quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Aurora: Capítulo 6 - Coletivismo

AURORA
CAPÍTULO 6: COLETIVISMO

 - Definitivamente, esse não é um bom plano. - Disse mais uma vez Dalan, caminhando preocupado pelas galerias úmidas e rochosas do subterrâneo de Vertreit, iluminadas parcamente por tochas penduradas em suportes metálicos nas paredes. Amanda, andando bem mais leve ao seu lado, retrucou:

 - Eu não me lembro de você ter vindo com um melhor do que esse! - O que, para irritação do garoto, era verdade. Vertreit possuía duas áreas que funcionavam sob jurisdições diferentes, a humana e a anã. Na fuga dos policiais, os dois membros da Aurora haviam caído na área dos seres menores. Sair dali seria um enorme problema, visto que os anões eram conhecidos por serem bastante zelosos com suas terras, tornando a passagem entre as duas áreas uma enorme burocracia. E, para guardar essa burocracia, haviam diversos guardas, que seriam muito pouco amigáveis com os ilegais Amanda e Dalan. Não podiam nem mesmo voltar pelo rio, graças à força da correnteza jogando-os para o lado oposto. Estavam presos em terras anãs. E não eram bem-vindos.

 Dalan parou em uma esquina, de ouvidos atentos à qualquer aproximação. Amanda o acompanhou, chapinhando diversas poças d'água no caminho e fazendo uma quantidade de barulho tão tremenda que o garoto fechou os olhos e aguardou pacientemente uma multidão de guardas cair em cima deles. Como nada aconteceu, respirou um pouco aliviado, antes de se virar nervoso para a outra.

 - Você pode também gritar. Acho que seria mais eficiente pra dizer nossa posição. - Sibilou ele por entre os dentes, pontuando cada palavra com um aceno de cabeça irônico. Amanda, por sua vez, apenas sorriu calmamente.

 - Dalan, eu te conheço faz pouco tempo, mas... - Ela colocou a mão no ombro do rapaz, adotando uma expressão condescendente. - Você se estressa muito fácil. Tem que aprender a deixar a vida te levar, e só se preocupar quando as coisas realmente passam do limite. - Disse balançando a mão livre. E com isso ela seguiu em frente, fazendo ainda mais barulho do que antes.

 O garoto parou, fechou os olhos e contou até dez, esperando a fúria sair de dentro de si. Não sabia se era por causa do cansaço ou da presença caótica de Amanda, mas todo segundo que passava com ela o deixava mais perto de um ataque cardíaco. No momento em que a contagem cessou e ele tornou a abrir os olhos, no entanto, a garota derrubou uma das tochas, produzindo um imenso barulho metálico pelo suporte caído. Enquanto ela tentava rapidamente colocar o objeto no lugar, Dalan fez uma afirmação mental: definitivamente, o problema era Amanda. E recomeçou sua contagem.

 Alguns minutos de caminhada depois, em que o rapaz agradeceu imensamente por não terem sido descobertos, alcançaram seu objetivo. Um pequeno posto policial, construído no próprio leito da rocha, formado por uma pequena bancada de pedras de cor cinza e iluminado por duas lamparinas. Amanda e Dalan tomaram uma distância razoável do lugar, protegido por dois anões com roupas longas de tom azul-claro, e olharam um para o outro com alarmismo.

 - Bem, acho que você já sabe o que fazer! - Disse a garota, animada. Ela começou a andar na direção oposta, cantarolando consigo mesma. Dalan revirou os olhos e respirou fundo, esperando até Amanda estar praticamente fora de seu campo visual para admitir em voz relativamente alta:

 - Amanda... esse plano nunca vai funcionar. - Ele colocou as mãos nos bolsos e deixou as costas baterem na rocha fria, apoiando a cabeça na parede em seguida. - Eu não sou um bom mentiroso. Nunca vou convencê-los.

 - Então apenas diga a verdade, oras. - Respondeu a voz da garota, sem preocupação no tom. Passos apressados se seguiram, diminuindo até sumirem por completo. Dalan engoliu em seco, juntando cada fibra do seu ser para continuar. Bem, é melhor aparecer agora do que ser capturado depois, concluiu, dobrando a esquina enquanto inflava o peito.

 Os policiais anões imediatamente gritaram e andaram rapidamente em sua direção, pegando lanças de madeira penduradas na parede. Eles o cercaram rapidamente, apontando as armas para o garoto. Dalan soltou o ar pela boca, levantando lentamente as mãos.

 - P-policiais, meu nome é Dalan Glacius, e sou um membro de guilda. - Sua voz começou hesitante, mas foi adquirindo força com o passar da frase. Afinal, ele não estava dizendo nada além da verdade. Era um membro oficial, os documentos haviam apenas atrasado. Os guardas se entreolharam, resmungando algumas palavras no dialeto anão, antes de se virar novamente para o rapaz.

 - Prove. - Disse desconfiadamente o primeiro, um anão de um metro e trinta com uma barba ruiva que descia até seu umbigo. Dalan lentamente levantou a manga da camisa, revelando a Marca da Aurora. Os guardas baixaram minimamente suas armas.

 - Que guilda é essa? - Perguntou o segundo policial, medindo um metro e quarenta e possuindo uma barba relativamente curta, um véu negro que cobria apenas seu pescoço.

 - Aurora. - Respondeu o rapaz. - Somos uma guilda pequena em Helleon, uma cidade ao sul daqui, colada ao mar de Cellintrum. - Ele deu um passo nervoso para a frente, mas para o seu alívio os guardas não se movimentaram. - Um membro de sua comunidade solicitou a entrada em minha guilda. Seu nome é Wieder. Gostaria de realizar seu desejo.

 - Alto lá. - Ordenou o anão ruivo, brandindo a arma com firmeza. - Se é de uma guilda registrada, qual é o motivo de estar aqui sozinho? Nenhum membro de outra espécie pode entrar em nossas galerias sem permissão e acompanhamento de um oficial. - Ele estocou o ar com a arma, ameaçadoramente. - Onde ele está?

 - Ou sua certidão de entrada. - Disparou o segundo guarda, cerrando os olhos em desconfiança. - Ande, garoto. Temos permissão para matar qualquer invasor da superfície, não se esqueça.

 Dalan engoliu em seco, sentindo uma gota de suor solitária descer pela sua têmpora. Mentir definitivamente não era uma opção, considerou após recordar de sua péssima lábia. Restava apenas procurar a verdade certa para dizer. - Eu estava com um outro indivíduo. - Falou, finalmente. Sentiu as armas se aproximarem por centímetros, e correu para complementar: - Tenho razões de acreditar que ela se encontrou com o cliente de minha guilda, por isso peço para encontrá-lo.

 - Por acaso é maluco, humano? - Respondeu friamente o anão ruivo. - Acha mesmo que deixaríamos um invasor entrar em nossas prisões? - Ele se aproximou, estocando a lança perigosamente perto do abdômen de Dalan. - Hein? Acha que nosso povo é imbecil?

 - Não. - Se apressou em dizer o garoto, engolindo em seco. Agora sua testa inteira estava molhada, e sua coração palpitava com tamanha pressa que parecia um beija-flor. - S-se acha que sou um invasor, me diga: Por quê eu iria me entregar a vocês dessa forma? Vim até aqui por vontade própria! - O que era em partes verdade. Ele poderia seguir Amanda até os confins do subterrâneo anão.

 - Não disse que veio com mais alguém? - Perguntou o segundo guarda. - Isso me parece um truque para nos distrair enquanto sua cúmplice adentra nossos salões e rouba nossas riquezas! - Os dois começaram a se aproximar com suas lanças estendidas. Dalan recuou, com a mente a mil, pensando em alguma forma de escapar daquela situação. E, como um sinal divino, ela veio.

 - Eu sou um membro de guilda! - Disparou em voz alta, fazendo os oficiais pararem. - A Aurora é registrada e de acordo com a lei. Minha Marca é real, podem provar! Que tipo de pessoa eu seria, realizando uma ação criminosa e lhes dando de bandeja minha afiliação e endereço de meus companheiros? - O garoto percebeu a brevíssima entreolhada entre os policiais, e notou que estava em vantagem. Precisava aproveitá-la. - Pela Lei de Apoio Auxiliar, assinada por todos os representantes da Aliança, os oficiais devem cooperar com qualquer membro de guilda que procurar ajuda, mediante o fato de que o assunto em questão esteja na jurisdição deles. Então, senhores... - Dalan cruzou os braços, encarando os dois com a testa franzida. - Posso ver o cidadão que pediu para entrar na Aurora? Ou devo falar com alguém superior sobre o comportamento de vocês?

 Os dois guardas ficaram em silêncio, aparentemente considerando suas chances e seus direitos. Finalmente, o ruivo se virou para o companheiro. - Geraldo. Por favor vá aos andares inferiores e comunique que temos um fugitivo no subterrâneo. Irei levar esse aqui à detenção para que possa falar com quem deseja. - Dalan por um instante pensou em se manifestar, buscando proteger Amanda. Fora burro em confessar que ela estava ali. No entanto, não conseguiu pensar em nenhuma desculpa convincente, e ficou observando Geraldo se afastar, inutilmente. - Apenas tome cuidado! - Gritou o ruivo. - Estamos naquela época do ano, lembra? - O guarda de barba negra apenas acenou a mão em resposta. - Vamos, humano. - Chamou o primeiro guarda, puxando a barra da camisa de Dalan. - Temos uma longa caminhada pela frente.

Os dois seguiram andando, passando por diversos corredores de pedra negra, cada vez mais iluminados pelas tochas que decoravam as paredes. O guarda resmungava consigo mesmo em seu próprio dialeto, mas Dalan não prestava atenção, preferindo se preocupar com Amanda. Mesmo tirando-o do sério, ela agora estava sendo perseguida pela polícia anã em ambiente hostil. O garoto precisava libertar Wieder e correr para resgatá-la.

 - Chegamos. - Disse o anão ruivo, e Dalan saiu de seus pensamentos, estancando em resposta. Estavam em frente a um edifício construído no leito da rocha, composta de um material cinza e fosco. As paredes continham barras, e eram colocadas propositalmente altas em seus respectivos andares. Uma porta de madeira negra marcava a entrada, e o guarda se adiantou para abri-la, se virando para o humano. - No momento ele está em detenção provisória até que possamos julgá-lo. Você tem... o direito de conversar com ele. - A última frase foi proferida com uma voz que demonstrava insatisfação, mas o guarda deixou o garoto entrar sem mais empecilhos.

 Havia apenas um policial ali dentro, um anão de cabelos dourados e encaracolados que lia calmamente um livro, sentando em sua escrivaninha de madeira. Ele levantou os olhos para fitar Dalan, mas voltou à sua leitura assim que enxergou o guarda ruivo. Os dois seguiram adiante, adentrando nos corredores onde ficavam as celas. Aqui é bem vazio, disse o garoto para si mesmo, mas não se surpreendeu. Os anões tinham um forte senso coletivo entre eles, sem incentivos à individualidade e motivando o trabalho árduo. A educação necessária para que essa forma de sociedade funcionasse diminuía muito os crimes. Enquanto apreciava silenciosamente esse sistema, conhecido como coletivismo anão, ele percebeu algo estranho. Pelo coletivismo, um anão geralmente não se unia à guildas isoladas de sua própria espécie. Era algo quase que impensável. O que Wieder estava querendo? Dalan apertou o passo, curioso pela resposta.

 Finalmente chegou na cela, um quarto apertado de cinco metros quadrados, composta de uma cama, um banco e uma latrina cavada no chão. Havia um anão sentado no colchão, encarando cabisbaixo o piso. Ele parecia ter um metro e quarenta, com uma pele cor de bronze e uma grande barba castanha e trançada para formar um cone invertido, que descia até a cintura. Seu nariz grande e pontudo marcava sua face, quase que escondendo os olhos apertados e negros. Estava relativamente limpo, vestido com o uniforme dos presos, um manto longo e um capuz, ambos negros como o breu. O guarda abriu a porta da cela com chaves barulhentas e se afastou, deixando o garoto às sós com o prisioneiro.

 - Wieder? - Perguntou Dalan, entrando no aposento. O anão acenou positivamente com a cabeça, levantando a cabeça para encará-lo com seus pequenos olhos.

 - Wieder Henf. - Disse ele, com a voz um tanto quanto aguda para a espécie. - E você?

 - Meu nome é Dalan Glacius. - Respondeu o garoto, estendendo a mão. - Sou um membro da Aurora.

 Wieder soltou um suspiro aliviado e se levantou, caminhando até o humano. Os dois apertaram as mãos de forma firme, e o rapaz notou o braço imensamente peludo do anão. - Onde está a garota que havia me encontrado da primeira vez? - Perguntou o menor. O garoto se esticou para trás e olhou para fora da cela, temendo estar sendo espionado, mas o guarda ruivo estava muito longe. Se aproximou do outro, se ajoelhando.

 - Amanda está se escondendo até que eu consiga resgatá-lo. - Confessou o garoto, preocupado. - Assim que tirarmos você daqui, iremos atrás dela para sairmos todos desse lugar.

 - Entendo. - Respondeu Wieder, girando os olhos para cima enquanto pensava, coçando distraidamente a barba. - Bem, imagino que possamos contornar tudo isso. - Ele encarou Dalan, continuando a falar com uma voz monótona, como se estivesse explicando o óbvio. - Há um oficial de entrada que é um fã tão imbecil do coletivismo anão que desconfio que ele se corte todas as vezes que esbarra em um membro da espécie. Basta eu mentir dizendo que tudo havia sido um mal-entendido e confessando meu amor à raça que ele vai estender o tapete vermelho para que eu não machuquemos nossos pés nas pedras. Vai ser simples. Tão simples quanto convencer o babaca ali fora.

 Dalan arregalou os olhos e inclinou a cabeça um pouco para trás, surpreso com o jeito que o anão falava do coletivismo de sua raça. - Você... acha que isso vai funcionar?

 - Claro. - Disse Wieder, soltando um sorriso tranquilo. - É mais fácil enganar o sistema do que você acha, garoto. Especialmente um tão ignóbil quanto esse. - Ele saiu da cela assobiando, mas Dalan continuou onde estava. Não gostava daquela torção de regras que o ser menor estava sugerindo, mas preferiu não falar nada por enquanto. Com uma breve careta, seguiu o anão.

 Quando o encontrou novamente, Wieder estava conversando com o policial de cabelos dourados. - Quer dizer, Glober está contratando membros de guilda humanas para procurar bandidos em nossos próprios terrenos. - Disse o guarda, esparramado em sua cadeira. - Humanas! Acredita? - Ele olhou de relance para Dalan, exalando o preconceito de seus globos oculares.

 - Concordo. É um absurdo. - Wieder encolhia os ombros e sorria tranquilamente para o oficial. - E é por isso que estou indo para uma dessas guildas, Thorus. Preciso proteger os segredos de nossa raça, e para isso farei o sacrifício de me afastar de Vertreit. - Ele se apoiou na mesa, encarando o guarda. - Não podemos deixar que outras espécies tenham acesso livre em nossas terras e comecem a agir impunemente, sem dar nenhuma explicação à nós! - Thorus parecia concordar com ele, e Wieder ampliou o sorriso. - Entende o que quero dizer?

 - E-entendo. - Respondeu Thorus, mexendo em alguns papéis em sua mesa. - Não se preocupe, Wieder. Não há nenhuma papelada sua por enquanto, então posso liberá-lo de imediato. Apenas tente ficar fora de confusão da próxima vez.

 - Pode ter certeza. - O anão de cabelos castanhos se virou para o guarda ruivo, diminuindo o sorriso. - E quanto a você, Olik? Conheci seu irmão Olaf. Comi em sua casa. Você sabe, do fundo de seu coração, que eu jamais me envolveria com aquela criminosa.

 - E aquele ali? - Disparou Olik, indicando com a cabeça Dalan.

 - Ele também foi enganado. Sabe como garotas bonitas podem nublar a mente dos homens. - O rapaz corou, mas o guarda ruivo apenas riu.

 - Apenas dos homens, Wieder? Soube de histórias suas pelo meu irmão. - Ele descruzou os braços, se aproximando do ex-prisioneiro. - Inclusive sei de seus quase duzentos anos de serviço impecável. Sua dedicação ao nosso povo é admirável.

 Pela primeira vez desde que o encontrou, Dalan viu o rosto de Wieder perder a animação, ficando sombrio por alguns instantes. No entanto, uma piscada de olhos depois, lá estava ele sorrindo. - Não fale isso. Me faz parecer um velho.

 - Não foi minha intenção. - O tranquilizou Olif, estendendo as mãos. - Apenas me prometa que não irá se encontrar com aquela foragida. Já temos problemas demais do jeito que estão. É aquela época do ano em que as coisas ficam agitadas.

 - Não se preocupe. - Foi a vez de Wieder acalmar o outro. - Irei apenas pegar minhas coisas em casa. - Com isso ele pegou um saco de roupas que Thorus havia acabado de separar e começou a andar em direção à saída, com Dalan se apressando para segui-lo. Os dois outros anões ficaram mais carrancudos quando o humano passou por eles, mas segundos depois ele estava do lado de fora, seguindo um apressado anão pelas galerias subterrâneas de Vertreit.

 - Cidadãos exemplares. São sempre os mais fáceis de se dobrar nesse sistema falho. - Ele riu, o que não foi compartilhado pelo rapaz. Dalan pensou em argumentar, mas havia muitas perguntas em sua cabeça.

 - O que aconteceu com você e Amanda antes de eu encontrá-lo? - Perguntou o garoto, seguindo o anão por uma esquina e quase derrapando com o chão úmido. - Digo, vocês dois estavam sendo perseguidos pelos policiais, não foi? - O sistema não parecia tão falho agora, concluiu Dalan com um riso oculto nas sombras. Wieder parou por um instante para se localizar, e logo continuou a andar.

 - A garota fez um pouco mais de barulho do que era necessário. - No mesmo instante, o rapaz assumiu essa situação como bastante provável. - Eu queria vir sozinho, mas ela insistiu em me acompanhar. O problema era que as coisas ficariam muito mais complicadas se ela fosse presa aqui embaixo, então quando chamamos atenção o suficiente mandei-a correr de volta à superfície antes dos guardas chegarem. Imagino que tenha arrumado alguns problemas lá em cima também.

 - E o que vieram fazer aqui embaixo? - Estavam agora em um corredor tão baixo que o humano teve que se agacha para passar, mas o anão continuou como se nada tivesse acontecido. - Só vieram pegar suas coisas? - Mesmo no escuro, Dalan conseguiu ver o sorriso no rosto de Wieder.

 - Bem... minhas coisas e uma outra que não é exatamente minha. Por enquanto. - O garoto sentiu o rosto ferver.

 - Estavam indo roubar alguém? - Sibilou, fechando os punhos com tanta força que as unhas marcaram a palma.

 - Ainda estamos. - Respondeu casualmente Wieder. Dalan acabou estancando o movimento perto de uma tocha, se recusando a continuar.

 - Não me surpreende que Amanda quis segui-lo. Como pode fazer isso? - Disparou para o anão.

 Wieder se virou calmamente, e seu rosto impassível brilhou na iluminação bruxuleante das chamas. - Não, ela me seguiu porque já havia me considerado um membro da guilda, e não quis me deixar sozinho. Agora, sobre o "roubo". - Ele levantou as mãos e dobrou o dedo indicador e o médio sarcasticamente. - Não é um crime. Veja, pelo querido e sagrado coletivismo anão... - Sua voz pingava zombaria, percebeu Dalan. - Todo e qualquer objeto manufaturado por um membro da gloriosa espécie anã deve ser entregue ao representante local, para que ele possa tirar o maior proveito do objeto e assim preservar a ascensão de nossa raça. A questão é que a pulseira que procuro foi escondida das autoridades, claramente por ser um artefato muito impressionante para ser usado como moeda de troca pelos representantes dessa cidade. Um crime terrível, se não me engano. Portanto, quando eu... bem... pegar emprestado o item em si, não haverá ninguém a se queixar. Entende?

 Não, Dalan não entendia. - Não acredito que esteja torcendo as leis dessa forma. O coletivismo anão é uma das formas de governo mais admiradas de todas, assim como a república élfica. Deveria ter orgulho do que fez sua raça, e não tentar denegrir as bases da coisa toda para seu próprio proveito.

 - Primeiro de tudo. - Disse Wieder com a voz séria, embora houvesse um pequeno sorriso em seu rosto. - Elfos não conseguiriam ser admirados nem que pintassem todas as suas mulheres nuas e distribuíssem os quadros para os quatro cantos do planeta. Segundo. - Ele estendeu os dois dedos da mão. - Se acha que nossos sistema é tão perfeito assim, é porque claramente não vive nele. É uma lavagem cerebral, acredite, sem limites. Martelada na cabeça das crianças até terem idade o suficiente para martelar alguma coisa, e depois mais ainda. Aqueles que, por um acaso dos deuses, conseguem libertar sua mente, são enviados à frente de batalha para morrer na Fronteira e honrar sua raça. - O anão parou, dando tempo para o outro absorver suas palavras. - As coisas não são como parecem.

 - Ainda assim, não há motivos para fazer o que está fazendo. - Disparou o garoto, preferindo não acreditar no outro. - Dar um "jeitinho"... - Foi a vez dele dobrar os dedos das mãos. - ...nas regras e manipulá-las é tão ruim quanto a manipulação que você afirma sofrer.

 - Muito bem, garoto. - Ele cruzou os braços, e não havia mais um sorriso em seus lábios. - Me diga, pela lei humana, há um sorteio para definir os que serão mandados à Fronteira, e dizem que é muito mais provável você ser escolhido se tiver duas gotas de yullian em seu sangue. Se você entrou numa guilda, estatisticamente você tem yullian. Agora me diga, senhor certinho: - Ele franziu a testa, semi-cerrando os olhos. - Alguém mandou uma carta de recrutamento para sua casa?

 O rosto de Dalan, se possível, ficou ainda mais vermelho. Esperava esconder essa vergonha pelo resto de sua vida, mas o anão era mais perspicaz do que parecia. Mordeu a língua por alguns instantes. - Sim. - Disse finalmente por entre os dentes.

 - Não vejo você lutando por nossas vidas na Fronteira. - Acrescentou Wieder, levantando as sobrancelhas e voltando com o sorriso no canto da boca. - Me diga, você cometeu o terrível crime moral de torcer as regras?

 O garoto inspirou fundo, deixando o ar escapar lentamente pelo seu nariz. Não conseguiria mentir sem que Wieder percebesse. - Meu pai era um comerciante um pouco influente. Ele... aconselhou aos oficiais que eu não precisava ir.

 - Aconselhou com algumas maços de ten, não é? - Ele riu e se virou, continuando a andar. - Acredite, eu adoraria discutir ética com você, garoto, mas temos algo mais importante para fazer. - Dalan o seguiu, tentando controlar sua raiva. O outro tinha razão, não adiantava discutir isso ali. Mas que iriam conversar sobre o assunto, com certeza iriam.

 Andaram por mais longos minutos, em silêncio e sempre descendo longas escadarias de pedra. O ambiente começava a ficar mais apertado, e os ouvidos de Dalan começaram a doer. Seu companheiro, acostumado com o local, não reclamava. Continuaram andando até que chegaram em uma pequena porta de madeira, pintada da mesma cor que as paredes. De fato, se o anão não tivesse parado ali, Dalan teria passado sem perceber sua existência. Wieder puxou um pedaço de ferro de sua trouxa de roupas, se aproximando do buraco da fechadura com curiosidade.

 - Personalizada. Pode ser um pouco mais difícil do que eu achava. - Ele enfiou o ferro no buraco, torcendo e girando rapidamente, até que um estalo ecoou na caverna. - Ou não. - O ser menor sorriu, guardando o objeto na trouxa. Se virou para o garoto, ampliando o sorriso. - Vai querer entrar e cometer esse crime comigo?

 O humano apenas revirou os olhos e caminhou até o outro lado do corredor, encostando as costas na parede e cruzando os braços. O anão adentrou nas sombras do aposento, e sons metálicos se seguiram. Dalan começou a deslizar para baixo, preparado para se sentar no chão.

 Naquele momento, no entanto, o piso começou a tremer violentamente, chacoalhando a galeria por completo. Pequenos pedaços do teto imediatamente começaram a cair, e o garoto se levantou com um pulo. - Wieder, o que está acontecendo? - Gritou ele, tentando se apoiar nas rochas atrás de si.

 - Ah saco. - Praguejou o anão, escondido nas sombras. - Garoto! Fique encostado na parede! Haja o que houver, não saia! - Gritou ele, e o rapaz continuou a se agarrar nas rochas úmidas.

 - O que está acontecendo? - Houve mais um tremor violento, e ele quase foi jogado no chão. Conseguiu se agarrar com dificuldade em uma pedra pontiaguda no muro de rochas, e sentiu o sangue escorrer pela palma das mãos.

 - Vermes da montanha! - Wieder havia saído das sombras, e segurava os batentes da porta com as duas mãos. - É a época de acasalamento deles! E estamos em uma altura muito baixa! - Uma tocha caiu de seu suporte, e o fogo começou a consumi-la por inteira.

 - Pensei que anões construíam coisas que conseguissem durar a qualquer problema! - Gritou o garoto. Algo gigantesco passou por debaixo deles, e os dois quase foram ao chão. O piso, por sua vez, começou a desmoronar. Pequenos pedaços se desfizeram ou caíram no abismo, revelando algo carnudo e de cor branco-esverdeada, correndo assustadoramente rápido por debaixo deles. Dalan engoliu em seco, esperando pelo fim daquele pesadelo, até que os tremores diminuíram com a passagem do verme da montanha. Os buracos agora mostravam apenas o negro completo.

 - Não estamos em áreas civis. - Wieder suava e tremia, mas não saiu do lugar. - Isso aqui é reservado apenas para construtores extremamente experientes, que usariam os túneis criados pelos vermes da montanha para procurar os veios mais profundos de ronatto. - Os tremores recomeçaram, muito mais violentos do que antes, e o anão se prendeu com tanta força ao batente que seus dedos pareciam se enterrar na madeira cinza. - Não saia de perto das paredes! - Gritou ele, tentando se ouvir apesar do barulho do apocalipse que ressoava na galeria. - Elas são reforçadas! Aconteça o que acontecer, não saia daí!

 Dalan concordou com a cabeça, tenso demais para falar. O chão perto das pontas de seus pés começava a rachar, mas o garoto tinha medo de se mover para se afastar. Segurou com força as pedras da parede, tentando se acalmar enquanto o mundo tremia ao seu redor. Tudo bem, pensou. Se não saísse dali estaria seguro.

 Enquanto pensava nisso ouviu um grito com o canto da mente, proferido por uma voz familiar. Ele girou a cabeça para enxergar o restante do corredor, e com pavor frio viu que Amanda corria em sua direção, pisando bem no centro da galeria.

 - Dalan! Wieder! São vocês? - Ela parecia relativamente calma com a situação ao seu redor, pelo menos em comparação com o desesperado Dalan ou o incrédulo Wieder. Os dois viram a garota correr por alguns centésimos de segundo, sem conseguirem proferir uma só palavra. Eis que uma outra tocha caiu de seu suporte, e o feitiço se quebrou.

 - AMANDA, SAI DAÍ! - Gritou Dalan, acompanhado pelos gritos no dialeto anão do companheiro. A garota não desacelerou o passo mas os encarou, confusa e agitada.

 - Gente, está tendo um terremoto! Nós precisamos sair daqui! - Gritou ela em resposta. O chão debaixo dela começou a vibrar terrivelmente, e as pedras caíram em cascata. Amanda pulou para frente, com os olhos arregalados, mas não havia como escapar daquilo. Atrás da garota, as pedras do piso se arquearam e começaram a desabar, como se algo monumental estivesse passando por ali. O movimento de onda chegou em instantes nela, levantando-a no ar com facilidade, fazendo-a girar. Quando Amanda acertou o chão novamente, caindo de costas, seu peso foi o suficiente para que o suporte ruísse e ela começasse a cair.

 - AMANDA! - Gritou Dalan. A onda de rochas passou por ele, que sem pensar saltou na direção da garota, tentando segurar sua mão. Infelizmente o chão debaixo do rapaz também estava frágil, e se quebrou com o contato. Os dois começaram a deslizar nas pedras que começavam a cair, protegendo a cabeça dos fragmentos com os braços, girando descontroladamente no ar. O barulho de destruição era intenso, mas em algum canto impossível de ser triangulado, Dalan ouviu a voz irritada de Wieder, gritando alguma coisa em seu próprio dialeto.

 Sem conseguir enxergar o que estava acontecendo, o garoto caiu em cima de um corpo magro, e logo em seguida deslizou por uma superfície macia, gosmenta e em declive. Uma parte do seu cérebro que ainda funcionava supôs que aquilo era a pele do verde da montanha, mas o resto da mente ainda tentava se achar no meio daquela baderna. O corpo de Dalan começou a deslizar pela superfície gosmenta, rolando e se melecando, batendo em outros corpos e ouvindo-os gritar. Ele também gritava, sem saber o que estava acontecendo, apenas seguindo os seus instintos mais primais. Abriu os olhos, e não enxergou nada. Preferiu ficar de olhos fechados.

 De repente, se viu caindo. Seu corpo cortava o ar ao seu redor, e gritos ecoavam no vazio. O único pensamento de Dalan, arduamente lutando para ser ouvido naquele caos, tinha apenas sete palavras, que se perderam na queda livre.

 Aquele não estava sendo um bom dia.

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