terça-feira, 19 de novembro de 2013

RN Nuzlocke Y - Capítulo 3: Cabeças-Duras

RECINTO NERD NUZLOCKE - Y -
CAPÍTULO 3: CABEÇAS-DURAS

 - Qual é a sua? - Perguntou Frog subitamente, lançando um olhar mal-encarado a Kari. Os dois estavam andando pelo Caminho de Vaniville, cercados pela grama, pelas flores e pelas grandes árvores que tapavam o caminho do sol. A treinadora desviou os olhos e fez um muxoxo, começando a perder a paciência.

 - O que foi? - Perguntou a garota, devolvendo o olhar irritado com o canto do olho. Todo o estresse da perda de memória estava finalmente chegando ao auge, muito pelo fato da situação ter sido razoavelmente resolvida. Agora que ela tinha um objetivo a cumprir, as outras emoções além do medo conseguiram seu espaço.

 - Você não me parece confiável. E eu tenho olfato para esse tipo de coisa. - Respondeu o Froakie, estreitando as pálpebras.

 - Ah, sério? Seu olfato disse que eu não sou confiável? - Perguntou Kari, ajeitando a bolsa no ombro com a voz pingando ironia. - Era mais fácil dizer que era um sexto sentido, sabia? Não ia parecer tão imbecil.

 - Ei, qual é o seu problema? - O Froakie avançou e parou, ficando na frente de Kari. - Treinadores Pokémon não deveriam agir assim com sua equipe! - A garota apenas o encarou como se não acreditasse na situação.

 - E os próprios Pokémon deveriam ter alguma pingo de respeito pela droga dos treinadores. - Disse finalmente. Ela deu um passo à frente. - E, que eu saiba, você ainda é um mordedor de tornozelos azul com problemas de língua solta. Eu ainda posso te colocar em formas infinitas de castigo, tantas que você teria que passar dias contando.

 -  Quero ver você tentar. - Começou Frog, se colocando em uma postura de luta. - Eu sou o futuro Campeão de Kalos, e você nem -- O que ele iria falar nunca ouvido, pois Kari se adiantou e afundou seu rosto na grama, prendendo-o com a mão direita.

 - Oh, desculpe. - Disse ela calmamente enquanto o Froakie se debatia. - Você tem que ter uma altura mínima para -- Mais uma frase incompleta, pois Frog conseguiu soltar um jato d'água nos pés de Kari, que se desequilibrou e caiu. O Pokémon aproveitou o momento e pulou em cima dela, e ambos ficaram se degladiando no chão.

 - Porteiro de maquete! Carcereiro de gaiola! Alpinista de calçada! - Grunhiu a treinadora no meio da luta, girando o corpo para tentar prendê-lo.

 - Tábua! - Conseguiu dizer Frog, e algo estalou na mente de Kari, produzindo ainda mais raiva. Os dois ficaram rolando e lutando, até que uma voz rompeu o ar.

 - Ora, ora, o que temos aqui? - Os dois pararam e se levantaram a cabeça, bem a tempo de ver um enorme Rhyhorn quase em cima deles. No lombo do Pokémon havia uma mulher alta e magra, com cabelos castanhos curtos e um prendedor amarelo para decorá-los. Ela os encarava com uma expressão totalmente séria. - Acho que você tem uma carta para mim, garota. - Disse a mulher. Kari se levantou, ainda tentando compreender o que estava acontecendo.

 - V-você é a senhora Luco? - Perguntou a treinadora, limpando discretamente a terra que impregnava suas roupas. A mulher disse que sim com a cabeça, e Kari pegou atrapalhada a carta do bolso. - Isto é para você.

 Luco ficou a encarando, analisando-a de cima a baixo do alto do Rhyhorn. Ela se esticou para pegar a carta e guardou-a no bolso. - Escutem, vocês dois. - Começou ela, olhando para Kari e Frog com severidade. - O caminho de um Treinador Pokémon não é fácil. Para ninguém. Então, ou vocês aprendem a se respeitar, ou acabarão morrendo. Entendidos? - O Rhyhorn soltou um rugido, e os dois imediatamente acenaram positivamente com a cabeça. - Ótimo. - Respondeu Luco. - Avisem a Sycamore que eu mandei um oi. - E com isso ela deu meia-volta no Rhyhorn e começou seu caminho a Vaniville. Kari e o Froakie ficaram quietos, e se viraram para voltar a Aquacorde. Nenhum dos dois sequer olhou para o outro, muito menos falou.

 Estavam terminando de atravessar Aquacorde quando o silêncio foi interrompido. Frog parou perto da ponte que ligava a cidade à rota seguinte, que se embrenhava no meio da floresta. Havia um pequeno abismo à sua frente, e um rio que corria mais abaixo.

 - O que você quer fazer? - Perguntou ele. Kari suspirou, se abaixando para se sentar na beira do caminho.

 - Eu não sei. - Disse ela, cansada. - Só sei que a idéia de ser uma treinadora Pokémon me parece um caminho bastante familiar. E é tudo que eu tenho agora. - Ela acabou por recolher as pernas e segurar os joelhos, contemplando a floresta. Novamente o silêncio veio, e Frog o interrompeu pela segunda vez.

 - Imagino que você vá seguir em frente, então? Talvez... até a Liga? - Kari refletiu sobre isso. Não tinha a menor idéia se iria recuperar sua memória daquele jeito, muito menos quando isso aconteceria. No entanto, o caminho que iria seguir era bastante claro. E tinha um fim bem definido.

- Talvez. - Se limitou a dizer a garota. - Não sei o que vai acontecer comigo quando eu recuperar a memória. Posso ter outros objetivos, mas... vou considerar isso. Tudo bem? - Ela se virou para seu Pokémon, que voltou a encarar a floresta.

 - Acho que é o melhor que posso esperar. - Respondeu Frog.

 - Ei, pelo menos você tem um objetivo na sua vida. - Acrescentou a treinadora. - É muito mais do que eu posso dizer.

 - Realmente, estou muito melhor do que você. - Disse o Froakie, e no segundo seguinte Kari o empurrou contra o rio, fazendo-o cair quase cinco metros. Ele submergiu com ódio profundo, e começou a xingar a garota em voz alta. Kari, por sua vez, retribuiu no mesmo tom.

 E assim o céu ia se pondo no céu, e o primeiro dia de Kari em Kalos estava no fim. Para muitos pedestres que passavam perto da ponte de Aquacorde, a garota e seu Pokémon eram objetos mesclados ao ambiente. Muitos franziam a testa para o barulho dos dois, mas a maioria simplesmente os ignorava.

 Exceto uma pequena figura, que os encarava com interesse. Ela se mantinha nas sombras, e continuou onde estava mesmo quando Kari e Frog levaram sua briga até a ponte, indo em direção à Rota 2.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Aurora: Capítulo 3 - A Sede

AURORA
CAPÍTULO 3: A SEDE

 - Acho que é tudo que precisamos. - Disse Stella no momento em que Dalan terminava de rabiscar sua última rubrica. Ela recolheu os papéis do contrato, encarando os móveis de sua sala enquanto parecia procurar por algo. O garoto largou a pena e movimentou o punho, cansado da sessão de assinaturas.

 - E agora? - Perguntou ele, massageando a região dolorida. Stella se levantou e foi até um armário, bem próximo da peculiar corrente morfo cromática que havia atiçado Dalan anteriormente. Assim que a mulher abriu o armário, no entanto, uma nuvem branca saiu de dentro do móvel, rapidamente preenchendo a sala inteira.

 - MALDIÇÃO! - Praguejou o vulto de Stella, balançando as mãos com violência na tentativa de dispersar a névoa grossa. - Dalan, me faça um favor. Vá até Lyra lá embaixo e peça para ela te dar o passeio pelo prédio. Ela normalmente fica atrás do balcão. É a que tem cabelos roxos. Aproveite e peça para ela marcá-lo. 

 - Eu... - O garoto se sentiu um pouco receoso de descer sozinho. No entanto, quando ia proferir sua vontade um pássaro amarelo saiu do armário, piando e voando por toda a extensão do pequeno aposento. Stella começou a praguejar de forma mais intensa, deixando claro que Dalan não seria notado tão cedo. Assim, ele saiu da sala e encarou o salão.

 O aposento estava agitado, mesmo com tão poucas pessoas presentes. As duas gêmeas loiras estavam em uma das mesas no centro da sala, acompanhadas de um rapaz com longos cabelos negros enrolados em uma única trança. O homem semi-grisalho de outrora, por sua vez, tinha o rosto afundado no balcão do bar, no outro lado da sala. Roncava audivelmente, sentado de forma desajeitada em um banco alto enquanto segurava um grande copo de cerveja. Do outro lado do bar, a garota de corpo escultural de antes lavava animadamente um prato, cantarolando com os olhos semi-abertos e um sorriso no rosto.

 Conforme descia os degraus de madeira e ia se aproximando da mulher de cabelos roxos, Dalan ia notando sua beleza. Só era possível enxergar de sua cintura para cima, mas era claro que seu corpo, cuidadosamente esculpido em formato de ampulheta, era invejável. Ela era curvilínea onde era necessitado, e delicada no restante. Seu rosto tinha a forma de uma gota de cabeça para baixo, e nele haviam grandes olhos negros, um nariz mirrado e uma boca com lábios finos. Seus cabelos eram suavemente ondulados e desciam até os ombros. Dalan percebeu que estava vermelho assim que chegou no balcão, e as palavras engasgaram em sua boca. A moça continuou a cantarolar, guardando graciosamente o prato na pia de pedra lixada e desligando a torneira enferrujada. Perto deles, o homem grande continuava a roncar.

 - Bem-vindo à Aurora! - Disse ela com a voz doce e animada. Dalan se sobressaltou, muito pelo fato de estar encarando o decote no vestido simples verde da mulher, descoberto ao notar o colar de prata que ela usava. O garoto ficou ainda mais vermelho, e cambaleou um pouco para trás.

 - Gaah. - Grasnou ele, imediatamente se arrependendo do som que fez. Pelo menos a mulher havia fechado os olhos em sua frase, inclinando a cabeça para o lado enquanto esperava docemente a resposta, assim não pôde ver o rubro que manchava o rosto pálido de Dalan. - Ah... obrigado. - Disse o jovem, rapidamente.

 A mulher abriu os olhos e aumentou o sorriso, estendendo rapidamente a mão por cima do balcão. - Meu nome é Lyra Nilla, e sou a ajudante da senhora Stella. Muito prazer! - Ela voltou a fechar as pálpebras e inclinar a cabeça, enquanto esperava o movimento do outro rapaz.

 - Ah... obrigado. - Respondeu ele, apertando a mão dela. - Meu nome é Dalan Glacius. O p-prazer é todo meu. - Isso parecia o correto a se dizer, pensou ele na hora. Lyra soltou sua mão e se apoiou no balcão para se aproximar. Os olhos de Dalan quase correram de volta para o decote, mas ele suportou bravamente a tentação.

 - Devo te dizer, você deu uma nova injeção de ânimo aqui! Estávamos em um belo clima fúnebre antes de você chegar. - Ela saiu detrás do balcão, revelando o resto de seu vestido que alcançava os joelhos. - Stella deve ter me pedido para te mostrar a guilda, não é? - Dalan concordou com a cabeça, ainda chocado pela tamanha beleza de Lyra. - Bem, venha por aqui. - Ela o chamou pela mão enquanto andava para trás, atravessando uma porta dupla de madeira.

 - Essa é a cozinha. - Disse ela assim que Dalan entrou no aposento. O local era apertado e coberto de azulejos brancos, muitos deles cobertos de gordura e outros resquícios alimentares. O garoto teve a impressão de que a cozinha era ampla, mas haviam tantos objetos pendurados nas paredes que era difícil ter certeza desta afirmação. Armários de madeira se espalhavam de forma aparentemente aleatória, e panelas sujas se equilibravam nas duas pias, embora estivessem peculiarmente ajeitadas. Havia uma grande abertura na parede para o salão, e perto do homem grande havia um barril aparentemente vazio. - Ah, esse é o Dom. - Disse de forma alegre Lyra, percebendo o olhar de Dalan. - Esse é o lugar favorito dele, então já deixo um barril de cerveja separado. Quando ele acordar irei te apresentar. - Pelo ronco forte, o garoto teve a impressão de que não seria apresentado tão cedo. - Você pode vir aqui comer na hora que quiser, mas em determinados horários do dia eu preparo uma refeição mais completa. São três por dia, se quiser saber. - Percebeu Lyra se afastando, e se virou para acompanhá-la.

 Voltaram ao salão principal, e a mulher se virou para a direita em direção a um corredor repleto de portas. - Me diga, Dalan, você veio de onde? - Perguntou ela na mesma voz animada. O garoto sentiu um aperto no coração ao se lembrar de sua casa, mas a alegria contagiante de Lyra fez a sensação durar pouco.

 - Sou de Gamora. - Respondeu ele. Lyra se virou, e ele rapidamente colocou um meio-sorriso no rosto.

 - Gamoriano? Nossa, é a primeira vez que vejo um aqui no continente. - Ela ampliou o sorriso, e Dalan sentiu o rosto corar ardentemente. Lyra voltou a olhar pra frente no momento em que atravessavam o portal do corredor. - E quantos anos você tem?

 - Dezenove. - Estavam atravessando o corredor naquele momento, passando por várias portas de madeira.

 - Ah, eu sou um pouco mais velha. Tenho vinte e um. - Isso não era um problema, pensou espontaneamente a mente de Dalan. À sua frente, Lyra estancou subitamente, e o garoto quase a acertou. - Essas portas dão para nossos aposentos particulares. Inclusive, este é o seu. - Ela retirou um molho de chaves do bolso e começou a procurar por uma específica. Enquanto isso, o rapaz encarou a porta de madeira puída. 016, dizia o símbolo de metal enferrujado no topo. - Ah, achei.

 A garota abriu a porta, revelando um pequeno quarto quadrado de três metros e meio. Ele entrou, notando o estado de abandono no lugar. A poeira pintava de cinza os poucos móveis, e teias de aranha eram vistas nos cantos superiores. O armário de madeira era grande, ocupando toda uma parede, mas uma das portas estava estranhamente bamba. Do outro lado do quarto, uma janela grande oferecia a luz do sol. Um criado-mudo e uma cama terminavam a sequência de móveis, e em cima da última havia um colchão magro e descolorido. Não haviam lençóis nem mesmo travesseiros.

 - Eu vou emprestar algumas coisas do meu quarto enquanto você não comprar o que precisa, tudo bem? - Disse Lyra, percebendo o olhar desolado de Dalan. O garoto se virou tão rápido que quase caiu, novamente com o rosto em chamas.

 - V-v-v-você não precisa! - Gaguejou ele, arregalando os olhos. A garota apenas sorriu, voltando a inclinar a cabeça com os olhos fechados.

 - Claro que eu preciso. Acha mesmo que eu iria te deixar dormindo nessas condições? Afinal, somos companheiros de guilda agora. - Ela começou a vasculhar o molho de chaves novamente, procurando uma cópia da que havia aberto a porta. - Devo separar alguns lençóis e travesseiros hoje de noite. - Ela olhou para cima, encarando Dalan através da cabeça abaixada. - Se te faz sentir melhor, encare como se fosse meu trabalho na guilda. O que não deixa de ser verdade.

 - O que você faz? - Perguntou o garoto, ainda chocado de existir uma pessoa tão perfeita quanto a que estava à sua frente. Lyra deu de ombros.

 - Ah... eu sou a segunda em comando da senhora Stella. Ou seja, mantenho toda a infra-estrutura da Aurora. - Ela retirou a chave, estendendo-a para Dalan. - Tudo o que a guilda precisar, lá estarei eu para fazer. Cozinhar, arrumar, servir como tesoureira ... esse tipo de coisa. - Ela andou até a porta, e o garoto a acompanhou. - Não sobra tempo para fazer nenhuma missão, mas procura ajudar da maneira que consigo.

 - Entendo. - Disse Dalan, ainda desconcertado com a boa-vontade da garota. Os dois caminharam até um corredor perpendicular ao que estavam, e viraram para a esquerda. O rapaz procurou alguma coisa para preencher o silêncio, ávido na esperança de manter a outra falando. - Nessas horas a resistência extra da Yullian ajuda, não?

 - Ah, eu não sou uma Yulliana. - Respondeu Lyra, abrindo uma porta de madeira no fim da galeria, um pouco maior do que as anteriores. - Esse é um dos motivos de eu procurar ajudar a guilda do jeito que faço.O mundo lá fora não é tão... seguro para humanos comuns.

 - Oh. - Burro, burro, burro, censurou-se Dalan. - M-me desculpe. - Lyra, ainda absorta em sua procura pela chave correta, balançou a cabeça para acalmá-lo.

 - Não precisa se preocupar. Não ter a Yullian em meu sangue não significa que não sei me virar na hora do aperto. - Ela finalmente abriu a porta, revelando um aposento mais amplo, de quase cinco metros de comprimento por oito de largura. Ele tinha as paredes pintadas de negro, e diversos equipamentos de musculação rudimentares se espalhavam pelo recinto. Alguns halteres estavam encostados no canto, juntos com dois bastões e uma pilha de colchões finos. Dois bancos enferrujados se espalhavam no centro do quarto, junto com um tatame verde. - Essa é a sala em que treinamos a forma física. Normalmente ela não fica fechada, portanto você pode vir na hora que quiser.

  A garota não estendeu seu tempo na sala, preferindo avançar até uma porta no canto direito. Diferente das outras, esta estava aberta, e assim os dois saíram para os fundos do prédio, local mais familiar para Dalan.

 - Aqui nós temos uma pequena oficina, mas infelizmente ela está fora de uso desde que nosso mecânico saiu da Aurora. - Os equipamentos enferrujados pareciam estar imóveis há meses, com camadas e mais camadas de pó por cima deles. Lyra se aproximou do pequeno quiosque de ferramentas, retirando um grande arco de madeira lustrado. - E é com isso que eu me viro. - A arma tinha quase dois metros, e possuía as pontas recurvadas para dentro, acentuando a barriga no centro. A garota puxou a corda fina e negra, apontando com um sorriso para o chão.

 - Maneiro. - Elogiou Dalan, e Lyra guardou o arco, parecendo desconcertada.

 - Não é grande coisa. - Acrescentou ela rapidamente, enrolando o dedo no cabelo. - Só o suficiente para me virar quando for necessário. - Pelo visto falei a coisa certa, parabenizou Dalan a si mesmo. Com um sorriso, ele continuou a falar.

 - Escuta... eu procurei essa guilda por causa de um homem que veio até Gamora há alguns anos, mas... - Lyra levantou a mão para interrompê-lo, e grande parte da alegria pareceu ter fugido de seu rosto.

 - Deixe-me adivinhar. - Disse ela com a voz calma e um sorriso amarelo, embora o tom parecesse cansado. - O nome dele eram Adam, não era?

 - S-sim. - Respondeu Dalan, sentindo que havia tocado em um assunto delicado. Lyra andou cabisbaixa até um banco perto da parede, convidando o garoto a se sentar, ainda com o sorriso triste.

 - Ele era o Mestre de Aurora desde o início da guilda. - Recomeçou ela quando Dalan se sentou ao seu lado. Ela se inclinou para frente e começou a brincar distraída com seus próprios dedos. - Era marido da senhora Stella e pai de Sasha. Faz dois anos que ele morreu.

 - Ah. - O rosto de Dalan se avermelhou novamente. Pra quê foi perguntar sobre esse assunto? - M-me desculpe. - Gaguejou ele. Lyra virou a cabeça para encará-lo.

 - Tudo bem. - Ela fitou o horizonte por alguns segundos, envolta em pensamentos. Suspirou. - Ele era um bom homem, sabia? Costumava resgatar crianças abandonadas que encontrava em suas missões. Dos dez membros da guilda hoje, incluindo você, seis foram... adotados por ele. Talvez seja por isso que não abandonamos Aurora quando as coisas começaram a ficar ruins depois da morte de Adam.

 - Faz dez anos desde o dia em que vim para cá. - Continuou ela. - Era uma criança pobre em Savarat, uma cidade ao sul daqui. Adam me resgatou e me trouxe para a Aurora. Desde aquele dia decidi retribuir aquele ato, e comecei a trabalhar aqui. Depois da... morte dele... - Ela inclinou a cabeça para baixo. - ... fiz de tudo para ajudar a senhora Stella. Faço isso até hoje.

 Um silêncio incômodo surgiu entre eles, enquanto Dalan procurava avidamente algo para dizer. No entanto, quem quebrou o comedimento foi Lyra, se ajeitando na cadeira e se virando para o garoto. - Nossa, que fúnebre, não? Vamos pular essa parte, afinal você acabou de entrar e isso é um motivo de comemoração! - Seus olhos continuavam tristes através do sorriso, mas Dalan procurou fazer o que ela pediu.

 Os dois se levantaram e voltaram até o edifício, adentrando em um corredor que os deixava no saguão de entrada. Lyra apontou para o andar superior. - Ali ficam as salas de administração, como a tesouraria e o escritório da senhora Stella. Ela e Sasha também moram ali. - Dalan inclinou a cabeça para cima, e só percebeu que a outra garota tinha se afastado quando ela já estava do outro lado do saguão, perto do bar.

 - Dom, eu deixei o carimbo da guilda com você, não foi? - Perguntou a garota. O homem resmungou, se levantando do balcão com dificuldade. Seus olhos castanhos estavam vermelhos por cima do nariz pontudo e por baixo da grande testa. Ele se espreguiçou sem dizer uma palavra e piscou com vontade, encarando Dalan.

 - Ah, o novato está aqui! - Disse ele com a voz esganiçada. Dom se levantou cambaleante e se pôs à frente do garoto. Ele era definitivamente gigante, com quase dois metros e um corpo musculoso e tatuado que acentuava seu tamanho. Sua veste verde não cobria o peito nu, e era acompanhada por uma calça de tecido negro e uma faixa branca na cintura. Seus cabelos eram bem curtos e se alteravam entre negro no topo e grisalho nas laterais. Ele estendeu a mão para Dalan, sorrindo abertamente. - Dominic Weitern, garoto. Pode me chamar de Don, se quiser.

 - Dalan Glacius. - Respondeu o garoto, apertando a mão. Por um instante pensou que seus dedos seriam estraçalhados, mas o aperto teve uma força normal. Dom se virou então para Lyra, retirando um objeto do bolso.

 - Aqui, garota. - Ele jogou o objeto para Lyra, que o segurou com as duas mãos enquanto agradecia.  Dalan percebeu que ele era parecido com um carimbo, do tamanho de sua mão. Dom voltou a se sentar perto do balcão, e a garota se aproximou do garoto, girando o suporte do carimbo.

 - O braço direito, por favor. - Pediu ela, e Dalan retirou o braço da capa, estendendo-o para Lyra. Ela pressionou o objeto contra a pele, produzindo um brilho roxo e azul por alguns segundos. Quando ela recuou o carimbo, havia uma tatuagem na pele do garoto. Ela era composta por três linhas de cor verde, roxa e azul, todas em formato de "S", e uma estrela branca de quatro pontas no canto inferior esquerdo. - Essa é a Marca da Aurora. - Disse a garota. - Agora você é um membro oficial da guilda. Essa marca irá te identificar para qualquer pessoa, como se fosse uma identidade.

 - Entendi. - Disse Dalan, entortando o braço para poder ver a marca. Sua pele formigava por debaixo da tinta, mas não chegava a doer. Lyra começou a andar até o outro lado do saguão, e o garoto a acompanhou.

 - Por último, vou te mostrar um dos lugares mais importantes daqui, o Mural de Missões. - Ela indicou um painel de tecido amarelo, preso na parede. Haviam dois papéis de cor cinza colados na superfície, pregados por uma tachinha roxa. - Cada uma das missões contém os detalhes necessários, como o pagamento, o Tempo de Contrato e a descrição do trabalho. Assim que escolher uma, vá até mim no balcão e eu a aprovo para que você possa cumpri-la. Receberá o pagamento no início da semana, quando eu for até o Conselho Local comprar novas missões com a senhora Stella. - Ela colocou as mãos no quadril, parecendo satisfeita consigo mesma. - E é isso! O seu pequeno tour acabou. Agora faça-se em casa!

 - Ah. - Disse Dalan, surpreso com o fim abrupto. Lyra sorriu com os habituais olhos fechados e cabeça inclinada, e se virou para voltar ao balcão.

 O garoto ficou onde estava, sentindo a realidade descer sobre si. A parte fácil de sua missão havia terminado. Entrou na Aurora, e agora precisaria fazê-la crescer. Sua família e todos os que conhecia estavam contando com ele. Gamora estava em suas mãos.

 Um plano se formulou em sua cabeça. Estava claro que, nas condições atuais da Aurora, não conseguiria nunca descobrir o que havia acontecido com sua ilha, e duvidava que teria condições de entrar em uma guilda maior. Assim, precisava dar o máximo de si para que a Aurora crescesse. Teria que realizar o máximo de missões que conseguisse, e se aliar com todos ali dentro. Afinal, não saberia quando o apoio deles seria importante em suas próprias ambições.

 Sentiu o corpo cansado e dolorido, resquícios da viagem longa até Helleon e da luta contra Sasha. Uma voz em sua cabeça o mandou descansar, mas outra o lembrou de sua missão. Não havia ninguém que pudesse descobrir o que aconteceu com sua ilha, exceto ele. Não poderia perder o foco, principalmente agora que estava bem encaminhado.

 Pegou uma missão do Mural e se encaminhou até Lyra.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Aurora: Capítulo 2 - O desafio de Sasha

AURORA
CAPÍTULO 2 - O DESAFIO DE SASHA

 Dalan acompanhou Stella até os fundos do prédio, encontrando uma grande área externa coberta por grama. Logo atrás do edifício havia uma piscina modelada com rochas à direita da porta que haviam saído, e uma pequena oficina ao ar livre à esquerda. Mais à frente, um enorme campo os aguardava, com quase setenta metros de comprimento e quarenta de largura. Uma pequena elevação natural, de quase dois metros, marcava o lado esquerdo do campo, e lá o restante da guilda estava sentado na relva. Dalan contou seis pessoas, doze olhos que agora o encaravam enquanto ele atravessava a distância curta até o campo. E Sasha aguardava no centro da arena.

 - Não se preocupe. - Disse Stella, sentindo o nervosismo do garoto. - Sasha tenta se fazer mais forte do que é, mas há uma grande diferença entre o que ela acha de si mesma e a realidade.

 - E o que é a realidade? - Perguntou Dalan, engolindo em seco. Stella ficou em silêncio, refletindo consigo mesma, até soltar um sorriso amarelo.

 - Ei, se as coisas saírem do controle, nós iremos intervir, tudo bem? - O garoto definitivamente não gostou daquela frase, mas não disse nada. Quando chegaram no campo, Stella se encaminhou até os companheiros na elevação, deixando Dalan com Sasha.

 De perto, a garota parecia bem mais baixa, com no máximo um metro e sessenta e cinco de altura. Ela estava de braços cruzados com o corpo um pouco inclinado para o lado enquanto o vento agitava suas maria-chiquinhas, mas o rosto continuava impassível ao encarar Dalan. O garoto parou cinco metros afastado dela e tentou soltar um sorriso nervoso, mas ele sumiu ao enfrentar o olhar gélido de Sasha.

 - Vamos tornar isso bem simples. - Disse ela com sua voz aguda, soltando os braços. - Aquele que desmaiar primeiro será o perdedor. Entendido? - Dalan concordou com a cabeça, ajeitando os dois pés na grama para apoiar melhor o corpo. Estendeu também os braços um pouco para frente, protegendo o tronco e o pescoço. Não fazia ideia do que Sasha poderia fazer, mas de qualquer jeito era melhor se preparar para um ataque físico. A garota não se moveu, e Dalan sentiu um nervosismo na garganta.

 - Você já pode -- Começou ele, mas não chegou a terminar a frase. No meio das palavras Sasha avançou, se aproximando como um raio até atingi-lo com um soco na boca, impelindo sua cabeça para o lado com violência até desequilibrá-lo. Dalan sentiu o sangue vazar da língua mordida, e antes que ele caísse a garota desferiu outro soco, desta vez acertando-o nas costelas, na direção oposta do último golpe. O garoto caiu, desajeitado, segurando o tronco.

 - O que é isso? - Perguntou ele com os dentes trincados, mas sua mente já trabalhava em achar uma resposta. Se lembrou da cena anterior, onde Sasha percorreu a distância entre eles em um meros décimos de segundo até desferir o soco. Ele entendeu o que estava acontecendo um pouco antes de Sasha falar.

 - Supervelocidade. Você nem mesmo vai me ver chegando. - Respondeu ela com a voz arrogante. Isso não é exatamente verdade, pensou Dalan enquanto cuspia o sangue em excesso da boca. Embora Sasha fosse muito mais rápida do que um ser humano normal, ele conseguiu enxergá-la se aproximando, embora a surpresa tivesse retardado sua reação. O garoto segurou a grama abaixo de si com força, pensando em usar seu poder para contra-atacar. No entanto, antes que ele conseguisse se concentrar sofreu um chute na boca, fazendo-o rolar para o lado.

 - Raios. - Praguejou baixinho, e rapidamente se pôs de pé. Conseguiu adotar uma posição de defesa razoável antes de Sasha começar uma série de socos e chutes, procurando minar suas defesas. Mesmo na confusão, a mente de Dalan se pôs a calcular. A adversária realmente não era tão rápida quanto dizia, mas naquele cenário isso não importava muito. Ela tinha velocidade o suficiente para acertá-lo com força e impedindo um contra-ataque adequado, forçando o jovem a ficar na defensiva. Além disso, Sasha tinha habilidade o suficiente para acertar seus pontos desprotegidos, mas não o bastante para desferir uma série de golpes no local antes do garoto rearmar a defesa.

 Um golpe no rosto fez com que Dalan perdesse momentaneamente os sentidos, recobrando-os um pouco antes de acertar a cara na grama. Rolou para o lado instintivamente, desviando de um pisão de Sasha. Ouviu o som do golpe martelar a relva e chutou o ar com violência, sorrindo satisfeito ao senti-lo acertar uma magra canela. Se levantou com rapidez enquanto a garota caía no chão e saltou para imobilizá-la, mas ela já estava de joelhos. Sasha acabou por acertar um forte soco no queixo do garoto, que mais uma vez mordeu a língua. Enquanto Dalan tentava se recuperar, a adversária colocou as mãos na grama e virou o corpo para chutar seu estômago, expulsando todo o ar e fazendo o sangue espirrar da boca. Dalan acabou por cair no chão.

 - Desista, você não vai conseguir me vencer. - Disse ela, ficando de pé. O garoto respirou fundo, considerando suas opções. Dificilmente venceria no mano a mano, e a única esperança era seu poder. No entanto, ele precisaria do elemento-surpresa se quisesse derrotar Sasha. Dalan se levantou, limpando uma mancha de terra da testa. Considere o ambiente, pensou para si mesmo. Precisaria usar tudo que tivesse acesso ao seu favor. No entanto, não tinha nada ali. Apenas ele, a grame e Sasha. A arrogante Sasha...

 Eis que um plano surgiu em sua mente. Era quase desesperado, mas era sua única chance de vencer. Precisava fazer aquilo dar certo. Sua casa estava perdida, e o único que poderia encontrá-la era ele. Necessitava mudar as regras do jogo. E pra isso precisava de sua lábia, o que definitivamente não era seu ponto forte.

 - É só isso? - Perguntou ele, soltando um sorriso nervoso na esperança de ser zombeteiro. Por um instante esperou ver Sasha avançando contra ele, mas ela apenas inclinou a cabeça e estreitou as pálpebras.

 - O que você disse? - Perguntou a garota com a voz lenta e pontuada.

 - Estou dizendo que você é realmente muito menos do que acha. - Sua voz estava um pouco mais aguda e alta do que o normal, reparou. Por favor, que isso dê certo, rezou Dalan aos deuses. - Eu conseguiria agarrar você a qualquer momento naquela cena que tivemos. Para uma velocista, você abre completamente a guarda.

 - Acha mesmo que vou cair nessa? - Perguntou Sasha, e Dalan sentiu um peso gelado descer pelo esôfago. - Eu te coloquei completamente na defensiva. Não havia jeito de escapar dos meus ataques.

 - I-isso é o que você acha. - Droga! Não era o momento de gaguejar. O garoto voltou a limpar a sujeira da testa, tentando recompor seu teatro. - Eu conseguiria segurá-la quando quisesse.

 - Então que tal tentar, garotão? - Disparou Sasha, com seu rosto começando a se tingir de vermelho. - Vamos fazer o seguinte. Se você conseguir me imobilizar no chão, te deixarei vencer. Só que, se for derrotado, eu não vou querer ver nem um fio de seu cabelo por todo o Mar de Cellintrum! - Ela apontou para ele, encarando-o com raiva. - Entendeu?

 - Tudo bem. - Dalan estava tão aliviado que seu plano havia funcionado que quase abaixou a guarda. Controle-se, ordenou a si mesmo. O momento da decisão seria a qualquer instante.

 Assim que o garoto terminou sua frase mental, Sasha disparou contra ele com o punho em riste, mirando seu rosto. No entanto, daquela vez, Dalan estava a postos. Ele estendeu as duas mãos com as palmas viradas para o chão, concentrando cada pingo de seu ser em seu ataque. Imediatamente uma aura gélida saiu de suas palmas, disparando até a grama. O contato congelou a relva, e a área glacial se expandiu até formar uma faixa de quase três metros. Bem no caminho de Sasha.

 A garota escorregou com o gelo, e sua velocidade a impediu de recuperar o equilíbrio. Ela voou, acertando no caminho Dalan, que havia aberto os braços de modo a se preparar para o impacto. Sasha acertou a cabeça no peito do adversário, e os dois rolaram juntos na grama em velocidade, levantando punhados de terra no trajeto. Dalan se segurou com força na garota, sem sequer saber onde colocava as mãos, se concentrando apenas em mantê-la por perto.

 Finalmente os dois pararam de rolar, e o rapaz, atento, rapidamente se colocou em cima de Sasha, pondo os joelhos ao lado do quadril da garota e segurando suas mãos com força. Ela demorou um pouco mais para recuperar os sentidos, mas quando entendeu o que estava acontecendo, se viu imobilizada por Dalan.

 - Eu disse, não disse? - Soltou o garoto, sem conseguir evitar o sorriso. O rosto de Sasha se tornou imediatamente púrpura, e ela se libertou com violência. Dalan caiu para trás, e ela ficou em pé, revoltada.

 - O que... o que você acha que está fazendo? - Gritou ela, espanando a terra das roupas.

 - Vencendo. - Respondeu Dalan, se levantando enquanto apoiava o joelha na grama. - Você disse isso, não é? Se eu conseguisse imobilizá-la, estaria na guilda?

 - E-e-e-eu... - O rosto de Sasha, se era possível, ficou ainda mais corado, e ela se agitou novamente enquanto pensava em uma resposta. No entanto, ela não veio. - Ah, saco! - Gritou finalmente, se virando de costas para caminhar com passos fortes até a guilda. Houve um pequeno agito ao longe, e Dalan se virou para ver o resto da guilda assobiar e gritar, e Stella se aproximar com um sorriso no rosto.

 - Meus parabéns. - Disse ela, parando de frente ao garoto. As outras pessoas passaram pelos dois, conversando animadamente entre si. Alguns faziam menção de ir falar com Dalan, mas um olhar calmo de Stella os fez continuar o caminho até o prédio da Aurora. - Me diga, onde aprendeu a lutar daquele jeito? - Perguntou a mulher, se virando para o rapaz. - Não me parece um trabalho de principiante.

 - Meu pai me ensinou um pouco. O suficiente para me defender de piratas ou assaltantes. - Respondeu Dalan, sem jeito. Ele estava imensamente aliviado, mas tentou manter uma postura respeitosa com a Mestra. - Não sei se é uma arte marcial de verdade, apenas... apenas é eficaz. - Completou enquanto esfregava a nuca com a mão direita.

 - Bem, é uma forma de classificá-la. - Pelos seus olhos ela não considerava exatamente os movimentos do garoto um trabalho de mestre, mas foi educada o suficiente para manter isso para si mesma. - De qualquer jeito, sinta-se satisfeito. Passou no teste de Sasha.

 - Isso... isso significa que entrei na guilda? - Perguntou ele ansioso. Stella sorriu, mostrando de novo um olhar calmo e materno.

 - Mas é claro. Bem-vindo à Aurora.