - Disse Dalan para a garota, ignorando o vendedor que tentava arrumar sua bancada bagunçada. O rapaz foi até os dois homens, se esquivando dos transeuntes distraídos, e se entrepondo entre os valentões e sua futura vítima. - Senhores, posso saber o que está acontecendo aqui? - Perguntou ele.

 - Não é da sua conta, moleque. - Disse um deles, um homem musculoso, de pele cor de oliva e bigode cheio. Seu companheiro, de quase dois metros e pele cor de ébano, acenou em concordância. - Queremos só pegar a nossa grana dessa aí e iremos sair.

 Dalan olhou para trás enfurecido, encontrando os olhos de Amanda. A garota parecia extremamente tranquila, e quando o encarou ela fechou os olhos e soltou um sorriso sem dentes. O rapaz sentiu o sangue ferver, e voltou a se virar para os dois homens.

 - O que ela fez? - Perguntou ele, já retirando a carteira do bolso.

 - O quê, você é namorado dela agora? - Perguntou o negro. Pelos deuses, por favor não, pensou o garoto para si mesmo. - Ela nos empurrou e derrubou nossas compras. Duzentos tens jogado no lixo.

 - Imagino... - Comentou Dalan, separando o dinheiro de sua carteira. Haviam apenas duzentos e cinquenta tens ali, o que o deixou bastante melancólico. No entanto, separou o dinheiro. Entrar em uma confusão com aqueles homens no meio do mercado não parecia a atitude mais inteligente a ser tomada. Assim, o garoto os pagou e eles se afastaram, lançando olhares irritados na direção de Amanda. Algum tempo depois, foi a vez de Dalan fazer isso. - O que você pensa que está fazendo?

 - Eeeeu? - Perguntou ela de forma claramente sarcástica, colocando a mão no peito enquanto fazia cara de surpresa. - Eu não fiz nada! Que calúnia! - Naquele momento o rapaz se lembrou da conversa que tiveram na sede, e sentiu o sangue ferver.

 - Você está fazendo isso para me tirar do sério? - Perguntou por entre os dentes, se aproximando de Amanda para que ela pudesse ouvi-lo. - É esse seu plano?

 - Eu não conseguiria tirar uma pessoa tão educada e calma do sério. - Respondeu ela, estreitando os olhos e ampliando o sorriso enquanto balançava negativamente a cabeça. - Conseguiria, Dalan? - O garoto suspirou, tentando se acalmar.

 - Não, você não conseguiria. - Se forçou a dizer. Ele virou a cabeça, vendo que Sophie ainda o esperava. - Agora eu vou comprar o que vim comprar e não te ver mais pelo resto do dia. Entendeu? - Amanda não respondeu, apenas cruzou os braços e continuou a sorrir. Bufando, Dalan se virou e pisou forte até a barraca de peixes, tentando se acalmar a cada passo.

 - Aconteceu alguma coisa? - Perguntou Sophie quando ele se aproximou. O rapaz se virou para trás, mas já era impossível de localizar a outra garota. Respirou fundo.

 - Não... nada. - Ele ainda sentia raiva, portanto preferiu ficar quieto para não dizer algo que se arrependeria depois. Assim, novamente em silêncio, os dois membros da Aurora fizeram suas compras e se puseram a caminhar de volta à sede da guilda. Dalan não falava nada, tentando imaginar o que Amanda tentaria fazer com ele e como se defender disso. Sophie, por sua vez, ficava cada vez mais sombria.

 Quando finalmente adentraram no saguão da Aurora, ela ajeitou o cabelo, pondo as compras em cima do balcão que separava o aposento da cozinha. - Eu... eu vou pro meu quarto, tudo bem? Foi uma manhã cansativa.

 - Tudo bem... - Começou a dizer o garoto, até que encarou o rosto da companheira, melancólico e cabisbaixo. - Aconteceu alguma coisa? - Perguntou.

 - O quê? - Exclamou ela, corando. - N-não... nada... - Ela ajeitou novamente o cabelo, se apressando em caminhar até seu quarto. Dalan ficou onde estava, tentando entender a expressão sombria da garota. Não percebeu as portas se abrindo atrás de si, até que uma pessoa se apoiou em seu ombro.

 - Seu dia não foi tão bom assim, né campeão? - Perguntou a voz de Amanda, colada em seu ouvido. Dalan se afastou com o susto, e a garota quase caiu sem o apoio. Ela se equilibrou, esticando as mãos. - Às vezes acho que você tem algo contra mim, sabia? Quase me fez cair!

 - Não estaria errada! - Disse o rapaz, se aproximando enquanto deixava as compras no chão. - Vou te perguntar pela última vez: o que está fazendo?

 - Te mostrando o quão contra-produtivo é fingir ser alguém que você não é! - Respondeu a garota, cruzando os braços e franzindo a testa. - E não sei se reparou, mas essa sua atitude acabou de te render uma garota magoada!

 - Quem, você? - Perguntou Dalan, não entendendo a frase.

 - Não, seu retardado, Sophie! - Exclamou Amanda, fechando os punhos e batendo o pé. - Sério, qual é o seu problema de entender o que está acontecendo ao seu redor?

 - O-o que houve com Sophie? - Perguntou o rapaz, olhando para a direção em que a garota havia sumido.

 - Ela passou o dia inteiro ao seu lado e você ficou nessa de tentar fingir ser alguém tímido, sensível e blá blá blá. - Amanda suspirou, indo se sentar em uma mesa e convidando com a mão Dalan a fazer o mesmo. - Preste atenção: imagine que você está andando com alguém durante o dia inteiro. Com você, essa pessoa não fala nada e se mantém tímida. Com os outros, é falante e cheio de atitude. O que pensaria? - Ela esperou dois segundos, enquanto o rapaz pensava. - Vou responder porque você claramente não é o tipo mais esperto: Você acharia que a pessoa não gosta de ti.

 - O quê? Eu não... você nos seguiu o dia inteiro? - Perguntou o garoto, indignado.

 - Isso não vem ao caso. - Se apressou a dizer Amanda. - A questão é a seguinte, Dalan: Você não é uma pessoa tímida e sensível. - Declarou ela, se esticando na mesa. - Ao tentar ser alguém assim, você acaba se fazendo passar por mal-educado. E isso vai totalmente contra o seu lema de fazer as pessoas gostarem de você para que a guilda fique ao seu lado e blá blá blá, não é?

 - Eu... - Não havia pensado nisso, concluiu o garoto. Enquanto tentava reunir seus pensamentos, Amanda se levantou, pondo a mão em seu ombro.

 - Você é meio lerdo e essa reflexão pode demorar algumas horas, então vou te deixar sozinho. - Ela deu três passos, antes de virar para trás. - Ah, e essa sessão terapêutica não foi de graça, tudo bem? Só que você foi uma pessoa tããão legal ao pagar o que eu devia para aqueles valentões, que irei te dar uma colher de chá dessa vez. - Dalan se virou indignado, mas a garota apenas apontou os dedos indicadores para ele, estalando a língua duas vezes, antes de se virar para a cozinha.

 O rapaz suspirou, se largando na cadeira. Por mais que odiasse admitir isso, Amanda estava certa. Não sabia ser essa pessoa que tentava passar, e isso acabaria causando mais problemas para ele. Se ela estivesse correta, havia acabado de magoar Sophie, e isso poderia ser apenas o começo. No entanto, iria arriscar e manter sua atitude normal que nunca havia lhe dado amigos? Seria esse o caminho certo a se seguir.

 Sua cabeça começou a doer, e se lembrou de que não havia comprado roupas novas. Um pouco de ar pode me fazer bem, concluiu, se levantando para voltar ao centro de Helleon, tomando duplo cuidado dessa vez para não cair em nenhuma armadilha de assaltantes.

sábado, 1 de março de 2014

Aurora: Capítulo 8 - O quarteto

AURORA
CAPÍTULO 8: O QUARTETO

 Sasha levantou a lamparina acima de sua cabeça, obtendo uma visão geral do corredor à sua frente. A galeria seguia para baixo, indo muito mais fundo do que a luz do extrato de Lune conseguia alcançar. Escadas moldadas em pedra negra desciam em espiral aparentemente até o infinito, e suportes de madeira continham a força da montanha, impedindo-a de avançar sobre o túnel. Engenhoso, pensou relutantemente Sasha, levando a mão até um dos suportes. Era sem dúvida um trabalho bastante impressionante. O que fomentava algumas dúvidas em sua mente: toda aquela engenharia não podia ter sido trabalho de simples contrabandistas. Era muito grande, e aquele grupelho de arruaceiros não parecia ser capaz de manufaturar e manter algo assim. Isso deixava Sasha com duas alternativas: Ou os bandidos eram um grupo muito maior do que aparentavam, o que tornaria a missão dela muito mais difícil, ou havia algo mais sinistro ali. A garota procurou se focar na primeira alternativa, evitando pensamentos que a afastassem de sua missão. Era melhor considerar os contrabandistas como inimigos mais formidáveis do que afundar em teorias conspiratórias.

 Atrás dela, ouviu a respiração cansada de Dalan, seu companheiro forçado de missão. Seu cenho se franziu levemente, embora ela não tivesse se virado para o garoto. Se sentiu surpresa por estar decepcionada com o garoto. Talvez tivesse esperado mais dele do que admitia, principalmente ao tê-la enganado daquela forma quando entrou na guilda. No entanto, ele ainda tinha muito a que aprender para ser um membro eficiente para a Aurora. Certos ensinamentos tinham que ser passados e um bom exemplo tinha que lhe ser oferecido. Ainda assim, ele havia acabo de entrar, se lembrou enquanto levantava a lamparina para se certificar de que estavam sozinhos. Se o ensinasse, talvez Dalan se tornasse melhor do que os outros relaxados da guilda. Um membro que não faria seu pai ter vergonha do que restou da Aurora.

 Dalan, por sua vez, não pensava muito. O cansaço era tamanho que todas as suas forças mentais estavam concentradas em fazê-lo andar e não tropeçar nos inúmeros degraus. Sabia que, como usuário de Yullian, quando fosse bombardeado com adrenalina as coisas ficariam mais fáceis, mas até lá cada passo seria uma batalha. O garoto seguiu as escadas em espirais de forma letárgica, e quase se chocou com Sasha, que havia parado subitamente.

 - Shh! - Sibilou ela, levantando o punho cerrado. Dalan olhou por cima do ombro da garota, curioso. A escada em espiral continuava descendo, mas agora ela adentrava um grande área aberta. Os degraus eram agora cercados por corrimãos altos, grandes blocos de um material cinza e liso, e terminavam no piso do que aparentava ser uma caverna natural, com a superfície formada por pedras negras. Dalan e Sasha ainda estavam um pouco acima do topo da caverna, e isso os impossibilitava de analisar por completo a área, com exceção do pequeno perímetro ao redor da escada. - Está vendo aquilo? - Sibilou a garota, apontando com o indicador. Haviam dois homens vestidos de negro, iluminados por lamparinas que carregavam nas mãos, caminhando calmamente pelo aposento abaixo até sumirem do campo de visão dos garotos. - Se essa não for a base deles, com certeza é um lugar cheio de contrabandistas. Precisamos de um plano para seguir em frente e resgatar Amanda.

 - E Wieder. - Complementou Dalan, sentando em um degrau. A adrenalina ia lentamente preenchendo suas correntes sanguíneas, e o cansaço foi sumindo. - Poderíamos atacar esses dois. Parecem estar sozinhos.

 Sasha se virou para o garoto, sentindo a irritação aumentar com aquela ideia simplista. - Você consegue enxergar mais do que um palmo lá embaixo? Parecer estar sozinhos não significa nada no esquema geral. - Sibilou. Ela se apoiou no joelho, aproximando o rosto do rapaz. Era isso, concluiu a garota ao fitar a expressão desconcertada de Dalan. Precisava ensiná-lo como as coisas funcionavam.

 - Escute. - Disse ela, terrivelmente séria. Sasha desceu alguns degraus para ficar de frente ao garoto, com seus olhos azuis no mesmo nível dos castanhos dele. Dalan engoliu em seco, intimidado. - Eu vou te dizer duas coisas, e que isso fique para sempre marcado na sua mente, entendeu? - Ela não esperou resposta. - Um: Nunca, em hipótese nenhuma, iremos deixar um membro da guilda sob ameaça. Se eles estão com reféns, nossa primeira atitude deve ser salvá-los, custe o que custar. Somos a Aurora, e não deixamos ninguém para trás. - Os garotos ficaram sem piscar, enquanto Sasha dava tempo para que o outro absorvesse suas palavras. - Dois: Não estamos brincando. Isso não é um passeio no campo, para depois voltarmos à guilda e tomarmos suco no jardim. É uma missão. E como missão, eu exijo total cuidado. Você pode muito bem morrer hoje, e tudo que você sonhou na vida irá por água abaixo. Então não subestime seu inimigo. Entendeu?

 Dalan acenou com a cabeça, incapaz de demonstrar outra reação. Ela estava certa, concluiu. Havia muito em jogo ali. Sua vida, a dela, e dos reféns. Não era uma simples missão de procurar um gato na cidade. Era vida ou morte. Precisava se ligar disso.

 Sasha limpou a garganta, olhando para trás para ver se não havia nenhum contrabandista por perto. - Preste atenção. - Ela virou o corpo, tentando se esticar para obter um campo de visão mais propício. - Vamos descer no maior silêncio possível, até chegar na base da escada. Depois disso, eu irei correr e procurar os reféns enquanto você fica me dando cobertura. Assim que conseguir resgatá-los, iremos subir e defender uma área mais fácil de proteger. Entendido? - Dalan acenou de forma positiva novamente, embora sua mente estivesse insegura. Sasha deixou a lamparina em um degrau próximo e começou a descer, se agachando para que o corrimão a cobrisse. O garoto a seguiu, nervoso.

 Sem a lamparina, era muito difícil enxergar qualquer coisa. Havia uma luz natural no ambiente, amarelada e tênue que parecia vir de rachaduras no teto da caverna, mas ainda assim era pouca. Quanto mais desciam na escuridão, mais cuidado precisavam ter na hora de descer os degraus. Eles seguravam os corrimãos para ter mais segurança, mas um passo em falso iria causar algo bem pior do que uma queda. Possivelmente alertaria todos os bandidos do local, então era aconselhável andar com bastante calma. Algo que Sasha fez questão de dizer quatro vezes para Dalan durante a longa descida.

 Finalmente, os dois chegaram na base. Sasha pisou no chão, encolhendo com o som das pedras se esmagando e raspando uma nas outras. Ela recuou o pé até o degrau e inclinou lentamente a cabeça para fora do corrimão, pela lateral. Avistou o verdadeiro tamanho da caverna, um aposento gigantesco em comprimento, embora a altura fosse um tanto baixa. Pilares naturais se erguiam nas bordas, deixando o centro vazio. Havia uma superfície elevada no fim, iluminada por doze lamparinas de Lune enfileiradas, e ali estavam Amanda e Wieder, amarrados de costas um pro outro. O problema era que haviam diversos contrabandistas ao redor, aparentemente em discussão sobre o que fazer com os reféns. Sasha contou quinze, mas a caverna estava tão escura que provavelmente haviam outros nas sombras. Recolheu a cabeça e se virou para Dalan.

 - Eu vou agora. Lembre-se da cobertura. - E, antes que o garoto pudesse dizer algo, ela saiu da escada e adentrou as sombras. Dalan ficou observando a plataforma elevada, esperando por qualquer sinal da companheira.

 Sasha, por sua vez, se aproximava rapidamente dos reféns. Precisaria apanhá-los de uma vez, e sair dali antes que os ladrões entendessem o que estava acontecendo. Preferiu ir pelas sombras, se locomovendo na escuridão quase que absoluta enquanto esperava não fazer tanto barulho. Estou quase lá, pensou a garota, a menos de dez metros da plataforma. Quase lá.

 Naquele momento, algo agarrou seu pé, e ela imediatamente tombou. Primeiramente não entendeu o que estava acontecendo, apenas se tocou quando o chão já estava muito próximo. Estava tão rápida que rolou vários metros incontrolavelmente, sofrendo cortes e outros ferimentos pelas dezenas de pedras afiadas, que relutantemente cessaram seu movimento. Sasha ficou inerte por alguns segundos, captando as inúmeras dores que brotavam de seu corpo. De repente, sentiu seus braços sendo levantados, e o rosto sair do chão. Um de seus olhos estava encharcado de sangue que jorrava da testa, então ela abriu o outro. Vários homens se postavam diante dela em semi-círculo, enquanto apenas um se encontrava diretamente à sua frente.

 - Olha só quem caiu na rede. - Disse o homem, aparentemente o líder daquele bando. Ele era alto, com cabelos vermelhos que desciam compridos por debaixo do capuz negro que usava. O contrabandista agarrou a manga de sua roupa, rasgando o tecido. - Ah, quem diria. Mais uma membro de guilda. - Sasha tentou se mover, mas mãos fortes seguravam seus braços. Foi recompensada com um forte soco em seu rosto. Sua cabeça tombou para o lado, cuspindo sangue.

 - Lucius, aqui está. - Disse uma voz masculina, e a garota levantou minimamente a cabeça para enxergar o que estava acontecendo. Lucius, o líder, segurava uma corda fina e transparente nas mãos. Sasha sentiu o rosto ficar vermelho. Era aquilo que a havia capturado?

 - Acho que podemos começar uma série de perguntas, não? - Perguntou Lucius. Ele tinha uma voz suave, que contrastava com sua brutalidade. - De que guilda você é?

 - Vá para o inferno. - Conseguiu dizer a garota. Não iria delatar a Aurora, disso tinha certeza.

 - Não conheço. - Declarou Lucius, levantando as pálpebras. Ele desferiu mais um soco na garota, desta vez no estômago. Sasha tossiu, se curvando para frente. - Eu não tenho tempo para brincadeiras, menina. Conte de onde veio e poderá manter os olhos. - Ele sacou uma faca do bolso, a aproximando do rosto da garota. - De. Que. Guilda. Você. É?

 - Vá... - Começou a dizer Sasha, mas naquela hora ouviu sons de contato atrás de si, e as mãos que a prendiam sumiram. Sem nem pestanejar, ela usou uma das mãos livres para segurar a faca de Lucius, puxando-o para baixo, e em seguida com a outra soltou um forte soco em seu atônito rosto. A garota deu um passo para trás, sentindo alguém ao seu lado. - Havia esquecido da cobertura. Você demorou. - Proferiu.

 - Vocês estavam muito longe. - Disse Dalan, fechando as mãos em punhos. - E de nada.

 - Não há tempo para isso. Os reféns! - Disse ela, disparando para as duas pessoas amarradas enquanto limpava o sangue do rosto. Gritos ferozes e raivosos se proliferaram pela caverna, enquanto os contrabandistas se recuperavam do estupor. Sasha se aproximou de Amanda, que assistia tudo com os olhos arregalados, e começou a desamarrar as cordas que a prendiam. Dalan chegou na plataforma elevada logo em seguida, derrubando um dos pilares de madeira. A lamparina que ficava em cima se chocou contra o chão, despejando todo o seu conteúdo nas pedras. O extrato de Lune brilhou, iluminando com sua luz branca as duas dúzias de ladrões que corriam na direção dos garotos.

 - Vocês três! - Gritou Sasha, terminando de soltar os reféns. - Mantenham o terreno e batam com força! - Um dos ladrões mais apressados pulou na plataforma, e uma pedra voou na direção de sua cabeça, fazendo-o cair. Amanda se agachou para pegar mais duas, e as jogou contra os contrabandistas, que agora invadiam em peso a superfície elevada.

 - Preciso da minha pulseira, Dalan! - Gritou Wieder, pulando para trás para desviar do chute de um homem de cabelos negros Amanda jogou mais uma pedra no rosto do bandido, e o anão o finalizou com um soco no estômago. - Vou ser uma inutilidade sem ela!

 - Vou pensar... no seu caso... - Grunhiu o garoto, tentando se livrar de um bandido que o segurava pelo pescoço. Sasha surgiu e socou o ofensor na nuca, mas agora era ela que era atacada por mais dois homens. Dalan pulou por cima dela, chutando um adversário na boca. Amanda, por sua vez, se afastava do centro da batalha, segurando várias pedras contra si com o braço esquerdo. Ela jogava os projéteis improvisados, acelerando o movimento com seus poderes de vento. O problema era acertá-los.

 Sasha se agachou para desviar de uma das pedras jogadas pela companheira, chutando um homem no baixo ventre. Ele caiu gritando fino, e a garota se levantou para socar seu rosto. Em seguida sentiu seu braço ser puxado para trás, mas Wieder apareceu para golpear o adversário com uma rocha.

 - Wieder, onde estão suas coisas? - Perguntou Dalan, se jogando em cima de um homem que corria na direção de Amanda. Eles caíram no chão, e o garoto deu uma cotovelada nos pulmões do contrabandista, fazendo-o arfar.

 - Do outro lado! - Gritou o anão, em um raro momento livre. O garoto olhou na direção em que os dedos do companheiros estavam apontando, e avistou a trouxa de roupas que Wieder havia pego antes de caírem. Ele imediatamente disparou em direção ao saco, mas dois contrabandistas se colocaram em seu caminho, abrindo os braços e grunhindo.

 Uma pedra voou da escuridão e acertou a cabeça de um dos bandidos, fazendo-o desmaiar antes de cair. Dalan aproveitou a momentânea surpresa do outro para se impelir contra um dos pilares de madeira. O objeto caiu facilmente, e a lamparina em sua ponta acertou a cabeça do ladrão. O extrato de Lune explodiu para todos os lados, iluminando a área em uma profusão de luz branca. O garoto passou pelo homem que ainda estava caindo e agarrou a trouxa de roupas, se sentindo um pouco mais calmo.

 Infelizmente, algo se chocou contra suas pernas, fazendo-o cair no chão. Dalan se virou para cima, bem a tempo de ver uma adaga indo em direção ao seu pescoço. Ele instintivamente agarrou a mão que o atacava, vendo agora que era um homem de pele morena que tentava matá-lo. - Wieder, pega! - Gritou o rapaz, jogando a trouxa de roupas para longe para se concentrar na luta.

 A bolsa voou, e Amanda usou seus poderes de vento para desviá-la em sua direção. À sua esquerda, Sasha impedia que um contrabandista atacasse a outra garota, socando suas costelas.

 - A pulseira está aí dentro! - Gritou Wieder, correndo de dois bandidos. Amanda abriu a trouxa, desviando o olhar com cara de nojo enquanto vasculhava seu conteúdo.

 - Eca, eca, eca, eca, ECA! - Gritou, remexendo nas roupas sujas. Ela finalmente achou o objeto circular, arrancando-o das roupas com violência e se afastando de costas da bolsa enquanto balançava freneticamente as mãos e saltitava nas pontas dos pés, fazendo uma careta. Do outro lado, Dalan conseguia dar uma joelhada no homem que brandia a faca em sua direção, jogando-o para longe em seguida.

 - Jogue isso para Wieder, Amanda! - Gritou ele, correndo de volta para o centro da confusão. A garota jogou o objeto para o anão com agitação, mas Lucius surgiu da escuridão, chutando o ornamento para longe.

 - Filho da -- Tentou gritar Wieder, mas os homens que o perseguiam se jogaram contra ele, derrubando-o no chão. Dalan correu e chutou um deles no rosto, enquanto o anão se desvencilhava do segundo. Enquanto isso a pulseira, de um amarelo sujo porém brilhante, rolava pelas pedras da caverna. Sasha se adiantou e agarrou-a, mas um contrabandista estendeu o braço em sua direção, acertando seu pescoço e a fazendo cair para trás.

 - Pega! - Gritou ela, jogando novamente o ornamento para longe. Ela mirou na direção do anão, mas Lucius novamente surgiu, se colocando no caminho da pulseira.

 - Não! - Gritou Dalan, muito longe para impedir. Ele olhou para frente, desesperado, e avistou Amanda na direção oposta, também distante para alcançar a surpresa. Um plano nasceu instantaneamente na cabeça do garoto, que esticou a mão na direção do objeto. - Amanda, vento! - Gritou ele, e a garota pareceu entender o que ele queria.

 O rapaz se concentrou e disparou uma camada de gelo, expandindo-a de forma a cobrir a distância entre o ornamento e Wieder, que aguardava sem reação. A pulseira rolou pela superfície gelada, adquirindo um movimento mais uniforme. Amanda, por sua vez, impeliu-a com uma lufada de ar, aumentando sua velocidade em níveis consideráveis. O objeto disparou, ultrapassando um atônito Lucius e chegando em Wieder.

 - Finalmente. - Soltou o anão, colocando a pulseira em seu pulso direito. Um brilho pálido e amarelo envolveu sua mão, cobrindo seu corpo por inteiro. A luz aumentou de intensidade, expandindo sua área em um centésimo de segundo. Gás cinzento circulou a região, e uma forma gigante se destacou. Era composta por centenas de pedras de cor amarela suja, que se uniam em um modelo humanoide, de quase três metros. As mãos eram desproporcionalmente grandes, e os pés pareciam botas, sem dedos e maiores do que o resto da perna. O rosto era quadrado, com a boca formada por uma linha negra demarcada por pontas afiadas, e os olhos eram pequenos e de um vermelho forte. Os contrabandistas e os membros da Aurora pararam, atônitos pelo golem de ronatto que se encontrava diante deles. - Oh. Era melhor do que eu sonhava. - Disse a voz de Wieder pela boca da criatura, olhando para suas mãos. -  Beeem melhor do que eu sonhava.

 - R-recuar! - Gritou a voz de Lucius, tropeçando para trás. - S-salvem-se quem puder!

 - Dalan, Amanda! - Disse Sasha, derrubando um contrabandista apavorado. - Precisamos impedir que eles fujam!

 - Deixem comigo! - Gritou Wieder, correndo de forma desengonçada atrás dos ladrões. Eles, amedrontados e distraídos, corriam em bando, enquanto o restante da Aurora capturava os desgarrados. O anão se aproximava rapidamente do grupo, que gritava. - Pernas longas são... estranhas, não? - Perguntando ele, parecendo sorrir. - Talvez eu precise de um tempo para... ugh!

 O golem havia tropeçado sozinho, esticando os braços para frente. Por um acaso feliz do destino, ele caiu em cima dos contrabandistas, que soltaram um último grito de terror que ainda ressoava pela caverna no momento em que eles foram esmagados. Wieder tentou se levantar, mas caiu novamente.

 - Oh, céus. - Resmungou Sasha, capturando o último dos ladrões enquanto Dalan e Amanda corriam para ajudar o anão. Teria um longo trabalho com aquele ali, pensou, mas já estava mais calma. Olhou para os lados, conferindo se não havia mais nenhum desgarrado. Foi apenas quando teve certeza que relaxou, sentando nas pedras. Sua missão havia acabado.

 Horas depois, estavam na carroça que os levaria de volta a Helleon. Sasha estava com o comprovante de missão em suas mãos, adquirido ao chamar as autoridades até a caverna dos contrabandistas para recolher os bandidos. Wieder havia recolhido seus pertences, e girava a recém-adquirida pulseira em suas mãos. Amanda dormia profundamente, se esparramando por cima de quatro bancos, e Dalan tentava acompanhá-la, sentado e com os olhos fechados. Enquanto seu corpo relutava adormecer, conseguiu ouvir Sasha conversando com Wieder.

 - Não ache que irá simplesmente entrar na Aurora desse jeito fácil. - Disse a voz séria da garota. - Ainda teremos muito o que discutir sobre você e sua estranha vontade de se afastar do resto de sua raça.

 - Imagino que eu vá discutir isso com a líder de sua guilda. - Bocejou o anão. - E não com você. - Dalan, mesmo de olhos fechados, conseguia sentir que o rosto de Sasha havia ficado vermelho.

- Vai aprender que não é tão simples assim. - Sibilou a garota. - Só estou te deixando ir para a sede por causa de sua pulseira. Portanto, quando descobrirmos que você não está nos espionando ou algo similar, é bom que treine. A Aurora não tem mais espaço para pesos mortos.

 - Pode anotar isso. - Respondeu Wieder. O silêncio se seguiu à conversa, interrompido apenas pelos costumeiros barulhos da carroça e dos animais silvestres do lado de fora. Dalan se ajeitou na cadeira, exausto demais para se mover novamente. E com isso, finalmente adormeceu.