quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Aurora: Capítulo 5 - Anões

AURORA
CAPÍTULO 5 - ANÕES

 - Agradeço pela ajuda, garoto! Não sei o que faria sem o seu apoio! - Exclamou Dom alegremente, carregando quatro caixas de madeira suja e grossa em seus braços. Dalan o acompanhava de perto, segurando apenas um pequeno baú de ferro. Desconfiava que Dominic conseguiria levar tudo aquilo sem problemas, mas havia se voluntariado a ajudá-lo de qualquer jeito no café da manhã, mesmo se sentindo um pouco inútil.

 No entanto, respondeu sorrindo. - Não tem de quê. - Estavam caminhando pelas mesmas pedras que Dalan havia cambaleado na noite anterior, mas desta vez iluminadas pelo sol forte. Dom estava vestindo apenas uma calça azul, mostrando o torso forte e tatuado. Já o garoto vestia uma simples camisa branca e uma calça de moletom cinza que Lyra havia lhe emprestado, visto que suas únicas roupas estavam lavando.

 - Você chegou tarde ontem, rapaz. Alguma... aventura noturna? - Perguntou Dom, sorrindo de forma zombeteira. Dalan imediatamente corou e quase derrubou o baú. Havia se portado de forma bastante patética na noite passada, sobretudo por ter sido com Sophie. Pelo que se recordava, havia sido arrastado até a Aurora, e ela havia lhe colocado na cama. O homem alto percebeu seu desconcertamento, e riu de forma tão explosiva que as caixas que segurava quase caíram. - Não precisa se preocupar, jovem! Eu até o parabenizo! Afinal, não é qualquer um que consegue arranjar uma garota bonita no primeiro dia na guilda!

 Nesse momento Dalan ficou ainda mais vermelho, tanto que o baú pareceu se aquecer com a proximidade de seu corpo. Ele se virou para Dom, gaguejando com os olhos abertos e o rosto suado. - N-n-n-não aconteceu nada! - Ele começou a falar cada vez mais rápido, tentando explicar tudo o que havia acontecido no menor intervalo de tempo. - Digo, eu estava passando mal, mas não era muito sério, digo, era um pouco sério, mas não algo grave, aí ela me ajudou a chegar na guilda, eu não me lembro de muita coisa, quer dizer, eu sei que não aconteceu nada...

 - Hah! - Exclamou Dom, e a voz alta dele fez com que o garoto se calasse. - Não se preocupe com isso. Deixarei seus assuntos amorosos em paz. - Ele conseguiu soltar uma das mãos e bagunçou o cabelo de Dalan, que quase caiu com o peso. O garoto suspirou, percebendo que não conseguiria convencer o outro homem.

 Caminharam de forma lenta até chegarem à praça que ficava em frente à sede. Dalan agradeceu silenciosamente pela proximidade, sentindo os ombros arderem e as pernas cambalearem. Não havia descansado direito na noite anterior, e a exaustão física começava a tomar conta de seu corpo. Tenha calma, pensou o garoto, passando a mão na testa para limpar o suor. Assim que chegasse em seu quarto, iria deitar e dormir. Enquanto ainda sorria com a ideia tranquilizante, avistou Stella parada à frente da sede. Ela vestia um longo vestido anil e usava seus cabelos azuis em um rabo de cavalo, segurando nas mãos uma bolsa pequena e preta. A mulher sorriu ao ver os dois se aproximando, e foi se encontrar com eles.

 - Dalan, estava procurando por você. - Ela retirou um envelope da bolsa e o estendeu para o garoto. - Preciso que você vá à Vertreit para mim.

 Vertreit era uma cidade localizado ao noroeste de Helleon, colada ao sul das montanhas de Tina. Diferente de Helleon, totalmente humana, Vertreit era mista, ou seja, povoada por mais de uma raça. No caso, anões e humanos conviviam pacificamente, unidos por razões econômicas. Havia uma rocha chamada ronatto, encontrada em abundância nas montanhas. Os anões mineravam e lapidavam o material, ao ponto em que os humanos vendiam os produtos e cuidavam da administração da operação. Por cerca de cento e cinquenta anos essa forma de organização funcionou, embora os resultados financeiros fossem limitados pela pobreza das regiões adjacentes.

 - Vertreit? - Repetiu Dalan, com os olhos arregalados e confusos.

 - Sim. - Stella fez um sinal com a mão para Dom, convidando-o a seguir até a sede. O homem deu de ombros e começou a andar, sem pressa. A mulher passou a mão pelo pescoço, com os olhos fechados e cansados, e se encaminhou com Dalan até a praça do relógio de sol, sentando em um banco rudimentar de pedra. - A questão é, Dalan, que a Aurora está em uma situação complicada. Estamos perdendo membros constantemente, e isso já começou a preocupar os assessores do prefeito. Como somos uma guilda pobre, precisamos muito de apoio governamental para nos auxiliar com pagamentos e aluguéis, e se perdermos essa ajuda... bem... - Ela apoiou o cotovelo no joelho e começou a esfregar os dedos nos olhos.

 Dalan, por sua vez, olhou de relance para a grande construção à sua frente. Realmente, no estado financeiro atual da Aurora, seria bem difícil manter um terreno tão grande, mesmo acabado e em uma cidade pobre. Era claro que a ajuda da prefeitura era vital.

 - Sinto que a saída de Samuel foi a gota d'água. - Retornou Stella, apoiando o rosto na mão direita e deixando dois dedos perto dos lábios. - Ele era um membro antigo e importante, e obviamente a cidade inteira está fofocando sobre sua demissão repentina. Marquei um jantar de emergência com o prefeito, e para isso preciso da presença total da Aurora, para mostrarmos que ainda estamos fortes. - Ela se virou para Dalan, abaixando a mão e encarando-o com seus olhos azuis. - E é aí que você entra.

 - E-eu? - Perguntou o garoto, surpreso.

 - Sim. - Ela se aproximou, ao ponto que o outro se afastou. - Preciso que você traga alguém pra cá. - Respondeu Stella.

 - Oh. - Dalan ficou um pouco desconcertado. Era claro, concluiu. Havia acabado de chegar na guilda. Não seria um dia que o transformaria em uma espécie de messias ali dentro. - Quem você quer que eu traga? Sasha?

 - Minha filha será... um pouco mais difícil de se encontrar. - Stella se reclinou na cadeira, passando as mãos nas têmporas - Tudo que posso fazer é rezar para que ela volte de sua missão a tempo. Seu trabalho é encontrar outra pessoa. O nome dela é Amanda Vresky. Tem mais ou menos a mesma idade de você.

 - Entendo. - Respondeu Dalan, ainda mantendo o olhar em Stella. - Ela... saiu da guilda?

 - Ah, não. - A mulher deu um sorriso com o canto da boca, e balançou a cabeça com os olhos fechados. - Ela é uma das pessoas mais ligadas à Aurora. Nunca sairia daqui.

 - Então... o que aconteceu com ela? - Questionou o garoto. Stella cruzou os dedos, batendo distraidamente os indicadores uns nos outros.

 - Mesmo antes de Samuel nos deixar, era claro que precisávamos de mais membros. Então Amanda se voluntariou a ir até Vertreit para iniciar um trabalho de recrutamento. - A mulher voltou a encarar a guilda, soltando um muxoxo. - A questão é que Amanda é uma pessoa no mínimo... bem, ela é uma pessoa única, isso eu posso dizer. - Soltou um risinho, e voltou a encarar Dalan. - Ela já está lá faz duas semanas, e as únicas notícias que temos são as contas do hotel que temos que pagar. Só que precisamos de todo mundo na sede para a visita do prefeito, e ela é um dos nossos principais rostos. É por isso que eu necessito que você vá atrás dela.

 - Certo, mas... - Havia algo incomodando o rapaz, que se esticou para a frente com os cotovelos nos joelhos. - Tem muita gente aqui que a conhece. Por quê eu tenho de ir?

 - Porque o prefeito ainda não sabe que você entrou na guilda. - Respondeu Stella, inclinando a cabeça um pouco para o lado. - Iríamos mandar seus documentos de registro na semana que vem, quando estivéssemos no Conselho Local, então uma viagem sua passaria despercebida por agora. - A mulher se aproximou dele, apertando as mãos. - Dalan, se qualquer um aqui saísse, seria considerado pela cidade mais um desertor, mesmo se tentássemos explicar que era apenas uma viagem. Não estamos em condições de tirar mais ninguém de Helleon. Você é o único que a maior parte da cidade não conhece, portanto é o único cuja saída não despertaria fofocas. E sinceramente? - Ela se afastou, continuando com os olhos tristes. - Estamos na corda bamba, e qualquer vento pode nos jogar pra fora. Entendeu?

 Dalan se calou, vendo a melancolia da líder. Se lembrou do momento em que chegou naquela praça no dia anterior, e a expressão cabisbaixa que Stella havia apresentado quando Samuel saiu. Era a mesma que se encontrava na frente dele agora. - Entendi. E-eu vou. - Disse, tentando oferecer um sorriso.

 - Ótimo. - A mulher soltou um suspiro feliz, passando a mão pelo cabelo. - Aqui estão as passagens e o hotel em que Amanda está. - Ela retirou da bolsa um envelope de papel pardo, e o entregou ao garoto. - Ela tem quase a sua altura, e tem longos cabelos castanhos. Se vir alguém arranjando alguma confusão, é lá que ela está. - Stella começou a sorrir, mas parou ao ver a expressão desconcertada de Dalan. - N-n-não que ela seja uma pessoa difícil! - Se apressou a responder, com as mãos balançando. - Apenas... bem, Amanda é Amanda. Quando a conhecer, vai entender o que quis dizer. Qualquer coisa, procure pelo símbolo da guilda no braço dela.

 - E-entendo. - Respondeu Dalan, olhando para o envelope em suas mãos. Stella se levantou, ajeitando a saia com as mãos. O garoto a acompanhou, sentindo um pesar quando se lembrou da cama, tão perto, mas ainda assim tão longe.

  Quatro horas depois, ele estava em um vagão no meio da estrada que subia até Vertreit, tentando se ajeitar na cadeira desconfortável. O comboio era espaçoso, com assentos para até vinte pessoas dispostas em duas fileiras paralelas. As quatro janelas mostravam um ambiente repleto de árvores tropicais e insetos, fazendo Dalan agradecer por estar protegido, mesmo com o calor abafado ali dentro. Havia apenas uma outra pessoa com ele, uma velhinha no outro canto do vagão, que se movia apenas para espirrar ou acordar assustada quando a carroça passava por um buraco na estrada. Tais buracos que impediam constantemente o sono do garoto, que se mantinha acordado com dificuldades. Mesmo com a velocidade lenta do veículo, puxado por dois Canabéis, animais semelhantes a touros com chifres longos e brancos, cada ferida da estrada era sentida com intensidade máxima dentro do vagão.

 Eis que a carroça cessou seu movimento, parando em um acostamento da estrada. Dalan se inclinou para ver o motorista recebendo um papel de uma figura pequena. Voltou a reclinar na cadeira, e um tempo depois dois anões entraram no veículo pela porta de trás. Eram o esteriótipo mais gritante que o garoto havia visto em sua vida. O primeiro era alto para sua espécie, medindo cerca de um metro e cinquenta. Possuía uma barba grande e ruiva, que cobria grande parte de seu rosto, do nariz de batata para baixo. Sua pele era clara e cheia de marcas de fuligem, indicando que ele passava muito mais tempo trabalhando embaixo da terra do que em cima dela. A anã que o acompanhava não tinha barba, como quase todo o  seu gênero, mas usava o cabelo ruivo e longo enrolado em volta do rosto, terminando em uma trança abaixo do queixo, emulando o mento. Ela também tinha a pele clara, embora fosse limpa, apontando que ela provavelmente trabalhava em uma área mais burocrática do que o companheiro. Os dois eram corpulentos, andavam de forma ligeiramente desengonçada, e vestiam roupas longas e coloridas, azul para o homem e vermelha para a mulher, para protegê-los do ambiente debaixo da terra e auxiliarem na hora de serem encontrados. Cintos, capas e inúmeros bolsos e bolsas de tecido negro completavam a vestimenta de ambos.

 Eles entraram em silêncio, andando até o fim da carroça. A velhinha que estava lá, receosa e subitamente acordada, se levantou e foi se sentar mais perto de Dalan. Os anões, por sua vez, não pareceram notá-la, preferindo se sentar alguns segundos antes do veículo seguir seu caminho. A mulher idosa encarou o garoto com os olhos arregalados, como se tivesse acabado de escapar de um perigo imenso e esperasse concordância do rapaz, mas o olhar não foi retribuído. A questão era que Dalan passou a infância navegando com o pai, conhecendo todas as raças da Aliança. Não havia preconceito em seu sangue, mas isso se devia à suas experiências pregressas. A grande maioria dos habitantes daquele lado da Fronteira vivia em bolsões de suas próprias raças, separados dos outros povos. Até mesmo cidade mistas eram isoladas uma das outras, e qualquer ser diferente dos que viviam ali seria visto com olhares de julgamento. Era necessária muita convivência para que o óbvio se enxergasse: as raças eram muito similares entre si.

 Os anões, por sua vez, não se incomodaram com os companheiros de viagem. Preferiram deitar e descansar, alheios às sacolejadas da carroça. Dalan tentou acompanhá-los, mas logo percebeu que era impossível.

 Acabou por chegar em Vertreit no pôr-do-sol, exausto. Desceu da carroça com os anões, e viu pelo canto do olho a velhinha suspirar em alívio. No entanto, a visão da cidade à sua frente o fez se esquecer dela. Um mar de edifícios se estendeu diante dele, mostrando uma cidade muito maior do que a pequena Helleon. Os prédios eram claramente de origem anã, com formas geométricas simples, como paredes quadradas e telhados piramidais, e vários andares que iam diminuindo de tamanho conforme ascendiam. De vez em quando uma estrutura maior despontava no campo de visão, como uma longa construção no topo de um morro, de face pentagonal e paredes decoradas com grandes arcos elipsoides. Ao norte, uma enorme cadeia montanhosa delimitava a cidade, e vários túneis eram vistos no leito rochoso.

 Dalan havia parado para admirar aquela vista, e foi apenas o barulho da carroça se afastando que o fez sair de seu estupor. Seguiu uma estrada de pedra que o levaria da beira da floresta, onde se encontrava, até o coração da cidade, revirando os bolsos em busca do endereço do hotel. Havia também uns trocados que Stella havia lhe oferecido, e usou-os para comprar um mapa de Vertreit. Depois de alguns longos minutos se localizando e procurando o hotel, caminhando por ruas lotadas e barulhentas, se viu em uma praça deserta, aparentemente perdido.

 Ele abriu o mapa, procurando se reencontrar, quando ouviu um barulho de vidro quebrado à sua direita. Levantou a cabeça, e antes que percebesse havia uma garota de cabelos castanhos correndo ensandecidamente em sua direção, olhando para trás. O milésimo de segundo antes do contato foi apenas suficiente para que Dalan registrasse o acontecimento, antes da cabeça da garota acertar seus dentes, fazendo os dois caírem no chão.

 - Ai. - Foi tudo o que o garoto conseguiu dizer, antes de segurar a boca. A garota se levantou quase que imediatamente, passando a mão com força pelo cocuruto. Ela parecia um pouco baixa, tinha longos cabelos castanhos, e olhos grandes e negros. Sua boca era um pouco grande, e seu nariz curto completava a face. Parecia ter a idade de Dalan, e tinha o corpo atlético, embora não fosse definido. Vestia uma camisa branca e de tecido fino, sem mangas, assim como uma calça da mesma cor, que ia se alargando conforme se aproximava dos pés. Ela fazia uma cara de dor, e começou a falar com a voz alta e estridente.

 - Caraca! Que tipo de pessoa morde a cabeça dos outros, cara? - Ela se desequilibrou e caiu de joelhos no chão, segurando a região ferida. - Ai!

 - Eu não mordi! - Disse Dalan, com a voz abafada pelas mãos que ainda seguravam o dente. - Vo-você que veio correndo na minha direção! O que foi isso?

 - Eu não tenho culpa! - Reclamou a garota. - É difícil olhar pra frente quando você... cara, você mordeu a minha cabeça! - Ralhou ela, inclinando a cabeça para fuzilar Dalan com os olhos, enquanto as bochechas se inchavam e o rosto se contraía em um biquinho.

 - Eu já disse que... - Naquele momento, no entanto, o rapaz parou de falar. Notou a familiar marca no braço direito da garota, com as três curvas em "S" e a estrela solitária. - Você é da Aurora! - Soltou, retirando as mãos da boca. Se apoiou no chão para se levantar, estendendo a mão para ajudar a moça. - Amanda... Amanda Vresky, não é?

 Os olhos de Amanda foram imediatamente para o braço de Dalan, que dobrou a manga para mostrar a Marca da Guilda. Sua expressão mudou completamente, com suas pálpebras levantadas e boca aberta. - Você é da Aurora! Você é da Aurora! - Ela pulou no pescoço do garoto, envolvendo-o em um forte abraço. O rapaz, incomodado com todo o afeto repentino, afastou-a com dificuldade.

 - Sim. - Disse, inspirando com força. Segurou Amanda pelos ombros, tentando acalmar sua expressão abertamente feliz. - Agora, o que você...

 - Pelos deuses! - Ela se desvencilhou e olhou para baixo, esquadrinhando freneticamente o chão com as mãos estendidas. - Eles não podem saber que sou da Aurora! Nem que você é da Aurora! Precisamos de disfarces. Eu tinha um disfarce, agora onde ele foi parar?

 - O quê? - Amanda estava falando eletricamente, tornando a distinção das palavras um ato bastante difícil. - Eles quem? O que você está procurando?

 - Achei! - Anunciou ela, agachando e se levantando em décimos de segundo. Em suas mãos, havia um pedaço de pano sujo. A garota começou a enrolar o tecido desajeitadamente no braço enquanto olhava para trás com agitação. - Precisamos achar algo para cobrir sua Marca e depois... depois precisamos nos afastar mais ainda. Tipo, o bastante para eu pensar em alguma coisa. Quero dizer, não que eu não esteja feliz... - Ela virou o rosto rapidamente para Dalan, demonstrando sua expressão definitivamente feliz. - ... só que não temos muito tempo para ficar aqui!

 Dalan fechou os olhos e levantou a mão perto da cabeça, buscando pescar em sua mente as palavras que acabaram de sair da boca de Amanda. Então era assim que soava quando falava tão rápido, se perguntou. Precisava urgentemente acabar com isso. - Eles quem?

 - Ali está ela! - Gritou uma voz empostada mais à frente, e quando Dalan olhou percebeu quem eram os eles. Três humanos com fardas azuis de policiais, dois homens e uma mulher, se aproximavam rapidamente através de uma rua lateral. O garoto instintivamente abaixou a manga para esconder a Marca, e Amanda o puxou com força.

 - Temos que ir! - Ela começou a correr, e Dalan quase tropeçou ao tentar segui-la. Ouviu barulhos de passos pesados atrás de si, e imprimiu mais forças às pernas.

 - O que está acontecendo aqui? - Perguntou com a voz chorosa, dobrando esquinas fechadas e pulando por barris esparramados. Uma mão chegou a agarrar sua camisa, mas ele congelou o chão atrás de si sem sequer olhar. Um grito irrompeu, a mão o soltou e um baque foi ouvido, fornecendo a ele um segundo para poder respirar aliviado. - Amanda!

 - Eu sei, eu sei! - Gritou ela de volta, estendendo a mão para um estande de pequenos vasos coloridos de porcelana. Uma lufada de vento surgiu e os objetos caíram no chão, seguidos por gritos diversos. Dalan imaginou o prejuízo financeiro daquela ação, e correu com mais empenho. - Eu tenho uma idéia!

 - Qual? - Amanda de repente fez uma curva fechada e segurou a mão do garoto, e no momento seguinte os pés dos dois não encontravam mais apoio.  Estavam caindo um barranco, batendo na terra e um no outro, até que mergulharam no córrego que atravessava a cidade, espalhando água para todos os lados.

O policial que sobrou da perseguição parou com dificuldades, tentando identificar os dois fugitivos. No entanto, os meliantes seguiram a correnteza e caíram na pequena cachoeira que dava no subterrâneo da cidade. O policial deu de ombros, respirando com dificuldades. Dali não fugiriam.

 A noite caiu, banhando a superfície de Vertreit com um luar suave. Não que Dalan e Amanda soubessem, exaustos na margem do riacho, dezenas de metros abaixo das ruas da cidade. O rapaz cuspiu o último decilitro de água de sua boca no córrego, rezando aos deuses pela sua saúde. Respirou o ar úmido com demora, e se virou irritado para a garota. - Que tal me dizer agora o que está acontecendo?

 Amanda estava de pernas cruzadas, terminando de torcer a barra esquerda da calça e encharcando as pequenas pedras pretas abaixo de si. - É tudo parte de um grande plano meu. O improviso torna ele mais impressionante do que é. - Disse com o rosto comicamente sério, encarando Dalan com a cabeça inclinada para baixo.

 O garoto duvidava disso, mas perguntou: - E qual é esse plano brilhante?

 - Bem. Precisamos resgatar um anão que havia se voluntariado a entrar na Aurora. - Ela começou a torcer a barra da perna esquerda, aparentemente bastante entretida no processo. - O nome dele é Wieder. Parece ser um cara legal, mas é bem tarado. Digo, nós nos encontramos em um bar, e ele não parava de encarar uma garçonete que passava perto da mesa. E ainda era uma humana! Quer dizer, não que eu seja preconceituosa, mas você tem que admitir que...

 - O que aconteceu com ele? - Interrompeu o rapaz, tentando manter o foco da conversa.

 - Ele foi preso. - Disse ela com toda a naturalidade do mundo. - Wieder disse que precisava de um objeto antes de sair da cidade, e depois de muito, muito, muito tempo procurando, ele foi capturado ao tentar pegar o tal coiso. Eu quase fui presa, mas consegui fugir e acabei achando você, só que essa parte da história você conhece. E antes que você continue! - Ela estendeu o dedo em sinal de atenção, encarando-o com uma nova tentativa falha de mostrar seriedade. - Eu tenho um plano muito bom para salvá-lo!

 - Sério? - Disse Dalan, com a voz lenta e irônica. - E qual parte do plano envolvia pular em um rio e quase se afogar?

 - Como eu disse, o improviso torna ele muito mais impressionante. - Respondeu ela de bate-pronto.

 O rapaz apoiou o cotovelo na coxa, passando os dedos pela testa. - E qual é a próxima parte dele? - Perguntou por entre os dentes.

 - Me dê... - Ela revirou os olhos pelo teto com a expressão inocente. - ... cinco minutos para pensar e te direi o que faremos.

 Dalan se jogou para trás, deitando nas dolorosas pedras negras. Suspirou, se lembrando que poderia ter descansado o corpo exausto se não tivesse ido ajudar Dom. Nenhuma boa ação vinha sem punição. Fechou os olhos com força, esfregando os dedos nas pálpebras, enquanto Amanda resmungava consigo mesma. Tentou adormecer, nem que por um segundo, na busca incessante por repouso.

 Ao seu lado, estava a maior adversária de seus desejos.